“Basta de tanta realidade”, frase memorável de Alfredo Gamela, protagonista da peça teatral de Paulo Pontes, início da década de 70 (Um Edifício Chamado 200), dirigiu-me a reminiscências.
Com esse espírito momentâneo fui rever a Rua Heráclito Cavalcanti, nas imediações do Colégio Pio X, onde morei nos anos 50 e 60. No número 72 estacionei o carro e fiquei por instantes mirando a casa da minha infância e adolescência. Com a fachada conservada percebi o restante demolido, em nome da modernidade. O projeto original, de parede dupla e rico em detalhes refinados, tem a autoria do renomado arquiteto Clodoaldo Gouvêa, tio do meu pai.
Enamorada, lá fiquei produzindo mentalmente um filme com tantas recordações. Como estava chovendo lembrei das vestimentas usadas, quando criança, para ir ao colégio em dias de chuva. Recordei os cobertores postos nas nossas camas, por nossa mãe, para esquentar as madrugadas frias. Por incrível que pareça já houve frio em nossa cidade.
Sucessivas lembranças ocorreram, como as peças teatrais mirins ensaiadas e apresentadas nos quintais. Pensei na sanfoneira, escondida, entoando o fundo musical do espetáculo, o que me fez rir. E emendei o riso ao lembrar das brincadeiras com bolas de gude, quando arengava nas disputas com o meu vizinho, embaixo de um sapotizeiro. De tanto receber sapoti no nariz fiquei sem suportar essa fruta até hoje.
Ah, os cozinhados, esses são inesquecíveis. Às escondidas, a meninada da rua surrupiava ovos dos galinheiros que eram fritados em latas sobre fogos improvisados. Foi difícil esconder a queimadura provocada por um desequilíbrio da lata. Mas esse incidente não foi motivo de desistência. Serviu de incremento para traquinagens, como leves furtos das cozinhas de nossas mães.
Ao olhar a demolição da casa vizinha à nossa, lar da família de um coronel da Polícia Militar, recordei os ladrões de galinha. Quando apareciam o coronel era acionado, e a vizinhança curiosa ocupava a calçada da pequena rua com seus trajes de dormir. Para alívio de todos o gatuno era levado à velha delegacia da Rua Duque de Caxias.
A aquisição da radiola portátil e da TV por nossa família foi um acontecimento rememorável. Só faltou uma banda musical para uma merecida comemoração. Nessa época, fui apresentada ao jazz e rock, por meu irmão mais velho. Ele costumava fazer das panelas da cozinha seu instrumento de percussão, para encantamento da nossa mãe que divertia-se com a sua performance. Com a TV adquirida passamos a assistir “Jim das Selvas” em casa. Anteriormente, assistíamos em televisões de gentis vizinhos.
Olhando para o terraço frontal, mantido, graças ao tombamento, fiz uma retrospectiva da época dos namoros. Era o lugar destinado a receber os namorados, com duas cadeiras estrategicamente colocadas, sem condições de uma maior aproximação do casal.
Doces memórias dos momentos com a família, da escola e, principalmente das brincadeiras com os amigos, marcaram a minha infância e adolescência. Todas as fases da vida são importantes, mas a infância é uma etapa que deixa boas lembranças na existência de todo mundo.
O filme teve uma longa produção. Continuou com tantas outras recordações de um período da vida guardado imaculadamente em minha essência.
A CASA DA MINHA SAUDADE, por Babyne Gouvêa
À COVA DA IRIA, por Frutuoso Chaves
Confesso que não alcançava o sentido dos versos do hino dedicado à Senhora de Fátima: “A treze de maio, na Cova da Iria”… Perguntava aos meus pequenos botões, naqueles idos do catecismo ministrado pela professora Dapaz, braço direito do Padre, quem teria sido a pobre Iria, do que teria morrido e o que a santa fora fazer em sua cova. Simplesmente aparecer no Céu? Melhor faria se cuidasse de devolvê-la à família e aos amigos, entre eles, certamente, os três pastorezinhos.
A cautela me impedia a interpelação à catequista com quem menino nenhum queria encrenca. Receava contrariá-la no seu grande momento: o da exaltação, de olhos cerrados, ao milagre da aparição daquela Senhora mais brilhante do que o Sol. Aliás, os pequenos Francisco, Lúcia e Jacinta por pouco não cegaram. Passou-se um bom tempo até eu entender que, ao invés de uma pessoa de carne e osso, Iria era um lugar, ficava em Portugal e, a tal cova, uma fenda, uma abertura. Nas roças da minha infância o termo também era aplicado aos buraquinhos na terra para o plantio das sementes de milho, feijão e fava.
Iria situa-se na freguesia de Fátima onde quase todas as ruas têm nomes de santo. Quando li sobre isso não deixei de me perguntar se a pequena, sedenta e sofrida Paraíba não invocaria em maior amplitude os vultos e símbolos sagrados. Por aqui, santos e santas às dezenas dão seus nomes não a ruas, mas a muitas cidades. A lista inclui Santa Cecília, Santa Helena, Santa Inês, Santa Luzia, Santa Rita, Santa Terezinha, além de versões possíveis de Santa Ana como nos fazem crer Santana dos Garrotes e Santana de Mangueira. De quebra, ainda há uma Santa Cruz, uma Cruz do Espírito Santo e um Bonito de Santa Fé.
Três dos nossos municípios recebem o nome de João, o santo cuja festa ocorre em todo o Brasil, no mês de junho, com fogueiras, foguetório e muita comida. Bebida, também, por que não? Os Joões são os do Cariri, do Rio do Peixe e do Tigre. Desse grupo junino, Pedro (ausente da relação) é celebrado no 29º dia e, assim, fica muito aquém de José, festejado, aliás, em março. Em solo paraibano, há São José da Lagoa Tapada, São José de Caiana, São José de Espinharas, São José de Piranhas, São José do Bonfim, São José do Brejo do Cruz e São José dos Cordeiros.
E ainda não é tudo. Que o digam, então, Bom Jesus, Aparecida (quem, tão digna do topônimo, por ali apareceu?), Imaculada, São Bento e São Bentinho (não é de supor que sejam pai e filho), São Domingos e São Domingos do Cariri (assim, lá e lô), Santo André, São Mamede, São Miguel de Taipu, São Sebastião da Lagoa de Roça e São Vicente do Seridó.
Terminou? Claro que não, pois ainda faltam os santos mencionados, alguns deles, em Barras, Riachões, Lagoas, Brejos e Salgados. São os casos da Barra de Santa Rosa, Barra de Santana, Barra de São Miguel, Brejo dos Santos, Salgado de São Félix, Riachão de Santo Antonio, São Sebastião de Lagoa de Roça, São Sebastião do Umbuzeiro (a árvore do umbu?) e São Vicente do Seridó. Dali mesmo, da região de transição entre o campo e a caatinga.
Mas, voltemos ao Catecismo. Atinei, com o passar dos anos, que o hino à Senhora de Fátima – cujo refrão chegava à casa da família Costa, evangélica – retratava um dos fenômenos mais cultuados pela fé católica. Dos Costa, gente de bem, diga-se que nunca promoveram um instante sequer de contrariedade aos credos da minha mãe nem da mãe desta. Embora não fossem carolas e não vivessem aos pés do altar, que ninguém diante delas duvidasse da santidade de Maria. Em contrapartida, aquelas duas até arriscavam alguma entoação do “Vencendo vem Jesus”, entreouvido, parede e meia, da voz doce de Nina Costa, uma das muitas filhas do velho Severino: “Glória, Glória, Aleluia. Vencendo vem Jesus”.
Quando as primeiras leituras das coisas do mundo me conduziram aos conflitos sangrentos da Irlanda fiz da divisão do povo irlandês o resultado da intolerância de dois bandos de estúpidos. Afinal, se a minha família e a família vizinha tanto se gostavam, apesar de professarem crenças diferentes, por que isso não poderia acontecer no resto do planeta? Mal sabia eu que a briga, lá fora, envolvia a Rainha da Inglaterra e a submissão à coroa. Era, antes de tudo, briga por independência.
A bem da verdade, devo contar que nem tudo era totalmente pacífico no nosso terreiro. Certa vez, por atraso besta no pagamento, a vice-prefeita mandou cortar a luz da Igreja Batista, em dia de festa. Deve assim ter feito por raiva pessoal de alguém, posto que nunca foi uma dessas católicas fervorosas. Não me recordo de tê-la visto, uma vez sequer, a receber a hóstia cujas sobras eu e o amigo Paulo comíamos nos preparos da dona Auta. Antes de seguirem para a Igreja e as bênçãos de Padre Gomes podíamos degustá-las, sim. Deliciosas, desmanchavam-se na boca.
No jejum da Primeira Comunhão, finda a missa e morto de fome, avancei nos bolos e quitutes da Casa Paroquial sem me aperceber da temperatura do café, fervente. Cuspi tudo de volta ao prato e atribuí ao constrangimento algum castigo divino. Teria porventura esquecido de contar algum pecado ao vigário? Vá lá saber…
AS CALÇAS E A CUECA, por Frutuoso Chaves
Há coisa mais ridícula do que a forma como se vestem o Batman, o Homem Aranha, o Capitão América, o Capitão Marvel e, sobretudo, o Super-Homem? Não é à toa que já se tenha feito a pergunta: como confiar num sujeito que veste a cueca por cima das calças?
Alguém precisa escrever com os olhos e sentidos da sociologia, ou de outra ciência de igual valor, sobre os trajes dos super-heróis lançados ao mundo, numa sucessão de idiomas, pelas grandes editoras do ramo (quase todas americanas) para o combate ao crime, a defesa dos fracos e oprimidos, a glorificação da decência e da justiça.
A propósito do Super-Homem, diga-se que surgiu em 1938, no então efervescente mercado de histórias em quadrinhos dos Estados Unidos. O Capitão Marvel viria ao mundo das HQs, dois anos depois disso, com a reprodução de duas capacidades assombrosas: a de resistir a qualquer sopapo, ou explosão, sem um mísero risco na pele, e a de voar.
De resto, ambos tiveram inspirações diferentes. O primeiro fora despachado à Terra pelos pais aflitos, ainda bebê, numa cápsula espacial, quando o planeta de origem estava prestes a explodir, enquanto o outro era produto da magia, ou seja, o prêmio a um adolescente por sua boa índole. Bastava a este último gritar “Shazam” para ser envolto por um raio e, em razão disso, adquirir corpo de aço.
Conta-se que as duas editoras – a National (do Super-Homem) e a Fawcett (do Capitão Marvel) entraram em batalha judicial que perdurou por mais de dez anos. Até que, em 1953, a Fawcett fechou as portas depois de pagar à National uma indenização de 400 mil dólares por plágio. Capitão Marvel retornaria 20 anos depois, devidamente legalizado, quando a DC Comics comprou os direitos sobre os antigos personagens da Fawcett.
Pois é, fantasia é fantasia, mas grana é grana. E, nesse nicho do mercado editorial, ela sempre foi poderosa o suficiente não apenas para matar e sepultar, mas, ainda, para ressuscitar mocinhos e bandidos. Isso, nem os dois homens de aço conseguem fazer.
JOSEPHINE, LA BELLE, por José Mário Espínola
Anos atrás, fomos conhecer a Semana Santa de Pirenópolis, em Goiás. Acompanhados de nossa filha Ana Laura, quem nos levou até a cidade foi o casal Humberto e Arlette Espínola, meu irmão e minha cunhada, que nos hospedava na Capital Federal.
À época, o casal morava numa bela mansão de estilo provençal, numa quadra exclusiva próximo ao Lago Sul, de Brasília. E, principalmente, vizinho ao Jardim Botânico de Brasília!
Ar puro, clima maravilhoso, a proximidade com o horto às vezes oferecia agradáveis surpresas da natureza, que deixava os caminhantes encantados. Foi o caso de uma linda arara vermelha, que Arlette batizou de Josephine.
Um dia, a arara enorme amanheceu pousada no galho de uma das mangueiras do belo jardim dos Espínola, e lá passou o dia, voando à tardinha de volta ao horto.
No dia seguinte lá estava ela de novo. E assim sucessivamente, ao longo de anos. Tão mansa, logo estava ela pousada na mesa de café do terraço. Depois passou a deixar coçar-lhe a cabeça, demonstrando satisfação. E a amizade criou raízes.
Todos os dias ela tomava café ou almoçava com eles no terraço da casa. Isso aconteceu ao longo de muitos anos. Porém, um dia Josephine não voltou mais, deixando todos muito tristes. Inclusive eu e Ana Laura, que adoramos bichos (exceto baratas!). Mas Josephine nos deixou, Arlette!
***
Arlette Jeannine Denise Martin Espínola foi o belo souvenir que Humberto trouxe de Paris, após concluir sua pós-graduação na Sorbonne.
Ela era orgulhosamente normanda, natural de Caen. Filha de Pierre Marie Jean Victor Martin e Denise Marie Leboulenger Martin, tinha cinco irmãos e uma irmã, todos normandos como ela. Seu pai, Pierre Marie, atuou na resistência aos invasores alemães, durante a Segunda Grande Guerra.
Casou-se com Humberto e veio morar no Brasil. Aqui, teve seu único filho, Benoit, que mora na Finlândia, casado com Anu (acho que ela é tataraneta-torta de Papai Noel, pelo lado da mãe…), e que já lhe deu dois netinhos lindos: Elias e Léo Denis.
Juntos viajaram pelo mundo, vivendo boas aventuras. Numa viagem de Barcelona para Lisboa, juntos com Francisco Barreto, atravessaram a fronteira ao meio-dia. Resolveram, então, parar para almoçar numa tasca de uma cidadezinha.
Fizeram os pedidos e estavam a conversar alegremente, aguardando a comida. De repente, Arlette viu um dos garçons parados, olhando boquiaberto para o grupo. Ela cutucou Humberto, chamando a sua atenção. Foi quando o garçom exclamou:
– Que raios de língua é essa, que eu entendo tudo?!
Os três não se aguentaram.
Arlette era um doce de pessoa e estava sempre muito bem humorada. Era tão boa gente, tão boa esposa, que se acostumou com o nosso país. Sempre muito alegre, ela gostava de dançar.
Muito inteligente e organizada, Arlette dominava todas as ferramentas da internet, sendo fundamental na organização da família. Grande anfitriã, cozinhava muito bem, especialmente pratos europeus, a exemplo da saborosa sopa fria espanhola, gaspacho, e do doce de leite cortado, ambrosia. E a incrivelmente deliciosa torta de maçã tarte tatin! Pratos dignos de serem servidos em vôo da Air France.
Veio conhecer João Pessoa e a nossa família e apaixonou-se pelo Nordeste. O Brasil passou a ser a sua segunda pátria. Amava o mar, e logo compraram uma grande casa em Praia Formosa, no setor de Ponta de Matos. A casa é no estilo bangalô inglês e foi construída em 1911 pelos engenheiros britânicos que trabalharam na construção do porto de Cabedelo. À sua frente encontra-se o Farol da Pedra Sêca.
Trabalhando para o Ministério de Exterior da França, Arlette morou dois anos na Ilha de Malta. Coincidentemente, lá conheceu a Baía Spínola, recanto bonito no centro da capital, La Valletta.
Pessoa culta e muito sensível, Arlette era apaixonada pela natureza. Após largar o emprego na Embaixada da França, em Brasília, estudou desenho e pintura, dedicando-se à reprodução de plantas, fazendo trabalhos lindos, bem delicados: flores, ramos, plantas, pétalas…
***
Arlette nos deixou há dois anos. Acometida de complicações causadas por graves sequelas da covid 19, ela partiu rapidamente, deixando todos nós enlutados e muito tristes. E com muitas saudades ainda hoje sentimos muito a sua falta.
Às vezes, fico pensando se ela não voltou para o Jardim Botânico, encantada sob a forma de uma linda arara blanc, bleu, rouge, reencontrando-se lá no céu com Josephine. Ou até mesmo, quem sabe, ela reencarnou-se na própria Josephine…
O BÚZIO, por Frutuoso Chaves
Não entendo como um ser vivente possa dispor de tal moradia. Nem vejo serventia melhor para um bicho desses, senão aquela posta em prática por moradores ribeirinhos durante as cheias do Rio Paraíba. A Natureza, porém, sabe das coisas melhor do que eu, evidentemente.
Li que o búzio, um molusco marinho de grande ocorrência nos mares dos trópicos, é um sujeitinho voraz. Come, principalmente, ouriços e estrelas do mar. E tem um veneno dos diabos. Certos navegantes o chamavam “búzio cigarro”, alusão ao tempo exato de uma boa tragada antes da morte daquele que nele pisasse, ou por ele fosse picado durante as capturas.
Será verdade? Sinto-me inclinado a duvidar disso porque a internet também me oferece receitas de búzios. Uma delas recomenda o preparo da carne com sal, limão, pimenta, alho e óleo. Antes da fritura, passa-se o bicho em ovo batido e farinha de rosca. Título do prato: búzio empanado.
Seja como for, ainda não consigo perceber numa concha dessas – que tem a dureza de um osso – a morada de um animal capaz de nascer, crescer e procriar. Culpa das memórias de menino e do tempo em que o búzio servia mesmo é para avisar moradores de beira de rio sobre a ocorrência de enchentes. Não o bicho em si, é claro, mas o som que dele podia emitir quem fosse capaz de soprá-lo com a maestria do velho Guel, amigo do meu pai. A coisa soava grave, soturna e tristemente, como o apito de um navio, ao se afastar do cais. E o som tornava-se ainda mais pungente nas madrugadas. Era como se o mundo todo estivesse em processo de despedida.
Quem ouvisse aquele som punha-se de pé e corria para a beira d’água. As famílias ribeirinhas apressavam-se em transferir os animais domésticos para locais mais seguros e em arrancar batata, macaxeira ou inhame, então cultivados na areia, antes que o rio levasse tudo.
Enquanto isso, alguém “tocava” o búzio para o aviso dos moradores de trechos subsequentes, rio abaixo, por onde a cabeça da cheia logo passaria. Era a isso que se prestava o búzio: ao desejo da autoproteção. A criança que eu fui, naquele tempo, fazia do Velho Guel e de seus assemelhados gente bem próxima de um anjo da guarda.
Certa vez, já adulto, eu estava num dos plantões do jornal “O Norte”, em João Pessoa, quando me pediram para redigir um texto publicitário de duas páginas sobre a expansão da telefonia paraibana. Ficou combinado que eu daria formato de reportagem ao material e, desse modo, viajei até Pilar, onde uma torre de metal já se erguia a uns 30 ou 40 metros.
Pela primeira vez, a cidadezinha tinha algo maior do que a torre da Igreja. Umas poucas horas na observação do movimento do posto telefônico novinho em folha e a boa sorte ajudaram-me a compor o texto. Pude observar, além de contatos entre mães e filhos (estes últimos amargando o êxodo nos guetos e favelas do Rio e São Paulo), o aviso telefônico da abertura de uma das comportas de Boqueirão para a segurança da barragem. Entendi, de pronto, que a telefonia havia sepultado a era dos búzios. Aviso de cheia, a partir de então, viria por telefone. Coisas do progresso.
JOÃO E CLARISSE, por Frutuoso Chaves
Eram sempre vistos juntos desde a oitava série quando passaram a sentar lado a lado no banco escolar. Antes disso, não. Afinal, em todos os cantos do mundo, menino e menina apenas se buscam quando começa ele a engrossar a voz e, ela, a afinar a cintura.
Não foi diferente com aqueles dois. Recém-ingressos na adolescência, decidiram que se completavam. Ele era bom em gramática e literatura, enquanto ela se dava de melhor modo com as ciências exatas. Aceitavam, apenas ocasionalmente, outras participações no estudo em conjunto liderado por um ou por outro, conforme cada inclinação.
Os pais logo se acostumaram a vê-los com frequência em cada sala e cada varanda. Quantas vezes, mesa posta, não aceitaram, prazerosamente, o convite feito por cada mãe? Neste quesito, surgiram, também, as preferências individuais, tal como em relação às matérias da escola. A sopa de casa, para aquela mocinha, não era tão boa quanto a da mãe dele. Por sua vez, ele preferia o frango ensopado servido na casa da amiga, aos sábados, invariavelmente.
Com o passar dos anos, sem que percebessem, formaram um par constante, também, na praça e nos bailes. A dança coladinha, de ritmo lento, romântico, já lhes parecia bem melhor do que a das músicas alegres, saltitantes, no grupo de amigos, todos soltos em seus requebros e passos.
Quando colados permitiam-se o contato físico que, por mútuo acanhamento, não buscavam em outros ambientes. No pequeno clube, com todas as licenças conferidas pela música e pelas circunstâncias, apertavam-se os corpos e experimentavam todas as sensações disso decorrentes. Eram, afinal, ali, mais um par na multidão em quem ninguém reparava.
Uma vez, quase tiveram um beijo de namorados. A milímetros do toque nos lábios as bocas desviaram-se. E ele sentiu que partira dela o desvio. Já em casa, na cama, agradeceu aos Céus por haver ignorado a rejeição da qual, é bom dizer, não estava assim tão certo. Teria ela reagido a alguma relutância sua? E relutou, sim, compreensivamente, pois a ninguém será fácil beijar com paixão uma amiga de vários anos.
Decidiu que, dia amanhecido, poria as cartas na mesa. Pessoalmente, não entendia a razão pela qual uma dupla que se amassava num salão de baile era incapaz de juras e beijos num pé de muro. Assim decidiu, mas não o fez. O tempo de amizade impedia tanto os beijos quanto a discussão do tema.
E a vida seguiu sem sobressaltos até o momento em que a notou mais fria e mais distante. Já se culpava pelo que tentara junto ao muro quando ouviu a história do desembarque de um sujeito bonito, atlético, na casa de uma amiga em comum.
“Clarisse, agora, deu para me procurar”, comentou a tal amiga, maldosamente, sem dúvida, porquanto atribuiu essa aproximação inesperada e súbita a Cláudio, um primo da Capital a quem pai e mãe hospedariam por duas semanas. Não passou recibo do baque. Caprichou no ar de descaso, mudou o rumo da conversa e logo se despediu da informante com as entranhas em brasa.
O visitante havia ali deixado em alvoroço todas as meninas descomprometidas e com idade para o namoro. Bom de conversa e de futebol, também se fez amigo da rapaziada costumeiramente avessa a invasões do território por machos do tipo alfa. Luiza, uma moreninha sapeca, sem proibições para o Coreto, ganhou o moço.
Transcorridos não mais do que três dias já as duas mães notavam o esgarçar daquela união de carne e unha. “Onde anda João Vitor?”, perguntou uma delas. E a outra: “Você brigou com Clarisse?”. Respostas evasivas, envergonhadas, em ambos os casos.
Cláudio se foi e deixou com Luiza o endereço, o telefone e a promessa do reencontro. As meninas todas sossegaram e a vida retomou o curso normal, tranquilo, pachorrento. A única novidade ficou por conta do desapego daqueles dois.
Uma noite, na praça, ele abandonou a roda de bate-papo ao perceber a aproximação da amiga. No baile seguinte, ela teve a companhia de Tonico. E não ficou sem troco: sozinha, dias depois, a caminho de casa, percebeu os amassos e beijos que em outra ele dava. O cretino, perversamente, havia escolhido para tamanho espetáculo aquele muro e a prima de Cláudio.
Os namoros sucessivos logo chegaram ao conhecimento dos pais com brigas nas duas casas. “Não criei filha para a libertinagem”, ela ouviu do seu. E não engoliu o choro, um pranto sem consolo, penoso, pesado.
A má fama, enquanto isso, afastava dele as meninas mais sérias e, de resto, o bom relacionamento familiar. “Quando você vai deixar de ser moleque e tomar jeito de homem?”, perguntou-lhe o juiz de direito de cujos cachos saiu, ao saber, também, da presença constante do filho nos bares. Cada repreensão doméstica era atribuída por um à existência do outro. E nunca mais se falaram.
Toda cidade, por menor que seja, dispõe de um bêbado com ares ou de filósofo, ou de poeta. O dali era dado ao deboche: “Quem disse que a paixão não liberta?”. Outras vezes, porém, compadecia-se daqueles dois e, nessas ocasiões, desafiava o resto do mundo: “Quem já não perdeu um amor por medo de perder uma grande amizade?”. Quanto a mim, prefiro calar. E vocês?
MEDITAR É PRECISO, por Babyne Gouvêa
Nesta Sexta-feira da Paixão, como boa católica, contemplo as imagens de Jesus Cristo sendo sacrificado por nós, pecadores…”Ele foi ferido por causa de nossa rebeldia e esmagado por causa de nossos pecados. Sofreu o castigo para que fôssemos restaurados e recebeu açoites para que fôssemos curados.”(Isaías 53:4-5)
Penso também no ladrão Barrabás, posto em cruz junto a Cristo. Não sei qual o fruto do roubo cometido pelo gatuno crucificado. Seja lá o que tenha sido deve estar pensando no mal que deixou para a humanidade e, especificamente, para o brasileiro. Segundo os registros, Barrabás se redimiu, e essa ação deveria servir de exemplo para as gerações que lhe sucederam.
Digamos que ele tenha surrupiado joias. Naquela época não existia joalheiros refinados, como os de hoje, mas existiam as Salomés que ostentavam riquezas em suas cabeças, troncos e membros. Essa tradição fincou raízes durante séculos e, historicamente, mais forte em países ricos. Não me oponho a esse costume, desde que o bem precioso seja adquirido com recursos próprios e não alheios.
O nosso país, com uma população majoritariamente pobre, mas com lideranças gananciosas, torna-se sempre palco de notícias que envergonham a sua gente. No poder, os seguidores de Barrabás, ,de forma inescrupulosa, tomam para si pedras preciosas a princípio pertencentes ao Estado.
A Sexta-feira Santa é um oportuno período para reflexão. Pensar no motivo pelo qual Deus transferiu os nossos pecados e nossas culpas para o seu filho Jesus, que sangrou até a morte sob o peso dos nossos pecados.
Esse sacrifício não pode ter sido em vão, notadamente para aqueles que enaltecem Deus, e se dizem fiel a Ele, como alguns governantes da nossa nação. Até Dimas fitou o Cristo pendurado na cruz e perguntou por que motivo fora o Cristo condenado.
A pergunta feita pelo larápio arrependido, como narra a história, deveria servir de lição para as mentes dissimuladas e enganadoras de um povo ingênuo.
Com esperança no Judiciário da nossa pátria, desejo uma Semana Santa de meditação aos brasileiros que, como bons cristãos, saberão seguir os ensinamentos de Jesus Cristo.
O SENHOR MORTO, por Frutuoso Chaves
Ninguém, por qualquer meio, seria capaz de me fazer ficar sozinho na Igreja comandada, naqueles dias, pelo Padre Gomes. Culpa de Batista, o amigo mais velho de quem todos os meninos admiravam a coragem. Ainda frangote, com os primeiros pelos na cara, o moço atravessava as noites, do sábado para o domingo, em busca de um bom forró, nos sítios e grotões. Na verdade, de qualquer forró, dos ruins, também. Não se dava, nesse campo, a luxo algum.
De volta, o Sol ainda escondido, passava no beco do Cemitério e, encontrasse o portão aberto, deitava-se numa lápide, fazia da camisa travesseiro e dormia o sono dos justos. Pois bem, a tal ponto destemido, esse camarada fugia da Igreja, quando vazia, como o diabo da cruz. “No Cemitério, ainda durmo. Na Igreja, não há quem me faça”. Quantas vezes não o ouvimos dizer isso.
Pronto. Nada me aguçava tanto e tão bem o medo daquele ambiente sagrado quanto esse depoimento do meu velho amigo. Haveria, porventura, alguém tão abalizado nesses assuntos quanto um sujeito capaz de se deitar com os mortos? Se ele afrouxava perto do púlpito de onde Padre Gomes passava suas descomposturas aos pobres pecadores, imagine eu.
Mesmo em dias claros, com movimentação no local, eu evitava certas áreas da Igreja consagrada à Nossa Senhora Del Pilar, assim mesmo, espanholada, da forma como fora até ali conduzida pelo jesuíta Frei Francisco de Modena, nos primórdios do vilarejo.
Não gostava, particularmente, do altar sob cuja mesa alguém dispôs, numa caixa envidraçada, um Senhor Morto com a expressão mais angustiada e sofrida que já vi em toda minha vida. Não sei se definitivamente morto, posto que tinha os olhos abertos. A boca, também. Sangue brotava de muitas feridas e, não menos, da testa perfurada por espinhos. Todavia, longe dali, eu readquiria, além da coragem, um sentimento individual de revolta que não supunha capaz de caber em coração ainda tão pequeno.
Uns frouxos aqueles discípulos. E Pedro, hein? Negar três vezes aquela amizade, mesmo depois de afirmar que assim não o faria? Acontecesse comigo, eu cobriria tudo o quanto fosse soldado romano no bodoque.
Posso ser sincero? Não gostava, mesmo, da Semana Santa, assim tida e havida. Aqueles santos cobertos, os lamentos de cada Estação ao longo da Via Sacra. Dias inteiros sem bola e com jejum até não mais poder. Quando posta a comida à mesa, era um sem-fim de pratos à base de coco, tempero do qual sequer o feijão nosso de cada dia escapava.
E os pedintes à porta? “Um jejum para minha mãe jejuar”, suplicavam. Não estariam a pedir o contrário? Um desjejum para a mãe, ou quem quer que fosse?
Eu sonhava, então, com o Sábado de Aleluia, ocasião para todos os desagravos e para um novo encontro com Judas. O da minha cidade vinha com chapéu, paletó, camisa, gravata e sapatos, coisas, certamente, sobradas de algum defunto ou, quem sabe, de alguém que se fez mais próspero e gordo a ponto de não mais caber nas velhas vestimentas.
Não tinha quem ganhasse do moleque Escurinho na escalada ao pau de sebo para a derrubada do boneco feito no tamanho de gente de verdade. Era o bicho bater no chão e começava o rasga-rasga. Enfim, havia chegado para Judas o merecido castigo e, para os meninos que então éramos, a volta do riso e da alegria.
Mas, para um grupinho de presepeiros na mira da polícia, aquela festa, em particular, perdera a graça. Iriam todos em cana se fizessem a Leitura do Testamento, o momento apoteótico. O juiz cuidava, assim, de evitar brigas ocorridas em passadas malhações, quando os linguarudos destinaram, a título de consolo, gravata, sapato, camisa, paletó e chapéu do Judas a pais de meninas desmioladas e, ao que também diziam, maridos traídos. Se tiros houvesse, que fossem apenas os das bombas nas tripas de pano daquele boneco.