XADREZ É CULTURA? por Marcelo Urquiza

(Imagem: UFMG)

Antes de tentar responder a essa pergunta, é necessário contextualizar as razões pelas quais ela foi feita.

No mês de outubro de 2022, a Fundação Espaço Cultural (Funesc) lançou edital para ocupação dos boxes do Espaço Cultural José Lins do Rego. A Federação Paraibana de Xadrez resolveu participar do processo seletivo, tendo em vista seu interesse em ter um espaço físico para a prática do jogo.

O item 4.1.3 do edital estabelecia que “as propostas com atividades culturais teriam prioridade na avaliação e seleção de cada requerimento”. Em razão disso e em função do desenlace da seleção, a questão levantada no título é oportuna.

De pronto, posso afirmar categoricamente que o xadrez é uma atividade cultural. São inúmeros os estudos acadêmicos que confirmam essa afirmação. Mas algumas citações resumem e refletem com clareza a inserção do jogo na cultura. Uma das mais famosas é a do físico J.R.Bowman, que diz:

  • A impossibilidade de conhecer o melhor lance em uma partida de xadrez é o que eleva o xadrez de um jogo científico para uma forma de arte, um meio de expressão individual.

Anatoli Karpov, ex-campeão mundial, e E. Guik escreveram o livro “Mosaico Enxadrístico”, e no prólogo fizeram a seguinte ponderação:

  • Nas discussões, com frequência se levanta a seguinte questão: o que é o xadrez: esporte, arte ou ciência?
    Cada um destes três elementos está presente no antigo e sempre jovem jogo, mas em diferentes situações prevalece algum deles. O participante de competições classificatórias encara o xadrez como esporte. O grande mestre que sacrifica com elegância a dama ou o compositor que cria uma miniatura veem no xadrez antes de tudo uma arte. O pesquisador que elabora uma nova ideia de abertura ou analisa um complicado final dirá que é ciência.

Daí podemos afirmar que o xadrez oferece ao seu praticante a oportunidade de desfrutar de uma atividade que envolve o esporte, a arte e a ciência a um só tempo.

Retornemos ao edital. A proposta da Federação Paraibana de Xadrez foi desclassificada, e a decisão da comissão de seleção se baseou em um parecer jurídico que afirmou o seguinte: “A parte recorrente tem como atividade Xadrez, também conhecido como xadrez ocidental ou xadrez internacional, é um esporte, arte e também ciência, enquanto que a vencedora tem como atividade principal a DANÇA. Portanto, a atividade de XADREZ É ANTES DE TUDO UM ESPORTE e não se enquadra quando seu concorrente detém de um enquadramento específico por se tratar de DANÇA.”

É importante esclarecer que a primeira parte do referido parecer é uma transcrição literal de um verbete da enciclopédia livre Wikipédia. Já a afirmação da segunda parte, a que diz que o XADREZ É ANTES DE TUDO UM ESPORTE, provavelmente seja decorrente de uma interpretação personalíssima do autor do parecer, pois nem o próprio verbete no qual ele foi baseado faz tal afirmação. Aliás, essa é uma assertiva que não existe na literatura especializada. Então, entendo que tal interpretação foi certamente baseada na ordem das palavras (esporte, arte e ciência), o que, convenhamos, é uma visão extremamente frágil, para dizer o mínimo.

Mas o entendimento de que o XADREZ É ANTES DE TUDO UM ESPORTE levanta outra questão. Para justificar sua posição, o parecerista excluiu o esporte do rol das atividades culturais. Logo o esporte, uma das mais importantes manifestações socioculturais da humanidade!

É evidente que as instalações físicas do Espaço Cultural José Lins do Rego não são direcionadas para a prática de atividades esportivas em geral, mas são perfeitamente adequadas para abrigar o xadrez, haja vista se tratar de uma atividade eminentemente mental.

Por fim, de se lamentar a postura de um órgão que visa difundir e estimular as atividades culturais, mas tenha se utilizado de uma justificativa eivada de falácias para discriminar uma atividade tão nobre como o jogo de xadrez. Vida que segue.

  • Marcelo Urquiza é presidente da Federação Paraibana de Xadrez

JUKEBOX, por Frutuoso Chaves

Imagem meramente ilustrativa copiada de Rick Jukebox

Entrou ali com o coração aos pulos. Buscou a mesma mesa, escolheu uma música e fez o pedido costumeiro: gim com água tônica. O recanto onde estava era o mais escondido do barzinho situado, aliás, no trecho mais remoto do bairro. Na metade do drinque, ela chegaria esbaforida, tão ofegante quanto no primeiro encontro. E manteria a pontualidade dos atrasos, a dos 15 minutos de repetida agonia.

Happy hour, pois sim… Vão dizer isso aos corações em brasa, uma vez por semana, a cada quinta-feira. Os fins de tarde, quaisquer que fossem, lhes seriam felizes se não tivessem no peito a dor dos amores proibidos, o remorso das traições, o medo do flagrante-delito e, é claro, da punição.

Para ela, naquele cantinho de bar, adviriam, também, o coquetel de sempre, o queijo fatiado e, se distante o garçom, os beijos furtivos. No mais das vezes, não ousavam ir muito além dos dedos entrelaçados. E tudo, com o fundo musical muito bem escolhido, acabava à altura do quarto drinque, invariavelmente.

Uma vez, mediante promessa de sigilo eterno e absoluto, ele falou ao melhor amigo do propósito de trocar o lar por aquela paixão dos infernos. Já não o fizera porque ainda não tinha a intenção correspondida. Diga-se que o interlocutor dividia com ambos o mesmo ambiente de trabalho e que, depois disso, os sussurros e ares de riso passaram a bambear as pernas do moço apreensivo e arrependido da revelação. O amigo jurou que não que não havia quebrado o voto de silêncio.

Não conto como nem por quem eu soube dessa história e de seu final. O par se desfez com o pedido de demissão e sumiço daquela jovem senhora para lugar não sabido. Passei, então, a me compadecer daqueles dois, embora não os tivesse conhecido, posto que atuavam em diferente campo de trabalho e numa zona da cidade afastada da minha.

Por acaso, estive naquele pequeno bar, à boca da noite de uma quinta-feira. Não sei se a dele, mas vi quando uma alma penada se ergueu do recanto mais escuro e rumou até a Jukebox. Logo, a voz suave de Tony Bennett preencheu o ambiente. A máquina tocou um tema romântico, dolorido, em absoluto contraste com seu brilho, sua profusão de luzes e cores.

A Jukebox é uma invenção de 1890 aprimorada, sucessivamente. As primeiras funcionavam apenas com fichas. Você comprava quantas quisesse, escolhia suas músicas, colocava cada ficha, apertava botões numerados (cada número, uma música) e aguardava o braço mecânico retirar o corresponde disco de uma prateleira depositando-o no prato giratório. Em seguida, outro braço pousava com a agulha, suavemente, nas ranhuras do vinil. Pois bem, você havia acabado de fornecer música, em bom volume, para o ambiente inteiro, gostassem, ou não de suas escolhas. Esclareço que nunca testemunhei arengas por conta disso. Quem inventou essa coisa criou uma máquina de consensos.

Mas acho que estive a ponto da briga quando, naqueles idos, pus a tocar para o bar inteiro o apelo sensual de “Me and Mrs Jones”, a música que popularizou o incrível Billy Paul nos quatro cantos do mundo. Fala, exatamente, do encontro às escondidas de dois amantes, à mesma hora e no mesmo Café, enquanto a Jukebox tocava as suas canções preferidas. Não o fiz por perversidade, eu juro, mas para homenagear um amor que se foi e acalentar dois corações feridos. Será que fiz bem?

DOMINGO FATÍDICO, por Babyne Gouvêa

Imagem copiada da Revista Piauí (foto sem crédito na publicação)

Há coisas na vida de difícil compreensão. Da noite para o dia o nosso emocional pode dar uma guinada de diâmetro assustador. No meu caso o motivo tem nome: o fatídico domingo, dia 8 último.

Fiquei literalmente impactada com o que assisti. À medida que as imagens eram exibidas um misto de ansiedade e medo tomava conta do meu âmago. E o mais frustrante foi o sentimento de impotência por não poder fazer absolutamente nada naquele instante.

Imaginem assistir uma barbárie com passividade, soltando apenas gritos de indignação! Os selvagens com ar sarcástico esboçavam semblante triunfante, filmando os seus vandalismos.

Atribuo o nível de atrocidade, em parte, ao nosso precário sistema de educação, desde sempre no nosso país. Se a educação formal fosse priorizada existiria consciência crítica entre os cidadãos. Haveria o senso de cidadania e o zelo pelo patrimônio histórico-cultural. Com isso, provavelmente, o terror não teria acontecido. Um bom exemplo são as edificações preservadas durante a Segunda Grande Guerra, na Europa.

Qual a importância dos prédios criados por Oscar Niemeyer, arquiteto antológico autor do projeto arquitetônico de Brasília, para quem defeca em seus mobiliários? O que representa uma tela de Di Cavalcanti para quem cultua um pneu como divindade? O que significa um relógio trazido ao Brasil por D. João VI para quem planeja atentado com bomba em caminhão de querosene?

Na seita que foi formada por um ignóbil líder, tudo é possível e justificado por falsas premissas. O famigerado mito não passa de um capeta com discípulos vítimas de sua cilada maquiavélica.

Autoridades, constituídas para comandar a segurança das instituições, estiveram ausentes, comprovando a sua cumplicidade nos atos danosos. Pensar que há quem os defenda ultrapassa o limite da racionalidade.

Os responsáveis pelas ações cruéis terão que responder por sua improbidade. Terão que aprender a viver numa civilização democrática, onde o respeito pela Constituição é dever do verdadeiro e responsável patriota.

PEÇO PERDÃO, por Frutuoso Chaves

Terraço do café na Place du Forum em Arles à noite (Vincent Van Gogh)

Acabo de lembrar. Não fui à casa da dona Conceição, de quem, dois dias antes, eu atendera ao telefonema: “Venha para uma tapiocada. Os meninos estão em João Pessoa e querem rever os amigos de infância”. Diga-se desses meninos que um deles ultrapassou os 70 anos e o outro é sexagenário.

Foram educados pela irmã como se filhos fossem. Tornei-me próximo do mais velho, nos idos de 1970, quando comungávamos das mesmas apreensões com o presente e o futuro de uma Nação subjugada e amargurada.

Anos antes, esse meu amigo vira-se obrigado a largar a Faculdade no Recife a fim de salvar a pele. Ocupava o cargo de tesoureiro no Diretório dos Estudantes no momento em que os militares, já autorizados pelo Ato Institucional nº 5, o mais draconiano dos decretos ditatoriais, punham a tropa e tanques nas ruas, desmobilizavam sindicatos e agremiações, prendiam lideranças e cassavam direitos políticos e estudantis.

Meu amigo perdera o direito de estudar. Avisado a tempo por alguém da família com posto de oficial do Exército, fugiu para os confins de Pilar, antes que fosse preso e torturado, como tanta gente o foi por lutar, apenas com a força das palavras, contra um regime que matava a liberdade e a esperança.

Em 1970, com pouco mais de 20 anos, eu dava meus primeiros passos no jornalismo. De resto, ia duas vezes por semana a Pilar (às quartas-feiras e sábados) para dar aulas a cinco turmas de um colégio da Campanha Nacional das Escolas da Comunidade. O salário quase simbólico ficava todo no bar de Manoel Cego e nos forrós da Serventia ou, da Maloca.

Todos os fins de semana estava eu em Pilar a rever os ambientes da infância e as amizades. Namorávamos duas garotas da mesma rua e, muitas vezes, dividíamos, os quatro, o mesmo banco de praça. A conversa transcorria animada sobre temas amenos e variados até por volta da meia-noite, quando nos despedíamos: as meninas recolhiam-se e nós tomávamos o caminho da gandaia.

Duas Marias das Graças, ou duas graças de Marias, como queiram, nos esperavam no balde do açude (quando a caminho do bairro da Serventia) ou na cabeça da Ponte (quando no rumo da Maloca) e, qualquer que fosse o destino tomado, não iríamos dormir antes do nascer do Sol.

Hospedavam-me ora um primo ora dois amigos. Faltasse eu a um deles e lá vinha a reclamação dos pais: “Porque Tuta não veio?”. Ah, a velha e boa hospitalidade do interior…

Levamos algum tempo para descobrir como as namoradas sabiam com detalhes dos nossos passos pelas madrugadas, razão de brigas e rompimentos. Tinham nas empregadas de casa repórteres infalíveis. De todo modo, vivíamos para esses bons momentos num Brasil que, então, respirava o medo e a angústia.

Peço perdão à dona Conceição e a seus meninos. Não pude atender ao convite. O trabalho, nesse dia, tomou-me o tempo e a lembrança. Soube que me esperaram até a meia-noite. E não duvido de que o tempo da espera tenha sido determinado pelo amigo liberto como a Borralheira depois das doze badaladas.

A UM CIDADÃO CHAMADO LULA, por Francisco Barreto

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Prezado senhor,

Tomo a liberdade de lhe escrever. Vosmecê não me conhece. Não tem importância. Sou apenas um nordestino, um campinense de vários costados.

Meus ancestrais pairaram na Vila Nova da Rainha no final do século 18 e, por volta de anos 1800, meus sétimo e sexto avós, o Capitão de Ordenanças José Nunes Viana e Baltazar Luna, comerciante, abrigaram o revolucionário Joaquim do Amor Divino, o grande Frei Caneca, e com este foram presos e recambiados para o Recife. Liberados, retornaram às terras da Borborema.

Herdei deles a minha alma carbonária de insurrecto. Fui preso, expulso e exilado, proibido de ter emprego público à conta de ditadura militar.

Pessoalmente, nos conhecemos em 1980, no Recife, quando da primeira greve dos professores em Pernambuco. Admirei sua bravura ao defender a vilipendiada categoria da Educação no governo Marco Antônio Maciel. Trabalhava naquele governo. Com Everardo Maciel (Finanças) e Joel de Holanda (Educação), modestamente acompanhei (do Planejamento) uma reunião com os grevistas na qual vosmecê estava presente num apoio intersindical e silente, disciplinado, participou.

Anos depois, em 1989, parlamentar do MDB em João Pessoa, convidados por Luís Guschiken, eu, Potengi Lucena e Delosmar Mendonça fomos convidados para aderir à sua campanha. Agradecemos e permanecemos leais ao Dr. Ulysses Guimarães, um homem certo numa hora errada. Teve uma imerecida e injusta derrota. No segundo turno votei em vosmecê. Continuei votando. Em 1994, 1998 e em 2002. Vinte anos depois, renovei a minha confiança.

Passei a acompanhar com muita inquietação os seus passos. Para a minha alegria, em que pesem os meus desagrados com o PT, com a minha desprezível contribuição, votei e bradei pela derrota de Bolsonaro e o espectro de uma ditadura fascista. Vivi para ver essa histórica e sofrida vitória.

Hoje, reconheço e me cumpre louvar a sua coragem e a sua imensurável importância ao varrer o lixo bolsonarista. Tenho a plena convicção, apesar dos inúmeros e lamentares pesares, que vosmecê era o único capaz de empreender um novo rumo ao país. Venci a minha indignação e mais, tenho a certeza, a sua trajetória hoje é muito mais avassaladora e vai muito além de sua precária âncora partidária.

Enxergo-lhe no menino de Garanhuns, com o coração nordestino e capaz de exibir grandes gestos de reconciliação com as suas origens, apesar do verniz paulista. São Paulo lhe deu o palco, mas a sua história é a de pau de arara pernambucano. O que me orgulha, certamente, é saber que quem conviveu com a miséria e a fome na infância tem cicatrizes profundas e a certeza de que nasceu para viver o que tiver que viver e compreender que os tormentos de ontem e de hoje não despedaçarão a sua história.

Os nordestinos anônimos, como eu, devotam-lhe fé e esperança. Não nos falte.

Hoje, tenho que lhe confessar que admiro a sua grandeza a flor da pele. É sua tarefa e sei que a fará e vai juntar os cacos provocados pela bestialidade e selvageria que atingiu moralmente e fisicamente os poderes da República. Existem pessoas que nascem e morrem sem nada saber porque existem outras que sucumbem a catástrofes humanas e políticas e renascem mais fortes. Vosmecê é uma destas.

Cuide apenas das ciladas dos fetiches do Poder, dos tapetes vermelhos, dos próximos amigos ou inimigos, e outra vez suba no Pau de Arara e sacuda a poeira das estradas que podem lhe cegar.

Hoje, diferente de ontem,47 volto a confiar em vosmecê. E pise com calma no seu chão pleno de vidros estilhaçados pela barbárie. Aja com prudência e faça o que toda criança nordestina sabe: mingau de milho se come devagar e pelas bordas para não se queimar. Deixe o resto esfriar.

A vida nos ensina que a brutalidade, ignorância ou intemperança – ou a soma delas – é prato que se come frio.

Olhe para os lindos céus e horizontes do Planalto Central, abra o seu coração. O resto a Providência Divina o fará. O seu povo aguardará os seus grandes gestos de Magistrado desta sofrida e pobre Nação.

Tal como Antônio Conselheiro, empunhe a sua cruz contra os impuros.

Com os meus respeitos de anônimo cidadão nordestino e campinense, despeço-me.

Francisco Barreto

SOBREVIVENTES DO NAZISMO, por Francisco Barreto

Dachau, campo de concentração na Alemanha sob o nazismo (Imagem da Enciclopédia do Holocausto)

Nos meus intensos e jovens momentos fora do Brasil, alçam constantes voos na minha memória e me fazem pairar há mais de 50 anos, com meridiana clareza, eventos reveladores. Em junho de 1969, por exemplo, fui informado da possibilidade de trabalho estival para “studentsarbeiters” na Alemanha. Rumei para Munique ao encontro de Gehard Metsch, num burgo chamado Tittmoning na fronteira com a Áustria. Fui recebido com fidalguia e por poucos dias fiquei em sua casa, num burgo medieval onde residiam várias famílias e tinha um pequeno castelo que na era napoleônica fora repartido com os aldeões nada aristocráticos.

Metsch era uma figura notável que se refugiara no Brasil durante o nazismo e retornara à Alemanha em 1966, para viver com a mãe que se ultimava. Havia saído da Alemanha em 1938, fugindo da sanha nazista. Em 1933, depois de encarcerar judeus, socialistas, anarquistas, comunistas e ciganos, a ira genocida passou a perseguir os católicos que haviam se organizado para se opor a Hitler e Munique era o centro da ultima resistência católica ao nazismo.

Implacavelmente, centenas de resistentes católicos bávaros foram presos, condenados a morte em câmaras de gás em Dachau, campo de concentração nos arredores de Munique reservado a religiosos, políticos e sindicalistas.  Metsch, condenado à morte à revelia, fugiu a tempo para o Brasil. Tive a profunda tristeza de visitar Dachau em 1972.

Metsch foi preso em 1936 e, como era apenas um adolescente, solto migrou para a Áustria. Em 1938, com a anexação da Áustria, foi para a Suíça, onde obteve um passaporte do Vaticano mediado por Anna Freud. Veio para o Brasil, onde ficou até 1966. Recebido no Brasil sob a ditadura de Vargas, nos anos 40 foi preso algumas vezes sob a brutal acusação de ser espião nazista. Graças à amizade dele com Anna Freud, obteve um laisser passer rumou de Marseille ao Rio de Janeiro e passou a morar em Petrópolis. Tinha conhecido o pai de Anna, o grande Sigmund Freud. Segundo ele, havia morado com a família Freud por algum tempo.

Em Petrópolis, ensinou alemão e conviveu muitos anos com Stefan Zweig e esposa, distinguido escritor judeu também refugiado no Brasil, de quem se tornou dileto amigo até a morte deste. Conviveu com o notável escritor até o seu desesperado suicídio com a esposa em 1942. Eram judeus e temiam a deportação, como acontecera com Olga Benário Prestes, em 1938 entregue à Gestapo por determinação de Vargas. Grávida, Olga é torturada brutalmente e morre em 1942, no campo de concentração de Bernburg. Havia dado à luz Anita Leocádia, que foi entregue à avó.

Gehard Metsch, da mesma geração de Joseph Ratzinger, ambos jovens adolescentes, bávaros e moradores do burgo Titmonning, na década de 30 eram militantes católicos antinazistas. Viveram o mesmo drama sob um mesmo terrível cenário na Baviera. Os dois jovens seguiram diferentes rotas. Metsch fugiu para o Brasil e Ratzinger foi obrigado ir para tropas nazistas. Quando fez 14 anos em 1941, Joseph Ratzinger teve de se incorporar à Juventude Hitlerista. Em 1943, com 16 anos, foi à guerra pelo alistamento obrigatório alemão e combateu numa divisão da Wehrmacht. Foi liberado pelos aliados em 44.

Retomando a sua vida civil, Ratzinger reencontrou a sua resistente família católica. Metsch só reencontrou a mãe trinta e poucos anos depois. Ratzinger Ingressou no seminário com o irmão Georg e foram ordenados padres em 1951.

Os jovens Joseph Ratzinger e Gehard Metsch foram sobreviventes do nazismo e fizeram da fé católica suas missões de vidas. De um modo direto com Gehard, e indiretamente através do último, tive a oportunidade de conhecer jovens mutilados pelo nazismo. Metsch retornou do Brasil nos anos oitenta. Tinha um extremado amor ao Brasil, quando pode consumar um desejo infindável que era de morrer no Brasil. Passou seus poucos últimos anos aqui.

Saíra da Alemanha infelicitado. Nunca conseguira viver a grande vocação que tinha tido toda a vida: a de ser padre. E dizia que seu grande e ultimo sonho era converter a mãe materialista Fraü Metsch ao catolicismo. Filho de general médico prussiano e de uma mãe que na juventude fora da famosa Liga Spartacus liderado por Rosa de Luxemburgo, de matriz marxista, anti-imperialista e revolucionária comunista. A mãe era materialista e anticlerical. Nunca permitiu que o Metsch, quando jovem, concluísse o seu seminário católico em Tübing.

Raztinger tornou-se padre e alcançou a santidade de ser o Papa Bento XVI, e Metsch apenas um devoto católico que passou a dedicar o resto da sua vida através da Misereor e a Ad Veniat, instituições católicas que ajudavam através delas os perseguidos da ditadura brasileira na Europa em suas dolorosas diásporas.

Metsch, no seu anonimato exemplar, deu uma grande contribuição para a distribuição dos compulsórios impostos religiosos “Kirchensteuer” para os países do Terceiro Mundo. Na Alemanha, até hoje são pagos impostos pelos alemães contribuintes cerca de 9,0% a.a. para as igrejas católicas, luteranas, israelitas e são doados no mundo inteiro a projetos sociais e das igrejas e do clero. O Brasil sempre foi alvo desta generosidade que custeia há décadas investimentos em infraestrutura, religiosos e projetos sociais.

Em 2001, fiz com a minha família uma linda viagem a deslumbrante Baviera e retornei a Titmonning às margens do Rio Salzach, que separa a Alemanha da Áustria por uma pequena ponte de madeira, sob a qual um curso de água desce celeremente em direção a Salzburg, chão natal de Wolfgang Mozart.

Fui até o Bourg de Titmonning encravado numa colina, entrei e a minha memória se aguçou. Fui a até a casa de Gehard Metsch refazendo um caminho que havia trilhado 53 anos atrás. Ousei e badalei um sino na porta da casa e me atendeu um simpático e velhinho casal. Perguntei-lhes sobre Gehard Metsch. Admirados com o meu infame alemão, indaguei sobre o querido amigo. Responderam em bayerisch, expressando com gestos negativos que ele não existia mais. E ainda acrescentaram de modo compreensível: “Kaputt in Brasil”.

Realizara Metsch o seu grande e ultimo desejo passar o resto dos seus dias no Brasil. No Rio de Janeiro, fechou os olhos e deixou os seus restos mortais.

NO TEMPO DO CANAL 100, por Frutuoso Chaves

Garrincha em ação no Maracanã (fotograma do Canal 100)

A estrada larga da internet me leva ao portal do Canal 100, “o maior acervo cinematográfico do futebol brasileiro”, na justa avaliação dos seus idealizadores.

Na verdade, aquilo que ia, semanalmente, aos cinemas do Brasil era muito mais do que a cobertura dos campeonatos e jogos amistosos. Leio que, de 1959 até 1986, com um cinejornal por semana, o Canal 100, criação de Carlos Niemeyer com ajuda luxuosa de Jean Manzon, difundiu 70 mil minutos de imagens sobre os principais acontecimentos jornalísticos de sua época.

Aquisições outras de cinejornais mais antigos possibilitaram a cobertura de conquistas, dramas e situações por quase todo o desenrolar do Século 20. O suicídio de Vargas, os carnavais, o evento da Bossa Nova, o da Jovem Guarda, os festivais da canção, o golpe militar de 1964 (assim não retratado, evidentemente), o movimento das “Diretas Já” e a eleição de Tancredo foram às telas de um Brasil que, à época, detinha um número de cinemas, no mínimo, quadruplicado.

Porém, foi com a cobertura futebolística que o Canal 100 tornou-se aplaudido e festejado, desde as maiores e mais requintadas, até as pequenas e humildes casas de exibição do interior. Eu vi edições suas pela primeira vez nos cinemas do Recife, o São Luís entre eles. Depois, na tela modestíssima do cineminha de Seu Zé Ribeiro, no Pilar da minha infância, onde chegava com atraso de meses. Na adolescência e na fase adulta, acompanhei o cinejornal de Niemeyer das cadeiras do Plaza, Rex, Municipal, Brasil, Tambaú, Santo Antonio, Glória, Torre e Metrópole numa João Pessoa que tinha dois cinemas em cada bairro mais populoso. Jaguaribe teve três.

O ritual era sempre o mesmo, qualquer que fosse a sala. As luzes apagavam, surgiam na tela alguns trailers de filmes futuros, o indispensável desenho animado, os seriados da ocasião – Tarzan, Capitão Marvel, Os Perigos de Nyoka…, antes de caírem em desuso – e, então, o Canal 100 com seu noticiário variado e seu momento mágico, o do futebol, antes do filme principal.

Neste momento, os acordes de “Na cadência do samba”, compostos por Luiz Bandeira e tomados como trilha da cobertura esportiva já levavam o público ao delírio. 

A tela grande e a angulação de câmaras, até hoje não aprendida pela televisão, punham cada espectador dentro do gramado. Nada nem ninguém aproximou tanto o público dos passes, dribles e gols quanto o fizeram os cinegrafistas do Canal 100.

O genial Nelson Rodrigues assim descreveu a coisa: “Foi a equipe do Canal 100 que inventou uma nova distância entre o torcedor e o craque, entre o torcedor e o jogo, grandes mitos do nosso futebol, em dimensão miguelangesca, em plena cólera do gol. Suas coxas plásticas, elásticas enchendo a tela. Tudo o que o futebol brasileiro possa ter de lírico, dramático, patético, delirante”. 

Talvez, o cinejornal não fizesse mais sentido neste momento em que os acontecimentos do mundo, esportivos ou não, têm difusão imediata com a ajuda de satélites que dispõem o que quer que seja, em tempo real, nas telas da tevê dos computadores e smartphones. Mas, nos idos de 1986 as maquinações do Ministério da Cultura com os lobistas da mídia tradicional apressaram a morte do Canal 100. Como? Resposta: impedindo a ideia da propaganda em cinejornal. Lastimavelmente.

O GÊNIO DA DIVINA NEGRITUDE, por Francisco Barreto

Pelé comemora gol contra a Itália na final da Copa do México, em 1970 (imagem copiada da Conjur)

Teve todos os dias da vida entre seu nascimento e morte na consagração de suas raízes negras dedicadas ao Brasil. Há mais de 60 anos importantes lembranças da minha vida infante da Copa de 58 vêm à tona.

Ainda criança senti a angustia e o prazer ao estar ao lado de um radinho ouvindo as façanhas de seleção brasileira na Suécia. Durante as emissões éramos muitos. Agoniados ouvíamos as emocionadas narrações dos radialistas que dominavam nós ouvintes nas ondas curtas de inúmeras rádios, a Nacional, Guaíba, Mayrink Veiga dentre outras.

O que está acontecendo? Pelé está na área? As sonoras respostas vagas e reprimidas, e só entendidas com os estridentes gritos de gols e Pelé era um dos nossos heróis. A bola transitava com tanta velocidade que era impossível ter qualquer precisa imagem. A inquietação era a de saber se Pelé e Garrincha estavam no ataque.

Basicamente nos contentávamos delirar com os gols da seleção que brilhava. Para Pelé não foi difícil se distinguir entre tantos craques: Didi, Vavá, Garrincha, Nilton Santos; Zito, Zagallo, Mazolla, sem esquecer Gilmar. Vicente Feola ao lado Aymoré Moreira comandava os meninos.

De longe, Pelé foi o brasileiro que mais abraçou e divulgou para o mundo o ser da alma brasileira. Ele que veio nos históricos rastros da maior chaga que sempre desonrou a formação nacional: a escrava negritude. Com seus irradiantes e generosos sorrisos tão característicos a toda a raça negra ele inundou o país com a sua alma livre e generosa que o sacralizou.

A sua imagem rompeu o tempo, veio de uma época em que a alegria dominava o Brasil, a Democracia, Kubistchek, Brasília, a Bossa Nova, o Cinema Novo, o nosso futebol. Era uma feliz outra era.

Pelé passou a ser a imagem mais definida do Brasil. Era “esférico”, ou seja, por onde o víssemos ele era muito bom. Humilde, carismático, generoso, artista, feliz, icônico, encarnava os trópicos lindos e felizes.

Durante alguns anos em que estive fora do Brasil, quando éramos indagados sobre as nossas nacionalidades, e respondíamos: Pelé. E o Brasil vinha então pela gravidade do prazer. Evitávamos nos sinalizar como brasileiros em repúdio aberto a então ditadura brasileira.

Em 1970, tínhamos um grave conflito político aberto por razões ideológicas e humanas. A Copa nos atemorizava ao termos que nos curvar e exultar as cores verde e amarela. As emoções nos atraiçoavam e não impediram de ver todos os jogos. Pelé nos cegou e abrandou pela sua genialidade. Adorávamos a seleção, detestávamos o Brasil dos militares. Nos curvamos à profunda brasilidade futebolística que nos impunha o prazer e nos reduzia a um estado de letargia ideológica.

Pelé e sua trupe temporariamente nos esterilizaram politicamente. Fomos felizes por alguns dias. Depois mergulhamos no submundo do exílio. Num choque ideológico desfeito retomávamos a nossa contestação à Ditadura fazendo faixas, pichações, cartazes nos prédios, sobretudo na Cité Internacional Universitaire, e nos imóveis da Sorbonne: “Brésil, Champion Mondial de la Torture”.

Mas a vitória do tricampeonato ficou tatuada na alma. Lembro que em meados de Julho de 70 fui a Roma, e durante o trajeto fomos abordados pelo controle fronteiriço e alfandegário e arguidos pelo oficial fiscal: Nationallitá: Passaportes! Respondíamos em coro: Quatro a Uno! Palavrões foram pronunciados, os quais, que só eles os italianos os dizem com agradável e sonoridade embora insultantes: Porca Madonna!

Hoje o que mais me comove é sentir que Pelé foi e será sempre a representação mais legítima de um Brasil negro. Veio do nada e com recursos pauperizados do futebol se impôs e transmitiu ao mundo a honra, a grandeza de ser um gênio da raça negra brasileira e mundial. Não foi apenas um ícone futebolista. Muito além se curvando à sua negritude mostrou a dignidade e o esplendor de suas origens que em séculos foi sepultada pelo escravismo e pelo racismo indigno.

Assim vejo Pelé encarnado na sua negritude e na grandeza de sua raça liderando na condição do mais importante estimado brasileiro de todos os tempos no mundo.

O Brasil e seus brasileiros têm o dever se curvar pela remissão de seus históricos e atuais preconceituosos pecados se declararem humildes e convictos que o Negro Pelé é um dos gênios da nossa Nacionalidade.