Acabo de lembrar. Não fui à casa da dona Conceição, de quem, dois dias antes, eu atendera ao telefonema: “Venha para uma tapiocada. Os meninos estão em João Pessoa e querem rever os amigos de infância”. Diga-se desses meninos que um deles ultrapassou os 70 anos e o outro é sexagenário.
Foram educados pela irmã como se filhos fossem. Tornei-me próximo do mais velho, nos idos de 1970, quando comungávamos das mesmas apreensões com o presente e o futuro de uma Nação subjugada e amargurada.
Anos antes, esse meu amigo vira-se obrigado a largar a Faculdade no Recife a fim de salvar a pele. Ocupava o cargo de tesoureiro no Diretório dos Estudantes no momento em que os militares, já autorizados pelo Ato Institucional nº 5, o mais draconiano dos decretos ditatoriais, punham a tropa e tanques nas ruas, desmobilizavam sindicatos e agremiações, prendiam lideranças e cassavam direitos políticos e estudantis.
Meu amigo perdera o direito de estudar. Avisado a tempo por alguém da família com posto de oficial do Exército, fugiu para os confins de Pilar, antes que fosse preso e torturado, como tanta gente o foi por lutar, apenas com a força das palavras, contra um regime que matava a liberdade e a esperança.
Em 1970, com pouco mais de 20 anos, eu dava meus primeiros passos no jornalismo. De resto, ia duas vezes por semana a Pilar (às quartas-feiras e sábados) para dar aulas a cinco turmas de um colégio da Campanha Nacional das Escolas da Comunidade. O salário quase simbólico ficava todo no bar de Manoel Cego e nos forrós da Serventia ou, da Maloca.
Todos os fins de semana estava eu em Pilar a rever os ambientes da infância e as amizades. Namorávamos duas garotas da mesma rua e, muitas vezes, dividíamos, os quatro, o mesmo banco de praça. A conversa transcorria animada sobre temas amenos e variados até por volta da meia-noite, quando nos despedíamos: as meninas recolhiam-se e nós tomávamos o caminho da gandaia.
Duas Marias das Graças, ou duas graças de Marias, como queiram, nos esperavam no balde do açude (quando a caminho do bairro da Serventia) ou na cabeça da Ponte (quando no rumo da Maloca) e, qualquer que fosse o destino tomado, não iríamos dormir antes do nascer do Sol.
Hospedavam-me ora um primo ora dois amigos. Faltasse eu a um deles e lá vinha a reclamação dos pais: “Porque Tuta não veio?”. Ah, a velha e boa hospitalidade do interior…
Levamos algum tempo para descobrir como as namoradas sabiam com detalhes dos nossos passos pelas madrugadas, razão de brigas e rompimentos. Tinham nas empregadas de casa repórteres infalíveis. De todo modo, vivíamos para esses bons momentos num Brasil que, então, respirava o medo e a angústia.
Peço perdão à dona Conceição e a seus meninos. Não pude atender ao convite. O trabalho, nesse dia, tomou-me o tempo e a lembrança. Soube que me esperaram até a meia-noite. E não duvido de que o tempo da espera tenha sido determinado pelo amigo liberto como a Borralheira depois das doze badaladas.
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