SENTIMENTOS DA IDADE, por Francisco Barreto

Renitentes, e imperativos como uma sombra, certos sentimentos me perseguem e me fazem deslizar constantemente na pessoal arguição: sou ou estou velho?

Sempre tive a constante cristalização de que ainda não sinto ter esgotado a cronologia da vida. Fragmentos e intensos sentimentos de juventude desmentem a minha idade. Nunca me sinto rígido como um código de barras submisso à tecnologia que impõe o dever.

Nunca me inquietei com as idades que tive. Vivi como um danado. Medo ou coragem não me recordo se os tive ao enfrentar os meus caminhos por mais tortuosos que tenham sido. Não sei se me acometeram também vacilos ou graves temores.

A morte sempre a releguei a uma condição de uma longínqua ideia com uma desprezível projeção. Calendários existentes, sempre os achei que o tempo e a sua inexorabilidade podem passar, as pessoas não.

Impetuoso e atrevidamente admito até hoje que não se devem perder paixões, e que é melhor se perder nelas pelos desejos com emoção.

Os acertos e os contrários defrontados até hoje fazem a minha mente vivamente querer conservá-los e fazer tudo de novo similarmente. Até por que há uma estranha dialética entre o amor e o desamor. Da vida sem a percepção da morte.

As coisas da vida real ou dos sonhos são o que elas são e nunca o que gostaríamos que elas fossem.

Paixões as tive e também as perdi. Cumpriram um pequeno ou grande ciclo de emoções. O que seria dos amores se não houvesse a evidência dos desamores. Agora, pouco importa. Em outros termos, nos termos de Camus, “o que seria da vida se não fosse a morte”.

Os anglo-saxões têm uma verbalidade extraordinária. “Não somos velhos. Apenas somos – ‘ageless like a wine’ – intemporais”. Até por que todos os idosos são mais interessantes pela sua renitente jovialidade, experiência e equilíbrio. Parece que hoje, mais do que antes, ser idoso é ser e estar up to date. Estamos na moda porque “temos crepúsculo no olhar”, como nos assegurou Rubens Alves.

Ao cérebro e à mente ativos não devem se sentenciar apenas frustações e cultivar saudades e lamentos pela nossa não mais juventude como nos sentenciou Marcel Proust na irrealizável “recherche du temps perdus”.

Devemos nos debruçar com alegria sobre o continuum de todas as nossas idades. Cumpre-nos apenas reinventá-las. Os tempos pretéritos e a idade provecta nos ensinam contemplar que a vida é como o mundo, é uma escola, e que após os aprendizados temos o direito de usufruir dos nossos intermezzos e pausas que nos reservam a recreação e o lazer, ou seja “le bonheur de vivre”, como nos revelou Matisse.

A genética responde apenas por um quinto das nossas vidas. O resto é caudatário apenas do estado de espirito que nos revelam os gênios geneticistas de Havard. A data de fabricação pouco importa. A libido não se aposenta, os sonhos demonstram que os mitológicos Eros e Psiqué já não têm subterfúgios e continuam vivos . O que nos ofende: é o infame preconceito da idade do que hoje se designa de “etarismo”. A morte é apenas um incidente técnico.

A sexualidade não se extingue, recicla-se ao seu tempo. E mais: são fundamentais o que nos ensinam as veredas da idade a sermos pacientes e sábios. A cada tempo se vão as longas partituras e ficam nas lembranças vividas preciosos adágios e que a cada momento, estes sejam dedicados à alegria e à doçura do verbo viver.

A genética tem segredos insondáveis. Cumpre-nos a cada momento domesticar as nossas improváveis façanhas. A nossa condição de veteranos impõem-nos limites às transgressões que o corpo já não mais atende. O espírito e as mentes não têm restrições ao ser e ao pensar que somos melhores do que fomos na juventude. Os desafios que nos impõe a vida não encontram respostas nas juris (prudências) da vida jovem que frequentemente se ampara na frivolidade e na esbórnia que frequentemente se cristalizaram em frágeis e inconsequentes desejos e energias.

Se já não somos, como erámos, temos que ser melhores porque a inteligência, a experiência e o intelecto abençoam as nossas idades. Todo tempo é tempo para abdicar de nossas medíocres impossibilidades e desafios. Só o tempo nos ensina.

Para além da tão questionada e aviltada “velhice”, as nossas úteis e serviçais bengalas nos conduzem também aos certeiros alvos da jovialidade equilibrada nos indicando passos seguros ao prazer de estarmos e sem tropeços sermos o que podemos e temos que ser. Já não trocamos lâmpadas, mas temos lumens a oferecer.

A dimensão temporal pode até ser curta, mas a vida bem vivida, ainda que, minutada, é longa e profícua. Os nossos caminhos podem sempre desembocarem em “blues zones” de prazeres.

(Fotos: arcevo do autor)

TEMPO, ME LEVA, por Frutuoso Chaves

Desembarque de Cabral, de Oscar Pereira da Silva (Wikipedia)

Recife, quase término dos anos de 1950. No pátio do Mercado Público de Coqueiral, domingo de feira livre, tiro do bolso uma nota de cinco cruzeiros novinha, estalando, a fim de pagar por uma vitamina de banana, muito bem achocolatada, no balcão da lanchonete preferida.

Não me incomodará a descrença de alguns nessa história. Sintam-se desculpados, até porque meus três filhos, quando pequenos, nunca acreditaram que a qualquer menino, em qualquer tempo, fosse de bom grado o mínimo desembolso com aquilo que detestavam. Sempre acharam que vitamina em lanchonete fosse invenção minha para fazê-los tomar o que tinham em casa, gratuitamente, antes de irem à escola.

Mas é verdade. Meninos como eu, naqueles dias, pagavam pela mistura de banana, leite gelado e Toddy. É que o espetáculo daquelas paletas girando e triturando tudo já compensava o gasto. Liquidificador, minha gente, ainda era coisa inexistente na maior parte dos lares. Gastávamos, então, com aquilo e com um bolinho de saia, o acompanhamento invariável.

O troco recebido dava para comprar o gibi do Fantasma e ir à matinê do Cine São José contra os propósitos da Tia Marinha disposta a fazer de mim um estudante de Teologia e, quem sabe, um pastor adventista. “Deixa o menino”… É a voz do querido Tio Tito, que agora me chega aos ouvidos.

O dinheiro ora vinha dele, ora atravessava o Agreste da Paraíba e a Zona da Mata de Pernambuco no lombo de um dos trens da Rede Ferroviária do Nordeste, dentro do malote dos Correios. Neste último caso, teria sido despachado em envelope com uma cartinha desde a Padaria de Seu Juca, meu pai, em Pilar, pelas mãos zelosas da minha mãe.

Quantas lembranças me desperta a cédula de Cr$ 5,00 (assim que se escrevia) com a figura no verso do Barão do Rio Branco há pouco por mim encontrada na internet para desassossego da alma. A todos nós, em fase de crescimento, o reverso parecia muito mais interessante, pois continha a reprodução de “A Conquista do Amazonas”, o quadro que Antonio Parreiras compôs, em 1907, com umas indiazinhas tão nuas quanto as de Victor Meirelles, na tela da Primeira Missa.

Aquilo nos encantava como encantados decerto ficaram os conquistadores do Pará e, muitos anos antes deles, os marinheiros de Cabral. Podem duvidar da história da vitamina. Mas não perdoarei os que desconfiarem de Pero Vaz de Caminha.

O cronista do descobrimento, assim tido por muitos, contou a história daquele achamento e daqueles corpos belos de adãos e evas. Mas não contou a qualquer um e, sim, a Dom Manuel I, o rei. Este, sem pestanejar, dispensou os censores e a censura. Fosse Frei Coimbra se queixar ao Papa.

O que escreveu Caminha? Lá vai: “Ali andavam entre eles (os nativos) três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam”.

Também: “Uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima, daquela tintura. E certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela”.

São trechos da bela e singular certidão de nascimento disto que hoje conhecemos por Brasil. E são, agora mesmo, para este septuagenário, traços de um painel impresso pela saudade, sem roteiro nem ordem, numa nota de Cr$ 5,00. A juventude, o pátio de Coqueiral, cenas da colonização, os gibis, o cinema, tudo isso acondicionado na exígua superfície de uma cédula extinta. Quase esquecia: assim, também, as vitaminas das manhãs de domingo num balcão de lanchonete.

TEMPO INESQUECÍVEL, por Babyne Gouvêa

Imagem copiada de madinbrasil.org

Imagem copiada de madinbrasil.org

Aos dez anos, estudava em colégio de freiras onde a rotina educacional seguia regras rígidas. As alunas, de uma maneira geral, conviviam bem com a idade pueril. Não atropelavam a infância em busca da adolescência.

Eis que ocorre a chegada de uma colega vinda do Rio de Janeiro, com novidades precoces para a meninada de comportamento infantil. O seu nome era Celina.

Celina comunicou às colegas que tinha um namorado que se chamava Ricardo. O zum zum zum estava formado. A notícia fomentou a curiosidade em saber pormenores sobre o namoro dos dois.

Fiquei atônita. As amigas, serelepes, me chamavam de “A Inocente”. Elas percebiam que eu era avessa ao assunto. Totalmente. Naquela idade só pensava em estudar e brincar.

Lembro bem que um garoto que residia próximo à minha casa jogou pela janela da sala um papel com recados carinhosos para mim. Como chorei na ocasião! Deixei de tê-lo como companheiro das brincadeiras.

A precocidade de Celina, de certa forma, me fez ver malícia em certos garotos. Os olhares, as palavras , os recados dirigidos a mim, desencadearam reflexões sobre a minha infância, que eu teimava em conservar. A puberdade dava sinais mas era ignorada.

Garota bronzeada, com cabelos dourados, Celina se mostrava dona do pedaço quando o assunto era namoro. Algumas colegas a tornaram um exemplo a ser seguido. E aí, como eu ficava? Não queria ser hostil nem hostilizada por nenhuma delas.

A alternativa foi tornar natural o meu crescimento, mesmo contra a minha vontade. Tive no esporte um aliado, não sentia o desenvolvimento vindo à tona. Quando percebi estava formada física e emocionalmente, pronta para encarar a adolescência, sem temores.

Surgiram os paqueras, mas a ideia do namoro me inquietava. Significava perda da independência. Rememoro um namoro terminado às vésperas do carnaval. Foi o melhor carnaval da minha adolescência.

O que me causou essas reminiscências? Simples lembranças de um tempo inesquecível. Ontem, durante o lançamento do livro de um grande amigo, encontrei depois de muitas décadas, um integrante da família da minha querida amiga – Simone Cavalcanti Furtado Rabelo. Família que marcou a minha adolescência.

Que abraço carinhoso! Em segundos, a memória aflorou todos os instantes de plena felicidade vividos naquela família tão acolhedora. Alegria existia em tudo. O elo com a família Cavalcanti me ensinou a assimilar leveza, inclusive quando o assunto eram ingênuas paixonites.

Essa fase foi curta, mas intensa. De repente, adolesci e me tornei adulta. Não houve tempo para as flutuações e rebeldias típicas da adolescência. Vieram as responsabilidades de outra etapa da vida.

Santa Luzia homenageia maestro com retreta e livro

Maestro Chiquito (foto: SescPB)

A Filarmônica 26 de Julho e a Banda de Música Duarte Machado estão entre as atrações da Retreta para o Maestro Chiquito que será realizada na noite desta sexta-feira (16), em Santa Luzia.

Outros instrumentistas do Vale do Savugy e de outras regiões do Estado deverão se juntar, na homenagem a Chiquito, aos músicos da Filarmônica, que é de Patos, e da Banda, formada em Santa Luzia, cidade onde nasceu o maestro.

A Retreta terá início às sete da noite, na Praça Silvino Cabral, onde haverá ainda o lançamento de ‘Maestro Chiquito, o Metalúrgico dos Sons’, livro de autoria do também músico, cantor e compositor Adeildo Vieira.

Maestro Chiquito

Francisco Fernandes Filho, o Maestro Chiquito, é natural de Santa Luzia, município referência do Vale do Sabugy, no Seridó paraibano.

Chiquito iniciou sua formação musical na cidade natal, de onde migrou para João Pessoa para se graduar Bacharel em Música pela UFPB nos anos 80. Após 42 anos de carreira, é hoje dos mais aclamados regentes e arranjadores do Brasil.

O maestro fundou e participou de diversos grupos e orquestras na capital paraibana, entre as quais a Metalúrgica Filipéia, em 1984, e a Big Band da Escola de Música Toque de Vida (Emtoque), no primeiro decênio deste século.

Multi-instrumentista, mais dedicado ao trompete e à percussão, tocou  também na Banda Municipal 5 de Agosto e integra o cast da Orquestra Sinfônica da Paraíba.

 

AS PREGAS DE QUELÉ, por Frutuoso Chaves

Antiga Casa dos Leões na Praça Siqueira Campos, Crato-CE (foto copiada de ‘O Crato de Antigamente’, de Armando Lopes Rafael, no Blog do Antônio Morais)

Num desses passeios costumeiros pelas trilhas da Internet pus as vistas em resenha antiga do livro “Narrativas Orais no Bairro Vermelho”, uma coletânea de ditos populares organizada pela historiadora Ana Rosa Dias Borges. E ali descobri a origem da expressão “As pregas de Quelé”. Com edição aprovada em edital do MEC e, portanto, com o selo da Funarte, a obra trata, em meio a outros temas, de um dos bairros mais antigos do Crato, município cearense.

Seu Quelé, homem negro, pintor de parede e servente de pedreiro, trajava, fora do trabalho, roupa de linho branco engomada a capricho e com a qual tinha cuidados extremos. Cuidava, por todos os meios, de não amassar aqueles vincos, o que era inevitável dada a necessidade de sentar e levantar, ato imperioso a qualquer ser humano.

Na minha e, certamente, em todas as infâncias desta nação chamada Nordeste, tinham as pregas de Quelé aquelas e aqueles metidos a besta, gente de nariz empinado, afetada, com ar de nobreza. Quem não conheceu tipos assim? E quem não os conhece, hoje em dia, porquanto o deslumbramento e a afetação desse gênero atravessam os séculos?

Seu Quelé e suas pregas advêm de princípios de 1950, informação que me trouxe a resenha do livro surgido da coleta de causos, expressões e ditos por jovens moradores do bairro cratense, a mão de obra inicial de que se valeu Ana Rosa.

Até essa leitura, eu e minha estupidez atribuíamos outro significado ao dito popular. Quelé, nome cuja terminação não permite identificação de gênero, poderia ser homem ou mulher. Mas, em ambos os casos, teriam, ele e ela, certas pregas em comum. Não me ocorria, porém, o que, porventura, com elas houvesse acontecido. Coisa boa, certamente, não era.

Pobre do Seu Quelé. Evidentemente, não merecia o deboche. E disso não seria vítima se a vizinhança, esta sim, não supusesse que o trabalho braçal e a pobreza exigem pouca higiene, mãos sujas e vestes rotas. O defeito estava, sem qualquer dúvida, naqueles que dele se acercavam. Nos despeitados com seus bons modos e seu linho branco.

Assim, peço-lhe perdão por todas as vezes em que vi suas pregas nos presunçosos nossos de cada dia, alguns com postos badalados na literatura, outros na administração pública e outros mais na política.

Também me desculpo com aquela moça a quem, por algum tempo, atribuí o ar indevido de superioridade, a deseducação expressa em respostas sempre monossilábicas, a indisposição para encarar nos olhos o interlocutor, a recusa sumária a qualquer convite. Contaram-me que ela já somava três consultórios psiquiátricos, a fim de se livrar da timidez aguda e renitente.

E, afinal, quem sou eu para julgar alguém? Pareço, no mal sentido, as pregas de Quelé.

HUMILHADOS E OFENDIDOS, por Francisco Barreto

Prédio onde Francisco Barreto morou em Paris, no quarteirão árabe (Foto: acervo pessoal)

Não posso deixar de externar a minha felicidade se, em vez de europeus, berberes e tuaregues ganharem a Copa do Catar

Nos meus tempos de Paris, na condição de desenraizado pude conviver com situações tormentosas presididas pela xenofobia, racismo e chauvinismo cruel. Senti na pele o que é ser considerado um “defroqué”, alguém que se aproxima da condição de bastardo. Assim erámos nós.

Logo na França, uma nação que em tempos memoráveis deu à luz os mais formidáveis conceitos a serem cultivados à dignidade humana: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Tudo à conta dos ecos das vozes da liberdade e da grandeza humana, tudo sob a regência da revolucionária Marseillaise.

Com o meu semblante de “métèque”, como disse Georges Moustaki, o cancioneiro greco-egípcio com ‘cara de ladrão ou de vagabundo’ era sempre um estrangeiro que não inspirava confiança. Fui muitas vezes confundido com norte-africanos: marroquinos, argelinos ou tunisinos. Em muitas ocasiões, eu e vários amigos brasileiros, sobremodo nós, que tínhamos cabelos longos e portávamos boinas bascas tal como o Che Guevara. Pesavam a nossa tez e o biotipo.

Éramos importunados por policiais à luz do dia com admoestações. “Papiers!”. Tínhamos que mostrar os documentos. Uma das vezes, em pleno Boulevard Saint-Michel, eu e Fernando Falcão fomos interpelados e, ao verem que não erámos árabes, e sim brasileiros, fomos insultados: “Paris deviens une poubelle”. Literalmente, disseram-nos: “Paris virou uma lata de lixo”.

Eram, e ainda devem ser, mal tratados os negros e os norte-africanos vindos de colônias francesas. Essa população migrante para França, Inglaterra e Bélgica sempre foi acolhida como trabalhadores clandestinos super explorados. Esses migrantes, com medo de serem extraditados, trabalhavam e viviam silenciosos nas periferias com favelamentos infectos que chamam de “bidonvilles”, bairros de latas sob casebres onde pobres famintos resistiam às nevascas e ao frio.

Contavam-se centenas de milhares sem qualquer elementar direito, desmunidos de documentos, vivendo com trabalhos escorchantes e sub-remunerados. Tinham medo de pedir qualquer apoio social. Ao longo do tempo, ampliaram seus nichos familiares que passavam a proliferar os “cidadãos franceses” árabes e negros.

Dessas populações nascidas em solo francês, em sua grande maioria mulçumanas, surgiram nos últimos tempos os jovens que começaram a engrossar os pelotões de extremistas do Islã, prontos para praticar atos terroristas dentro e fora da França, que tornou-se um alvo prioritário. Levou a França a um processo repressivo extraordinário a todos os tipos de migrantes, inclusive a nós,  latinos.

No momento atual, a população marroquina soma quase dois milhões em solo francês. Sem contar os argelinos, os tunisinos e os negros da África Equatorial dita francesa. Essas pessoas guardam uma endêmica aversão e ódio aos franceses. Antagonismos que vêm desde a dominação colonial há mais de cem anos. Os norte-africanos, pais e filhos que se tornaram cidadãos franceses por nascimento, para as classes e elites dominantes são um câncer irreversível.

Morei com um amigo brasileiro, José Machado, num bairro decadente habitado por trabalhadores norte-africanos na rua Moulin de la Pointe, próxima a Place d´Italie no 15ème. Uma rua totalmente árabe, onde não havia uma única mulher. O prédio em que morávamos era mórbido e depressivo. Dava medo de dia e à noite, era assombrador. Não circulávamos ao anoitecer. Menos pela população árabe e mais pelas blitze policiais que recolhiam transeuntes, marginais ou não.

Eram acolhedores os marroquinos. Alegres e simpáticos, sobretudo quando fomos reconhecidos como brasileiros. Passamos a frequentar um pequeno bistrô argelino onde travamos conhecimento de uma especialidade formidável, o cuscuz marroquino e um bom vinho, o Mascara argelino.

No tempo em que estivemos no quarteirão árabe, pela fraternidade começamos a entender a ignorância de uma sociedade pelo modo como tratava nossos irmãos norte-africanos e negros.

A França xenófoba e colonialista foi cruel e exterminadora com os povos do Viet Nam, do Cambodja, da Argélia, Tunísia, e Marrocos e todos os povos da África Equatorial Francesa e dos territórios do Sahara.Torturou e matou. De Gaulle a tudo fechou os olhos e a consciência.

Dos árabes amigos ficou a alegre e fraterna saudação – Salamaleico. Nunca a esqueci.

Força, Marrocos!

FORÇA, MARROCOS! por Francisco Barreto

Rick’s Café, cenário de encontros e desencontros em ‘Casablanca’ (Imagem do filme)

Subitamente, o futebol me trouxe algumas remotas lembranças sobre a minha tênue convivência com o mundo marroquino. Revivi minhas andanças que tangenciaram as minhas proximidades com o diferente e extraordinário mundo árabe.

Até 1969, a única referência memorial era com o filme Casablanca, um clássico que ganhara o Oscar de melhor filme dos melhores roteiro e direção de Michael Curtiz, e que me evocou o romance do filme de 1942, estrelado por Ingrid Bergman e Humphrey Bogart. “Play again it, Sam”, o pianista-ator do Rick´s Café, interpretado este por Arthur “Dooley” Wilson o pianista que atendia à comanda lindamente feita numa certa cena em que Ingrid Bergman pedia para que Sam tocasse novamente a melodia “As Time Goes By”, uma inesquecível musica de Max Steiner.

Era tudo que sabia do Marrocos. Muito pouco. Apenas uma distante referência a Casa Blanca, cenários num hotel, o piano, as ruas da Medina, e a guerra de 45 nas cercanias. Décadas depois, seduzido pelo filme,  em janeiro de 1973, há 50 anos aterrissei no Marrocos, precisamente em Casablanca.

Estava comigo minha irmã Sandra. Fora apenas uma escala de dois dias. O suficiente para me sentir atraído pelo agitado e arriscado mundo árabe marroquino. Ir a Medina, ver a deslumbrante mixagem das arquiteturas mouriscas e o art-déco de Casablanca me deixou pasmo.

O deslumbrante Quartier Habous com seu formidável Mercado de Antiguidades nos deixou abismados e nos consumiu quase um dia todo. Exaustos, eu e minha irmã nos aboletamos numa pequena Riad, numa tenda árabe com estilo berbere plantada num um aprazível e lindo jardim e lá nos deleitamos com uma especialidade típica da África do Norte, um baratíssimo Cous Cous Royale que era uma caldeirada de variados tipos de carnes, exceto porco, acompanhando um cuscuz feito à base de sêmola de trigo.

Escoltava a formidável comida um molho com uma pimenta chamada Harissa, que não tocamos, pois sabia do explosivo efeito incendiário. A nossa má humorada malagueta era uma guloseima infantil comparada a Harissa.

Caminhamos por horas naquele extraordinário mercado, e tivemos uma inusitada abordagem de um berbere qualquer que em francês me perguntou sobre a mulher que estava comigo, a minha irmã, e antes que viesse me oferecer por ela um escambo qualquer, quiçá um dromedário, o adverti curto e grosso e lhe disse: “É minha esposa”. Conversa encerrada.

Em uma outra ocasião, o amigo Humberto Espínola enfrentou uma situação inusitada quando um grupamento berbere no interior do Marrocos manifestou o interesse de fazer um escambo qualquer com a esposa dele, Arlette, ao que, imbuído de seu DNA sertanejo de Misericórdia, brabo, reagiu. Entraram no carro e foram embora deixando para traz a barbárie.

A minha mais remota memória, poucas vezes quando aterrissou no Marrocos, sempre tinha sempre impulsos que recorriam a passadas incursões cinematográficas, estas de modo distante e impreciso me impregnaram fortes imagens do mundo árabe norte-africano.

Revendo as minhas lembranças sobre o Marrocos emergiu à minha lembrança outro belo filme, Beau Geste, com Gary Cooper e Susan Hayward sobre a Legião Estrangeira,  grupamento militar francês que atuava no Saara dando combate aos berberes e tuareges para assegurar o violento domínio imperial colonial da França com massacres em toda a África do Norte. Trouxe-me a película a aventura de ter estado com meu pai muito criança no Cine Plaza. O entusiasmo de meu pai com as cenas de combate naquele filme Beau Geste marcou para sempre minha memória, e a minha admiração por Gary Cooper, apesar do seu fanhoso sotaque americano.

Hoje, na ambiência da Copa do Catar, mergulho muitas décadas atrás refazendo as minhas imagens sobre o Marrocos, os árabes tendo hoje diferentes conceitos que me foram revelados pelas asfixiantes e xenófobas atitudes da França e dos franceses metropolitanos. Contra os árabes e nós brasileiros, quando confundidos com os mouros.

Contemplo hoje com prazer os marroquinos que demonstram a alegria e o orgulho de serem hoje os vencedores árabes, os mesmos que há séculos atrás enobreceram a península Ibérica, notadamente a Andaluzia tristemente massacrada pelos campeadores, como o tão decantado D. Rodrigo de Bivar, o El Cid.

Quem já esteve em Málaga, Granada, Sevilha, Córdoba, Jerez, Cadiz, Valencia, Alicante, Murcia ou Almeria saberá avaliar a histórica contribuição da civilização moura vinda de Fez, Marrakech, Rabat, Meknès e Casablanca, cidades imperiais do Marrocos.

Força, Marrocos,!

QUE OS CÉUS ME AJUDEM, por Frutuoso Chaves

Imagem: Wikimedia Commons

Acredite. Muitas vezes, não vale a pena pesquisar aquilo que não se entenda. E vale menos ainda se o assunto disser respeito à medicina e seus tratos.

Um formigamento leve, coisa quase imperceptível, e lá fui eu recorrer ao São Google, esse ente prestimoso, sempre disposto ao socorro, onipresente, muito entendido de qualquer ciência.

Pergunte sobre o Sovaco da Cobra e a resposta está lá, na ponta da língua. Quem quer saber disso? Eu bem que desejo, pois sou amante do tema e suas expressões. Além do mais, sofro como o diabo o distanciamento físico de talentos com existências passadas e presentes, a exemplo de Abel Ferreira, Pixinguinha, Zé da Velha, Guinga, ou Hamilton de Holanda.

O primeiro compôs o clássico do gênero, espantoso pelo título (cobra não tem sovaco), pela beleza das notas e pelo desafio da execução, coisa para virtuosos. Os demais consagraram a casa homônima, na zona boêmia do Rio de Janeiro, onde eu, condoído, nunca estive nem estarei, porquanto o lugar já fechou, ao que o Google me conta.

Elemento 137, universo paralelo, tecido cósmico, vidas extraterrenas, fissão nuclear? Pergunte e o Google responde. Mas não pesquise formigamento. Nem isso nem outra coisa relacionada a qualquer mal estar orgânico. Ainda mais se a coceirinha for – como direi? – naquele apêndice que mais diferencia os homens das mulheres. Aquele com que, ainda em idade fetal, caso a criatura esteja de perna aberta, o doutor sentencia: “É homem”.

Pesquise e se arrependerá. Eu me arrependi. Sem cerimônia, o Google me encaminhou para o quesito “Urina”. Você, se não for do ramo, não faz a menor ideia daquilo que seu xixi pode denunciar. Saí da leitura com a impressão de que o sangue, muito menos significante, não me faria falta.

Diabetes eu já sei que tenho. E foi a urina quem isso primeiramente boatou, tempo atrás, quando dela fiz um exame por obrigação médica. O sangue, em quem apostei mais dinheiro esperançoso do desmentido, diria o mesmo, 24 horas depois, confirmando a má notícia. Por essa e outras é dele que fiquei com raiva.

“Triagem que auxilia no tratamento de patologias diversas”. É a justificativa que o Google apresentou para cobrar de mim o teste rotineiro da urina.

Pedra no rim, lesão dele próprio decorrente de hipertensão arterial, infecção de origem bacteriana e, até o que mais me assustou, “patologias raras, doenças metabólicas hereditárias”. Eis a lista daquilo que pode me pegar de tocaia numa dessas esquinas da vida.

Valha-me Nossa Senhora. Eu apenas queria a indicação de uma dessas pomadinhas que a farmácia, em tempo de isolamento, entrega sem receita médica na casa do freguês. Melhor ainda, me bastaria algo como um chazinho com o gosto das avós e tão eficaz quanto elas.

Quem eu penso que sou? Por que fui me meter a pesquisar coceira, fosse lá onde fosse? Pago, então, com meus receios pelo enxerimento. Só não fico mais preocupado porque, agora mesmo, sinto que já me passa o incômodo. E lá vem o Google me aconselhar exame urinário rotineiro.

Faço nada. Prefiro passar desta para melhor, absolutamente despreocupado. Eu quero, quando minha hora chegar, é morrer feliz. É partir com saúde.