O primeiro foi seu pai. Nem poderia ser diferente. O homem tinha adoração por aquela criatura. Deu-lhe tudo o que pôde e o que não poderia, pois assim o fez, não raras vezes, com a negação de algo ao restante da família, ou à despensa doméstica. As bonecas da vitrine, as roupinhas da moda, bicicletas e patinetes adquiridos a penas duríssimas quase lhe renderam, de tão constantes, o desquite.
“Você vai estragar essa menina”. Quantas vezes não ouviu isso em casa. Calava para fugir de brigas nas quais sempre levaria a pior. E engolia em seco a impressão de que a mulher não merecia muito aquela a quem havia parido.
Teve no desmame da pirralha, antes dos dois meses, a oportunidade para se fazer a melhor das mães. “Meu peito secou. Ela puxa e não sai nada. Não tenho mais o leite”, anunciou a mulher. Ele o teria em incontáveis mamadeiras, prazerosamente.
Quase morreu, 16 anos depois, quando lhe veio o comunicado: “Pai, estou grávida”. Os detalhes chegaram, pouco a pouco, à medida que recuperava o fôlego e a consciência. O projeto de genro, um colegial com espinhas na cara, foi escondido no Recife. Tomou o trem um dia depois da revelação.
Escândalo na cidadezinha. E todo o acolhimento paterno à filha violada. Não lhe negaria a mão nem a bênção. No ano seguinte, a menina voltaria ao colégio já recuperada do aborto. Deus sabe o que faz, diziam uns, enquanto outros culpavam os chás de dona Zefinha, a curandeira.
Os peitos secos terminariam por levar a companheira ao túmulo. De nada valeu a mastectomia. E o homem definhou. Foi-se, também, dois anos depois da viuvez. A menina e os negócios da família ficariam com o filho já adulto, a quem, antes do último suspiro, aquele pai dedicou o tempo não dedicado até então.
Os bens herdados pelo moço não se resumiram à casa na cidade nem à pequena propriedade rural com lavoura pouca e umas tantas cabeças de gado. Incluíram, também, o coração paterno brando e generoso.
Um coração que sangrou com a má sorte da irmã no casamento e quase perecia ao enfrentar o cunhado de olho na repartição da herança. Sabia que a metade daquilo que o pai lhes deixara seria consumida em farra e jogatina. Na terceira surra que a viu tomar armou-se de coragem e facão e pôs o sujeito para correr. Deu a ela o abrigo e a proteção que o pai não negaria.
Que alegria eu tive ao revê-la, dias atrás, impressionantemente bela para a idade que hoje tem, ao lado de um amigo de infância, o terceiro com sua mão e seu bem-querer. Encontramo-nos na clínica da Capital onde eu fazia exames de rotina e eles buscavam um geriatra.
Soube, ali, do resto da história por mim desconhecida em razão da mudança de cidade, por ocasião da terceira surra. O ex-marido pagara com a vida uma dívida de jogo. “Deu azar. Você sabe como Zé Raimundo era perverso. Dizem que já havia matado por muito menos”, ele me contou.
“Insinuaram que a gente teve alguma coisa a ver com isso. Povo maldoso”, reclamou ela. E ele: “Zé Raimundo era perverso, você sabe”. E eu: “Sei”.
Mais um pouco, fui informado de que a morte do mesmo Zé, por um soldado de polícia, na boca da mata, local de sabidas desovas, deu-se quando da resistência à ordem de prisão. “O bicho era valente”, ouvi dele. “E perverso”, respondi, obsequioso.
Procurei e não achei em Tereza o brilho no olhar percebido na escola durante seu namoro com o colega deportado e, ainda, quando do casamento com o falecido. Aceitei, com certo incômodo, que o mundo real tem sua própria roda e que nela a cantiga é outra.
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