Não posso deixar de externar a minha felicidade se, em vez de europeus, berberes e tuaregues ganharem a Copa do Catar
Nos meus tempos de Paris, na condição de desenraizado pude conviver com situações tormentosas presididas pela xenofobia, racismo e chauvinismo cruel. Senti na pele o que é ser considerado um “defroqué”, alguém que se aproxima da condição de bastardo. Assim erámos nós.
Logo na França, uma nação que em tempos memoráveis deu à luz os mais formidáveis conceitos a serem cultivados à dignidade humana: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Tudo à conta dos ecos das vozes da liberdade e da grandeza humana, tudo sob a regência da revolucionária Marseillaise.
Com o meu semblante de “métèque”, como disse Georges Moustaki, o cancioneiro greco-egípcio com ‘cara de ladrão ou de vagabundo’ era sempre um estrangeiro que não inspirava confiança. Fui muitas vezes confundido com norte-africanos: marroquinos, argelinos ou tunisinos. Em muitas ocasiões, eu e vários amigos brasileiros, sobremodo nós, que tínhamos cabelos longos e portávamos boinas bascas tal como o Che Guevara. Pesavam a nossa tez e o biotipo.
Éramos importunados por policiais à luz do dia com admoestações. “Papiers!”. Tínhamos que mostrar os documentos. Uma das vezes, em pleno Boulevard Saint-Michel, eu e Fernando Falcão fomos interpelados e, ao verem que não erámos árabes, e sim brasileiros, fomos insultados: “Paris deviens une poubelle”. Literalmente, disseram-nos: “Paris virou uma lata de lixo”.
Eram, e ainda devem ser, mal tratados os negros e os norte-africanos vindos de colônias francesas. Essa população migrante para França, Inglaterra e Bélgica sempre foi acolhida como trabalhadores clandestinos super explorados. Esses migrantes, com medo de serem extraditados, trabalhavam e viviam silenciosos nas periferias com favelamentos infectos que chamam de “bidonvilles”, bairros de latas sob casebres onde pobres famintos resistiam às nevascas e ao frio.
Contavam-se centenas de milhares sem qualquer elementar direito, desmunidos de documentos, vivendo com trabalhos escorchantes e sub-remunerados. Tinham medo de pedir qualquer apoio social. Ao longo do tempo, ampliaram seus nichos familiares que passavam a proliferar os “cidadãos franceses” árabes e negros.
Dessas populações nascidas em solo francês, em sua grande maioria mulçumanas, surgiram nos últimos tempos os jovens que começaram a engrossar os pelotões de extremistas do Islã, prontos para praticar atos terroristas dentro e fora da França, que tornou-se um alvo prioritário. Levou a França a um processo repressivo extraordinário a todos os tipos de migrantes, inclusive a nós, latinos.
No momento atual, a população marroquina soma quase dois milhões em solo francês. Sem contar os argelinos, os tunisinos e os negros da África Equatorial dita francesa. Essas pessoas guardam uma endêmica aversão e ódio aos franceses. Antagonismos que vêm desde a dominação colonial há mais de cem anos. Os norte-africanos, pais e filhos que se tornaram cidadãos franceses por nascimento, para as classes e elites dominantes são um câncer irreversível.
Morei com um amigo brasileiro, José Machado, num bairro decadente habitado por trabalhadores norte-africanos na rua Moulin de la Pointe, próxima a Place d´Italie no 15ème. Uma rua totalmente árabe, onde não havia uma única mulher. O prédio em que morávamos era mórbido e depressivo. Dava medo de dia e à noite, era assombrador. Não circulávamos ao anoitecer. Menos pela população árabe e mais pelas blitze policiais que recolhiam transeuntes, marginais ou não.
Eram acolhedores os marroquinos. Alegres e simpáticos, sobretudo quando fomos reconhecidos como brasileiros. Passamos a frequentar um pequeno bistrô argelino onde travamos conhecimento de uma especialidade formidável, o cuscuz marroquino e um bom vinho, o Mascara argelino.
No tempo em que estivemos no quarteirão árabe, pela fraternidade começamos a entender a ignorância de uma sociedade pelo modo como tratava nossos irmãos norte-africanos e negros.
A França xenófoba e colonialista foi cruel e exterminadora com os povos do Viet Nam, do Cambodja, da Argélia, Tunísia, e Marrocos e todos os povos da África Equatorial Francesa e dos territórios do Sahara.Torturou e matou. De Gaulle a tudo fechou os olhos e a consciência.
Dos árabes amigos ficou a alegre e fraterna saudação – Salamaleico. Nunca a esqueci.
Força, Marrocos!
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