CANTIGA DE RODA, por Frutuoso Chaves

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O primeiro foi seu pai. Nem poderia ser diferente. O homem tinha adoração por aquela criatura. Deu-lhe tudo o que pôde e o que não poderia, pois assim o fez, não raras vezes, com a negação de algo ao restante da família, ou à despensa doméstica. As bonecas da vitrine, as roupinhas da moda, bicicletas e patinetes adquiridos a penas duríssimas quase lhe renderam, de tão constantes, o desquite.

“Você vai estragar essa menina”. Quantas vezes não ouviu isso em casa. Calava para fugir de brigas nas quais sempre levaria a pior. E engolia em seco a impressão de que a mulher não merecia muito aquela a quem havia parido.

Teve no desmame da pirralha, antes dos dois meses, a oportunidade para se fazer a melhor das mães. “Meu peito secou. Ela puxa e não sai nada. Não tenho mais o leite”, anunciou a mulher. Ele o teria em incontáveis mamadeiras, prazerosamente.

Quase morreu, 16 anos depois, quando lhe veio o comunicado: “Pai, estou grávida”. Os detalhes chegaram, pouco a pouco, à medida que recuperava o fôlego e a consciência. O projeto de genro, um colegial com espinhas na cara, foi escondido no Recife. Tomou o trem um dia depois da revelação.

Escândalo na cidadezinha. E todo o acolhimento paterno à filha violada. Não lhe negaria a mão nem a bênção. No ano seguinte, a menina voltaria ao colégio já recuperada do aborto. Deus sabe o que faz, diziam uns, enquanto outros culpavam os chás de dona Zefinha, a curandeira.

Os peitos secos terminariam por levar a companheira ao túmulo. De nada valeu a mastectomia. E o homem definhou. Foi-se, também, dois anos depois da viuvez. A menina e os negócios da família ficariam com o filho já adulto, a quem, antes do último suspiro, aquele pai dedicou o tempo não dedicado até então.

Os bens herdados pelo moço não se resumiram à casa na cidade nem à pequena propriedade rural com lavoura pouca e umas tantas cabeças de gado. Incluíram, também, o coração paterno brando e generoso.

Um coração que sangrou com a má sorte da irmã no casamento e quase perecia ao enfrentar o cunhado de olho na repartição da herança. Sabia que a metade daquilo que o pai lhes deixara seria consumida em farra e jogatina. Na terceira surra que a viu tomar armou-se de coragem e facão e pôs o sujeito para correr. Deu a ela o abrigo e a proteção que o pai não negaria.

Que alegria eu tive ao revê-la, dias atrás, impressionantemente bela para a idade que hoje tem, ao lado de um amigo de infância, o terceiro com sua mão e seu bem-querer. Encontramo-nos na clínica da Capital onde eu fazia exames de rotina e eles buscavam um geriatra.

Soube, ali, do resto da história por mim desconhecida em razão da mudança de cidade, por ocasião da terceira surra. O ex-marido pagara com a vida uma dívida de jogo. “Deu azar. Você sabe como Zé Raimundo era perverso. Dizem que já havia matado por muito menos”, ele me contou.

“Insinuaram que a gente teve alguma coisa a ver com isso. Povo maldoso”, reclamou ela. E ele: “Zé Raimundo era perverso, você sabe”. E eu: “Sei”.

Mais um pouco, fui informado de que a morte do mesmo Zé, por um soldado de polícia, na boca da mata, local de sabidas desovas, deu-se quando da resistência à ordem de prisão. “O bicho era valente”, ouvi dele. “E perverso”, respondi, obsequioso.

Procurei e não achei em Tereza o brilho no olhar percebido na escola durante seu namoro com o colega deportado e, ainda, quando do casamento com o falecido. Aceitei, com certo incômodo, que o mundo real tem sua própria roda e que nela a cantiga é outra.

ONDE ESTÁ JESUS? por José Mário Espínola

Sob a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, a tumba de onde teria sumido o corpo de Jesus após a crucificação (Foto: Dusan Vranic/AP)

Pililiu e Zéorge eram os dois únicos filhos da viúva Sinfrônia. E davam o trabalho de dez! Bastante conhecidos em Misericórdia, tudo o que acontecia de ruim atribuíam a eles. Ô fama ruim dos diabos!

Cansada de tantas dificuldades na criação dos dois, de tantas reclamações, de tanto prejuízo que eles davam, a mãe foi atrás do padre Zé Sitônio. Pediu ajuda.

Padre Zé Sitônio se dispôs a ajudar, mas advertiu: “Esses meninos tão com o diabo no couro! A senhora precisa botar Jesus dentro do coração deles”.

“Mas, Padre Zé, eu num tenho mais moral pra eles. Foi justamente por isso que vim pedir a sua ajuda”. E começou a chorar. O padre orientou, então: “Mande os dois para mim. Mande de um em um. Garanto que eles vão mudar”.

Dona Nenen, como Sinfrônia era mais conhecida, foi para casa. Mandou logo George, o mais velho, falar com Padre Zé.

Zéorge, assim o chamavam, já entrou na sacristia com medo. E o que viu e ouviu só fez piorar. O padre Zé Sitônio ordenou, com ar severo: “Senta aí!”.

Zéorge sentou-se na cadeira de respaldar alto e reto. Olhou pra direita e viu ao seu lado um São Sebastião todo aberto e flechado. Aí ficou menor, de medo. Olhou para trás, e viu um outro santo martirizado, São Manoel. Sentiu-se ainda menor.

O padre puxou uma cadeira e se pôs à frente do rapaz. Sentou-se e perguntou, ríspido: “Onde está Jesus?!”
Zéorge ficou ainda menor, tremendo de medo.

“Onde está Jesus?” Zéorge perdeu a fala, de medo. “On-de es-tá Je-sus?”, gritou o padre.

Zéorge pulou da cadeira e disparou para casa. Lá chegando, enfiou-se debaixo da cama. O irmão Pililiu se agachou para saber o que tinha acontecido, lá na sacristia. Zéorge respondeu, tremendo de medo:

– Pililiu, tamu lascadu. Jesus sumiu e tão butandu a culpa in nói!

DESEJO NÃO TEM IDADE, por Francisco Barreto

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A prevalência de preconceitos quase sempre desumanos espraiam-se em múltiplas dimensões. Agridem as raças, a sexualidade e suas diversidades, o etarismo, o universo dos gêneros, os pobres e incultos, os preceitos e opções religiosas, o ódio à contradição ideológica.

Repudio a todos e a tudo que cultivam sentimentos odientos de prepotência que resvalam nas diferentes formas de dominação das desigualdades entre homens e mulheres.

Por suas vulnerabilidades corporais, idosos são objetos de renitentes comportamentos absurdos dos que abominam o envelhecimento. Insultantes são os frequentes comportamentos de intolerância, da insuportabilidade social, aos que insistem em seus sagrados direitos de continuar vivendo intensamente em suas idades provectas. Na sociedade humana sempre houve, e continuará havendo, um excrescente desprezo pelos idosos e o seu envelhecer em contraponto ao universo jovem belo, esbelto e forte.

A sexualidade relacionada ao envelhecimento incita mitos e tabus, resultando numa míope concepção de que os idosos são pessoas incapazes e assexuadas. Sabidamente, constata-se que o envelhecimento nem sempre transborda à completa inutilidade do desejo e aos movimentos e atos que continuam existindo. Os seus desejos e a libido podem não mais encontrarem correspondência juvenil nos atos sexuais.

As famílias, dentre outros atores, têm um papel coercitivo na direção de extinguir os impulsos instintivos comandados pelos desejos e as libidos, em que pesem os limites das funções fisiológicas. Ao invés, prosperam as agressões ou incompreensões sobre a difícil trajetória dos velhinhos, sem aceitar a importante normalidade da reinvenção do corpo do envelhecido.

Deploráveis são todos os estigmas e preconceitos da negação peremptória a qualquer vivência com a sexualidade dos idosos. Contra esses imperam as repreensões, a perversidade, atos e condutas repressivas, desumanas.

A sexualidade do idoso, num entendimento mais aprofundado, deve considerar que esta faz parte da totalidade do indivíduo. Mentes e corpos desafiam as idades. Os humanos nascem e morrem buscando as alegrias da sexualidade. Mesmo diante de encilhamentos fisiológicos, os envelhecidos não admitem que esteja tudo terminado. O parâmetro demarcador é a morte.

Ao sublimarem seus incontidos desejos em diferentes modos, os idosos sabem que a sexualidade não implica apenas atos físicos ricos de reciprocidades sexuais. A genitalidade enquanto penetrabilidade é uma coisa. A sexualidade vai muito além.

Sobrevivendo com os seus desejos e as libidos, mesmo exilados dos atos genitais, é possível admitir uma vivência sensorial equilibrada, o que contribui para a adaptação dos diferentes momentos físicos que passe a sentir bem-estar psicológico, equilíbrio emocional, autoestima e otimismo, tudo derivado de um modo inovador e corajoso de abordar a sexualidade.

Imensuráveis são as transições corporais que passam a ter um domínio intenso e íntimo com a sexualidade. Se o corpo nas idades avançadas, mesmo desprovido da virilidade, debilitados os hormônios, a mente e os desejos podem reinventar adaptações que motivam suas venturosas expressões sexuais. Os idosos podem decifrar, redescobrir e usar desejos e afugentar as suas frustrações.

Permanecem nas sociedades humanas graves e desrespeitosas ilações que motivam os preconceitos que consideram os idosos seres assexuados. Diante de uma visão negacionista, muitos podem perpetrar o silêncio absoluto e não expor a sexualidade. Contra esses homens e mulheres são produzidos desconfortos e constrangimentos nas relações sociais.

Os limites da sexualidade são desconhecidos, insondáveis e com profundo recolhimento às intimidades que se subordinam apenas a fios condutores que impulsionam a consciência do ainda ser e dos desejos do viver.

O rígido controle social, o sumário julgamento e a repressão que a sociedade mantém sobre as pessoas idosas fazem com que se tornem amargas e silentes, porque são reprimidas. É necessário deixar aflorar a naturalidade dos sonhos e pesadelos dos cenários mais íntimos de quem não deveria se sentir incapaz e aniquilado. Expressar identidades e motricidades sexuais e desejos é muito importante em qualquer tempo de vida.

As atitudes preconceituosas são perversas quando impõem sequelas deprimentes. As privações pessoais que determinam freios à sexualidade, por descabidas admoestações expõem os que ousam exercê-la como atores promíscuos de “vergonhosa” erotização na velhice. Tais atitudes geram efeitos negativos sobre a qualidade de vida, o bem-estar e a perda de autonomia dos idosos.

É voz corrente que a subtração ou perda da atividade sexual possa apenas conviver com a “assexualidade”, esta tida como fato normal e irreversível. É preciso desmistificar a concepção errônea de que os idosos tornam-se “assexuados”.

Informações oriundas de relatos da Organização Mundial da Saúde (OMS) dão conta de que 78,6 % de idosos consultados com mais de 80 anos declararam que a sexualidade não é um bloqueio intransponível e afirmam que esta limitadamente não se extingue.

Mais grave ainda fazem com as mulheres, onde o fenecimento da feminilidade e da atratividade são injustamente postos pelo preconceito em contraponto à beleza física, juventude e sexy appeal do corpo feminino. A menopausa é um grave limite falaciosamente imposto e aceito tacitamente pelo gênero feminino. As mulheres sofrem angustiadas em suas avançadas fases etárias e enfrentam maiores desvantagens no coro popular.

É bem verdade que as suas identidades estão intimamente ligadas à imagem corporal. Esta constatação se ampara na estreita dimensão estética e relega a compreensão de que a sexualidade feminina é sempre possível ao incorporar importantes componentes de mútuas atratividades como as caricias, ternuras físicas e verbais, olhares, beijos e, de sobremodo, diálogos e companheirismo.

O tempo é capaz de avolumar e diversificar os sentidos, sensações que se cristalizam em formas e atitudes heterodoxas de prazer derivadas dos desejos. O tempo é aliado, nunca inimigo. Este recicla a sexualidade, mostrando que no emocional através do afeto o amor é capaz de inventar a prática de atos sexuais, das preliminares, que podem ser mais determinantes porque derivados da extrema sensualidade.

Pode-se imaginar que estes atos extemporâneos e tardios são muito mais definitivos ao prazer do que a cópula em si, que tem muitos limites fisiológicos.

A sexualidade dominada pela sensualidade madura tem efeitos formidáveis quando são compreendidos e aceitos mutuamente.

A sexualidade tem que extrapolar a dimensão estrita da fisiologia humana. Homens idosos privilegiam a potência sexual e se contentam também com o prazer emocional, nem sempre o fisiológico. Por sua vez, mulheres, em sua maioria, sempre são seduzidas pela dimensão afetiva e veem como natural o fim da vida sexual na velhice. Primam pela proximidade afetiva, o carinho, o companheirismo. As mulheres têm vantagem definitiva,  pois não têm disfunção erétil.

Os que atingiram os limiares da idade, quando estabilizam sua libido, aceitam pacientemente seus limites, mas sofrem muito mais pela ausência de amor e de afeto do que pela invalidez fisiológica. Assim sendo, é presumível que ainda emanem desejos libidinosos atrelados a atitudes comandadas pelas emoções dos afetos.

A idade pedagogicamente nos ensina que as coisas são o que elas são e raramente o que gostaríamos que fossem. A sexualidade é um atributo da vida, nunca a sua essência. Viva a vida e admita-se que libido e desejos não têm fronteiras nem idades!

NOSSA HISTÓRIA, por Babyne Gouvêa

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Jardim do Amor, quadro de Peter Paul Rubens (1633)

Esperei, esperei muito tempo para entender o que é o amor pleno. Muito diferente de simples namoros, às vezes, até de casamentos.

Tudo começou com uma amizade de trabalho. Trabalharam muito tempo juntos, dividindo e acrescentando tarefas que lhes cabiam. A confiança mútua nas ações desenvolvidas crescia a passos largos. E assim foi durante um bom período.

A satisfação em laborar conjuntamente era recíproca. A sensação era que tudo fluía a contento. Dava prazer em verificar o resultado do que era feito. Refletia correção, pelo menos aos seus olhos.

Outros colegas eram adicionados às ações, mas a segurança estava mesmo no que era compartilhado pelos dois. A confiança era tanta que dificilmente havia revisão daquilo que um dos dois realizava.

O tempo passava, vinham férias, a vida pessoal de ambos prosseguia e, chegou um momento, que os dois começaram a perceber a falta um do outro. Era apenas sentido, e não verbalizado. Os olhos brilhavam quando se viam. Insistiam, intimamente, em não misturar trabalho com afeto. As coisas deveriam seguir separadas, seguindo a suposta sensatez.

O início do ano letivo era aguardado ansiosamente. E interrogações começaram a brotar, estranhamente. Por que o contentamento diário estava condicionado ao trabalho? Especificamente, às tarefas executadas pelos dois?

Os interesses de ambos estavam sintonizados? A resposta se dava à medida que descobriam pontos comuns. E eram muitos. Intercalavam, em pausas laborais, assuntos vários.

Descobriram as diferenças, também. Tudo contornável; nada de extremos que impossibilitassem um denominador comum. Para surpresa deles as discordâncias eram refletidas e aceitas, sem comprometer a tolerância.

Respeito sempre existiu na dileção. O sentimento de proximidade e compatibilidade sinalizou o reconhecimento de caráter e expectativa entre os parceiros, ao longo do tempo.

E assim, foi descoberto o sentimento de amor pleno no casal, que há anos vive esta bela história.

CONTANDO AS PEDRAS, por Francisco Barreto

Instabilidade Política pode comprometer o desempenho da economia

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Meus dias amanhecem me brindando com a sensação de alívio ao respirar as brisas que aos poucos varrem o bolsonarismo da triste face nacional. Estamos a poucos passos da extirpação do falso mando delinquente. O alvorecer de 2023 é extremamente preocupante para o novo governo e todos nós.

Mudança irá ocorrer e não será negligenciável a importância de Luís Inácio. Convencido estou de que a eleição do Menino de Garanhuns era a única possibilidade de realizar mudanças, transformações, somente possíveis com a ascendência ao poder de quem pode dele remover o lixo e a escória nazifascista.

Lula deve trilhar, contudo, espinhosas veredas de grande instabilidade política, comandadas pelos antagonismos que emergem de uma banda da inconsciência pública nacional. Não há como negar, também, que diante das prioridades necessárias e urgentes para uma consequente governabilidade, há que se ajoelhar, rezar e compartilhar com tudo o que ainda não presta no cenário político.

Inclusive porque a saída de Bolsonaro não elimina os antagonismos bolsonaristas, muito menos os fisiológicos, os neofascistas agora convertidos catequizados por um projeto de Poder que já exala claros sinais de prostituição. Orar num templo é uma coisa, ser santo num prostíbulo é diferente. É o que teremos pela frente, não há dúvidas.

De longa data o petismo convive com pecados veniais e outros gravemente mortais. Um desses pecados é a “renitente e sectária obsessão de que o bem e a correção nas condutas públicas são patrimônio exclusivo deste segmento partidário”. Outro grave desvio político é desconsiderar e submeter ao ostracismo ao longo de décadas as frações políticas-partidárias, homens e mulheres que honraram e contribuíram cada qual ao seu tempo a uma nacional de edificação da extrema qualidade e a dignidade política nacional. Essas personalidades públicas foram execradas, esmagadas pelas iníquas condutas corporativas e individualistas dos barões assinalados do petismo.

Dr. Ulysses, Mário Covas, Leonel Brizola, Franco Montoro, Celso Furtado, Afonso Arinos, Miguel Arraes, Waldir Pires, Mário Borges, Fernando Henrique, Marco Maciel, Suplicy, Ciro Gomes, Cristovam Buarque e dezenas de outros sempre foram objeto de uma extremada desconsideração pela arraigada prepotência discriminatória das hostes sectárias petistas. Até próceres importantes do PT, como Plínio de Arruda Sampaio, Chico Whitaker, Chico de Oliveira, Marta Suplicy, Luiza Erundina, Marina Silva, Heloisa Helena e muitos outros não foram respeitados.

Intelectuais brilhantes, técnicos, estudiosos e formadores de opinião de matriz neoliberal, socialistas e comunistas, foram todos arquivados e esquecidos sem o reconhecimento histórico e o respeito que mereciam. Lembro-me com clareza das indignidades cometidas contra as esquerdas socialistas comunistas quase em extinção, sendo abominável o comportamento sindical petista quando em no 1° Maio nos anos oitenta em evento realizado no Riocentro, RJ, quando Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, tão massacrado pelas ditaduras, foi impedido de subir ao palanque para renovar o seu preito à classe operária.

Às portas de sua nova assunção, Lula pode estar repetindo de modo discriminatório e excludente o que ainda resta no país de qualidade intelectual, política, técnica, saber jurídico, dignidade pública dispersos e anônimos pelo país. Espraia-se hoje um “déjà vu” condutas políticas graves, piores que as praticadas em 2002/2003.

Recorre-se ao recriminado brocardo “se não pode vencer a má qualidade dos inimigos, juntemo-nos a eles”. Ou melhor dizendo, os inimigos, a má qualidade e a insanidade têm que ser cooptadas em nome de uma falaciosa e pseudo governabilidade. Daí decorre o ajuntamento de má qualidade como terrivelmente necessária. Assim, segue a sentença: “Quando não solução, solucionado está”.

Ademais, destas impositivas e dilaceradas alianças oportunistas, difícil presumir qual será o projeto político nacional, entendido que haverá este no cenário relativo à concepção de estratégias e políticas públicas que sintonizem com as necessidades de um Brasil real. Teremos certamente a manutenção de um círculo decisório hermético e centralizado.

Dizer que vamos ouvir a sociedade é apenas retórica, como ocorreu sempre a título dos fraudulentos orçamentos democráticos sob a enganosa participação popular. O petismo nunca oxigenou as decisões de baixo para cima. Sempre se utilizou dos métodos “pré-à-porter”, com raras incursões inovadoras.

Sem nenhuma segurança, estamos nos enveredando nos céus desse novo cenário de dominação petista. Não há como implantar “o espírito livre da democracia direta” sem romper com os centralizadores processos decisórios que são operados à luz de palpites neoliberais, dos corporativismos subservientes ao grande capital em todas as suas matizes, das homogeneidades das políticas e investimentos públicos que dão exclusividade à consolidação da pré-Potência brasileira em todos os sentidos.

O projeto de Poder em curso provavelmente se destina a fortalecer o Brasil dinâmico, transnacional do grande capital em todos os segmentos que ambicionam a modernidade tecnológica e consumista. Via crescimento do PIB equivocado, como isolada prioridade ao enfatizar este com a cereja do bolo.

Ficou muito claro o enunciado recente por Luiz Inácio, quando nos escandalizou acalmando o grande capital quando textualmente disse há pouco que o capital financeiro, os bancos, a grande indústria, o agronegócio e investidores nas bolsas – ou seja, especuladores monetários – nunca ganharam tanto dinheiro como ocorreu nos governos do PT.

Os caminhos não estão claros. É difícil saber se as opções estratégicas irão ao sentido de: continuar privilegiando o Brasil Moderno do grande capital ou em detrimento das chances ao Brasil do resto. Esta última opção poderá provocar a ruptura do centralismo decisório, da desconcentração econômica; reforçará as pedagogias da evolução dos níveis de consciência política e educacional coletiva; poder mergulhar nas profundezas do iceberg perverso e invisível das economias regional e local e ir para o enfrentamento da concentração de riquezas e rendas; em havendo a coragem pública, poder-se-á romper o monofisismo da injustiça fiscal abdicando das políticas das espúrias benesses de renúncias fiscais; deverá controlar as entradas de capital especulativo financeiro; baterá duramente nos desvios e maus usos de recursos públicos; poderá socializar a produção e redistribuição de produtos agrícolas e de nacionalizar preços dos avassaladores produtos agrícolas de consumos correntes todos dolarizados e finalmente se irá assegurar que os bens e serviços públicos indivisíveis tenham patamares e equivalências com os diferenciados níveis de rendas.

O Relatório da Transição é de uma pobreza franciscana, eivado de enunciados em denúncias centrados incisivamente no governo que sai. Peca pela omissão políticas publicas emergenciais se limitando a bolsas com “esmolas” oficiais e outras esbórnias públicas. De início, há que se terem atitudes imperativas para reduzir precariamente os crônicos níveis de rendas e as sequelas da fome. Estas mendicâncias públicas podem aliviar a fome crônica, mas de nenhum modo irá atenuar o espectro da miséria lastreada pelo desemprego aberto e informal. O Resto do Brasil abaixo da linha da modernidade capitalista e financeira precisa de muito mais do que pratos de feijão com farinha.

Finalizando, prioritárias e fundamentais providências dentre as tarefas inadiáveis, é a perseguição implacável dos chorumes nazifascistas que explicitamente ou ainda submersos intranquilizam o país.

No mais, a questão é saber se as “inteligentzias” de uma esquerda “fake populista” por que neoliberal e sectária ao lado de comparsas supostos ex-bolsonaristas e cooptados momentaneamente em busca do troco político são importantes para quebrar as intenções monolíticas do golpismo endêmico.

Este novo envelhecido cenário será capaz de formular uma concepção estratégica com vistas a um projeto nacional? Ou seja, qual o projeto para o Brasil em inúmeras dimensões dentro de um cenário de médios e longos prazos contemplando rigorosamente uma (re) construção nacional? Eis a questão. É certo a consciência deve modificar e conceituar um projeto que deve ser implantado com coragem e persistência, insistentemente. Mas isso pode levar décadas.

Agir sobre a Educação, Cultura, Saúde, Segurança, Estabilidade Fiscal e Financeira, outros eixos políticos das intervenções públicas setoriais, decentralizadas e interiorizadas, são prioridades, mas a nos lembrar de que estamos a “chover no molhado”. O mais importante é conduzir pactos coletivos de amplitude nacional.

Se se centrar apenas na dimensão fiscalista, gastos e dívidas públicas têm muita proximidade com a mentalidade de “guardas-livros”. Os poderes federados têm a superior obrigação de formular um novo Pacto Federativo em que se estabeleça um reequilíbrio do Estado brasileiro para que tenhamos uma nova Nação em que deixarão de existir as escarpas entre Estado e a Sociedade, e Povo brasileiro.

Advirta-se que nunca tivemos com clareza sob a tutela da “elite” do PT e outras agremiações aliadas a explicitação de um superior Projeto Nacional Desenvolvimentista delineando novos marcos e práticas da Política, da Sociedade e da Economia. O respeito a um Estado Democrático de Direito é marco constitutivo de um marco histórico político fundamental.

LAPINHAS E PASTORIS, por Frutuoso Chaves

E, então, o que foi feito desses dois autos natalinos? Não os vejo desde o início da adolescência. A última lembrança que tenho de uma Lapinha me conduz ao velho Clube Social de Pilar, com as bênçãos do Padre Gomes.

As meninas, filhas de famílias católicas, formavam dois cordões (duas fileiras, uma azul e outra encarnada) à frente de um Presépio onde não faltavam as figuras típicas da temporada: o Menino Jesus, seus pais terrestres, alguns anjos, os bichos da estrebaria e, por fim, os Reis Magos, em volta da manjedoura.

Pastorinhas, mestra e contramestra cantavam modinhas na adoração ao Deus Menino e disputavam a preferência do público que interagia mediante apostas em dinheiro, ora num cordão ora noutro. O apurado tomava o rumo da Igreja para custeio de uma pintura, ou um remendo qualquer.

Havia um enredo cuja sequência não lembro. Mas envolvia intriga entre mestra e contramestra, previsões de uma cigana, despedidas e queima da Lapinha no Dia de Reis. Era uma festa absolutamente familiar, com mães orgulhosas da performance de suas meninas e pais dispostos a eleger o cordão preferido.

Mas para mim e os de minha geração, com os hormônios em efervescência, bom mesmo era o Pastoril armado em cima da carroceria de um caminhão, na Rua do Rio. Aquilo, sim, é que era diversão. As saias curtinhas das moças nos puxavam, inapelavelmente, para a primeira fila qualquer que fosse o medo do pai a cujo conhecimento chegasse o enxerimento do filho. Também havia os cordões de pastoras e, a cada lado, bandeirinhas encarnada e azul subiam ou desciam nos mastros conforme o dinheiro que nelas pregassem os torcedores.

Se a Lapinha possuía algum sentimento mais nobre, o Pastoril, não. Nenhum. Era absolutamente profano e satírico, com anedotas pesadas e enredo conduzido por um personagem cômico e libidinoso: o “Velho”, algumas vezes também tratado por “Cebola”, ou “Marujo”. Lembro de um que vestia um macacão largo e florido de palhaço.

O sujeito encolhia a barriga, esticava o cós das calças, olhava na direção do dito cujo e comentava: “É o pequeno!”… Em seguida, enfiava a mão e retirava dali uma bengala retorcida, com a ajuda de duas meninas, uma de cada cordão.

Afinal, de onde vinham essas moças assim tão desinibidas? Um amigo contou-me que o pai conhecia várias delas do Carretel, uma rua de Itabaiana, hoje em dia, tão familiar quanto a Lapinha do Padre Gomes. Tempos idos.

***

(Imagem: Foto do Pastoril do Mangaba, pinçada da Internet)

A FACE DE CRISTO, por Frutuoso Chaves

Imagem do documentário ‘A verdadeira face de Jesus’, do History Channel

Grudei os olhos e os sentidos em “A verdadeira face de Jesus”, o documentário que retrata, com alguns saltos, o percurso do Sudário, desde os primeiros passos do Cristianismo até os dias de hoje.

A exibição, pela enésima vez, na tevê a cabo, fez parte da enxurrada de fitas típicas da temporada do Natal. Liga-se o televisor e pronto: lá está o tema em tudo o que é produção filmográfica, seja com pitadas de ciência e religiosidade, seja com os romances de água de flor de laranja saídos studios americanos, sobretudo, destes.

O documentário em questão retrata, em meio a depoimentos de historiadores e teólogos, o trabalho de uma equipe de artistas gráficos liderada por Ray Downing (do Studio Macbeth) que, em 2010, teve acesso exclusivo ao Sudário por cinco dias, em Turim, para o trabalho fotográfico. O propósito era o de um retrato fiel, em três dimensões, do homem da mortalha.

O Cristo, em pessoa? Bem, em 2008, uma pequena ponta do tecido fora submetida ao teste com Carbono 14, o mais confiável processo científico de datação conhecido no mundo, que a ela dava entre 1260 e 1390 anos. Portanto, mais de 12 séculos depois do nascimento do filho de Maria, segundo a história então alçada às manchetes do jornalismo universal. O público brasileiro dela tomou conhecimento, notadamente, por meio do domingueiro “Fantástico”. Quem não lembra?

Acontece que alguém logo comprovaria a má escolha dos pesquisadores em relação ao pedacinho extraído da borda do tecido para o exame laboratorial: coincidentemente, um remendo no pano com fios medievais. E a dúvida se instalou. O Vaticano, por sua vez, não mais liberou o Sudário para análises novas. As manchas ali captadas por Downing e levadas à perícia mostraram-se, por seu turno, compatíveis com os açoites e o processo de crucificação biblicamente relatados.

Mas vamos à face em 3D reproduzida com o auxílio dos recursos avançados da moderna computação gráfica. O que aparece é um ser de cabelos negros, traços grossos e pele morena. Ou seja, tudo muito de acordo com a aparência dos filhos de Belém, na Palestina, há 2 mil anos.

E combinemos o seguinte: a aparência de quem quer que seja é o que menos deveria importar à fé e à cristandade. De modo que o reparo fica por conta do Cristo com traços europeus que nos acostumamos a ver nos grandes e pequenos templos ocidentais.

À luz da razão, é mesmo difícil supor que tivesse pele branca, olhos azuis e cabelos aloirados aquele homem que se juntava à ralé, a pescadores e, em alguns casos, a prostitutas, na defesa dos injustiçados e oprimidos.

Aculturação é fogo, meu companheiro e minha companheira. A propósito, ainda, da temporada, é o que traz um Papai Noel gordo e nórdico aos natais de quase todo mundo, desde Nova York até Coxixola. E, não menos, faz pesar sobre galhos retirados da Caatinga neves de algodão.

PROCURANDO CANDEEIRO, por Frutuoso Chaves

Imagem: Xico Sá/DN

Quem já não passou pela experiência não é capaz de imaginar o quanto a luz subjuga a escuridão. Os amantes da astronomia até percebem, em alguma medida, o poder das incandescências, posto que isso verificam nas estrelas.

Eles as enxergam a distâncias tão grandes que impossibilitam as medições triviais. Não dá para situá-las a quilômetros, ou milhas, sem que disso resultem cifras intermináveis, impraticáveis. A solução passa, desse modo, pela invenção do ano-luz.

É medida que parte da casa dos 300 mil, a quantidade de quilômetros que um raio é capaz de cobrir em um mísero segundo, num piscar de olhos. Imaginem o quanto percorrerá em um ano. Depois, atentem para o fato de que as estrelas mais próximas estão a mais de 4 anos-luz do nosso Sol.

Alguém quer ver o passado? Olhe, então, para um céu escuro. Alguns pontos luminosos são estrelas que podem nem mais existir. O que nesse caso vemos são raios que delas partiram e ainda viajam.

Dá para perceber, então, a força e as artes da luz. Mas dá para aceitar a afirmação de que os dedicados à astronomia, apesar do muito que sabem, têm ideia apenas vaga da coisa?

Pois, têm. Sobretudo, aqueles que nunca procuraram candeeiros na escuridão. Estrela pode ser passado, mas candeeiro é possibilidade de futuro. Ou, pelo menos, assim era antes que a eletricidade chegasse a todos sítios e pés de serra.

Que coração de astrônomo bateu mais forte numa noite de breu tateando por trilhas com palmos de largura até aquela casa caiada onde mora a letra “L”? Não é assim, Zé Dantas? Não é, Luiz?

Passos cuidadosos um após outro, os pés no caminhozinho estreito, o mato rasteiro a avisar de ocasionais desvios até o momento do prumo certo e seguro assim que a luz do candeeiro pula de uma janela a fim de guiar o sujeito e seus planos.

Já nos braços que o acolhem reforçam-se as juras e compromissos, os projetos de estudo e emprego, o do altar e o da filharada, coisas muito improváveis aos de pouca idade pois tão subordinadas a tudo aquilo que ainda esteja por vir.

Nada disso se concretizou, dirão os que sabem da vida de quem andou em busca de janelas assim iluminadas. Mas não por culpa daqueles arremedos de farol. É que o tempo e o acaso encaminharam o navegante a outros portos e propósitos. E assim também o fizeram com a dona dos braços que o acolhiam.

Ambos muito jovens, mal postos a enfrentar o mundo, afastaram-se, inevitavelmente, quando a vida lhes impôs percursos novos e amores definitivos.

Mas, de quando em quando, um tom de voz, um perfume, o padrão florido de uma blusa, a música há muito não ouvida, qualquer dessas coisas pode reavivar por alguns instantes a velha chama. Não para indicar caminhos já percorridos e não mais buscados. Porém, a fim de lembrar do que se foi e do que se quis antes que se consuma o ciclo de tantas caminhadas.

As velas há poucos minutos acesas em virtude da interrupção da corrente elétrica no prédio onde vivo, certamente isso, é o que agora me traz essas lembranças. Em três pontos da sala, tremulam ao sopro de tempos idos.

Então, os olhos semicerrados por comando próprio, ou por vontade que reluto em aceitar, expõem aquela sala onde um dia sentei. Ao lado, em uma rede, deita-se um pai geralmente sisudo e de poucas falas.

Quase me vem à boca o gosto do doce de caju e quase ouço de uma mãe solícita e orgulhosa da cria: “Foi ela quem fez”. O quadro se completa com a conversa e as carícias de varanda.

Não livre, ainda, dessas imagens eu percebo que mais acalentam do que machucam. Hoje em dia, o ambiente é bem outro e é outro o bem-querer, constato aliviado. Além do mais, quem agora contempla essas pequenas chamas tem idade para ser avô daquele moço que logo some ao reacender das lâmpadas.