O REENCONTRO, por Frutuoso Chaves

O velho pé de fícus ainda estava lá, agora, mais frondoso. Quando menino, escalava aquele tronco para o esconderijo de onde via sem ser visto até surpreender com uma arma de brinquedo o companheiro de esconde-esconde. “Renda-se aí” e, pronto, mais um “inimigo” saía do jogo.

Não conseguiu identificar o galho preferido numa copa então muito mais vasta. Nem pôde alcançar o ramo mais baixo dado o fenômeno da natureza que estica as árvores e encolhe os homens no transcurso das décadas. Conformado, buscou o banco da praça comprida e mais larga defronte à casa onde viveu até quase o fim da adolescência.

Gostava desses retornos ao passado e os fazia com emoção redobrada. Percebeu, em certa ocasião, que algumas saudades aumentam no compasso dos anos. Espicham-se juntos, assim mesmo, a saudade e o tempo.

Apenas uma coisa o incomodava em cada volta àquele recanto. Sentia-se, mais e mais, um estrangeiro na própria casa. Estavam lá, como sempre, a rua na sua moldura de fícus, duas linhas bem plantadas dessas árvores, uma de cada lado. E ali, imutáveis, também estavam as fachadas de sua meninice, os canteiros e postes da pracinha. Mas não identificava em cenário tão seu qualquer sobrevivente dos velhos tempos.

Quem por ali caminhava sem vê-lo conduzia nas veias, quem sabe, o sangue daqueles com os quais dividiu porções da juventude, a vida mais leve e livre, os melhores momentos de qualquer existência pois feitos, comumente, de brincadeiras, risos e descompromissos.

Antes disso, em apenas três distintas oportunidades havia abraçado alguém do seu distante, irrecuperável, convívio. Foi quando procurava, em domicílio e nos avós de agora, colegas do Grupo Escolar.

Três casas e três choques. Cristina, imensa e já bisavó apesar da idade inferior à sua, foi às lágrimas numa cadeira de rodas. Paulo, magérrimo e encurvado, mal o reconheceu. Pedro, distante, abstraído, vegetava quase sem lembranças. A conversa curta com esse trio serviu, quando muito, para a identificação de algumas covas na visita ao cemitério. E, ainda, para saber quem já se fora desta para melhor no Rio e em São Paulo, destinos invariáveis daqueles jovens à procura, chegada a hora, do emprego e da boa sorte. Seriam mudanças feitas quase sem êxito, ao que lhe confirmara um primo antes de partir, este também, para a eternidade. Valeria a pena a frequência desses regressos à terrinha que, não raramente, aborreciam a mulher e os filhos? Era o que já andava a se perguntar.

Mas, naquele dia, o coração pediu-lhe um pouco mais de tempo no local exato de onde suas brincadeiras com os irmãos e os amigos podiam ser acompanhadas pelo olhar atento de uma mãe sempre disposta a pôr a cabeça na janela.

Lembrou-se de quando passou a trocar aquele banco por outro mais distante, na ponta estreita da praça, já perto da Igreja. A providência serviu para que os primeiros beijos da sua vida chegassem com atraso, por obra e graça da vizinhança, ao conhecimento da mãe. “Você ainda é muito novo para isso”, ouviu dela. E o pai, mal escondendo o orgulho da cria: “Comecei antes dele”. Contudo, o chamou para a advertência: “Faz besteira e quem te casa à força sou eu”.

O riso provocado por tais lembranças foi substituído pelo susto e, em seguida, pelo assombro, mesmo, com arrepios. Lá vinha Joaquim em seus 17 anos. Ele, o centroavante endiabrado que todo mundo queria no time. Como isso era possível? Joaquim com seu andar arrastado, nariz de papagaio, modos de quem não prestava para a coisa até ter a bola nos pés, vinha, de fato, em sua direção. Teria endoidado? Para lhe agravar o medo, essa figura parou à sua frente e o mirou dos pés à cabeça.

“É o neto. E joga tão bem quanto o avô jogava”, disse-lhe a alma caridosa a quem o moço acompanhava. Certamente, percebeu sua agonia e o tranquilizou antes que alguma vertigem o apagasse.

Foi quando nela reparou sem pronta identificação. Os traços naquele semblante envelhecido da segunda menina com quem ali já havia sentado apenas lhe chegariam aos poucos, para vexame seu, pois fora tratado pelo nome logo no aperto de mãos. “Eu te reconheci de longe”, disse-lhe.

Além da incrível semelhança física e do talento para o futebol o rapaz também havia tomado o nome do avô. Feitas as apresentações, Joaquim Neto entendeu que deixaria em boas mãos essa tia em segundo grau. Combinou que estaria de volta antes do escurecer e se foi para os lados do Coreto ao encontro da turminha.

Ah, o Coreto… No seu e no tempo daquela a quem então revia este era um lugar evitado pelas meninas temerosas dos mexericos e da reprimenda paterna. Ficava na outra Praça, a do Leite, topônimo advindo do deboche popular.

Foi este, entre risos, seu primeiro assunto com a segunda namorada. Depois, a conversa se encaminhou para a atualidade: o que a vida lhes trouxe, como e com quem viviam, que famílias constituíram. Contaram do bom casamento que fizeram e dos filhos e netos pedidos a Deus.

E lá chegavam, de parte a parte, as informações acerca do paradeiro dos que na juventude lhes foram mais próximos. Ela, muito mais do que ele, sabia da boa e da má sorte dos velhos amigos.

Não duvide, minha gente. Reencontros dessa natureza costumam levar ao trato de algo mais íntimo. Terminam por suscitar, em algum momento, coisas que a ninguém mais dizem respeito. Nem aos companheiros da ocasião com os quais se dividam a cama, a mesa e a filharada.

Pois bem, não foi diferente com aqueles dois no banco onde tantas vezes agarraram-se como carrapatos, no dizer de meia dúzia de Candinhas. Sabem não? É expressão popularizada na canção de Roberto. É coisa de 1966.

Perguntaram-se, olho no olho, sobre o motivo do rompimento para disso pouco falarem. Ele não soube como contar do desinteresse crescente pelo namoro. Ela evitou a verdade: o relacionamento que já esfriara poderia ser desfeito sem qualquer trauma. A fila andaria.

Mas tudo isso não poderia ser dito assim, cruamente, a não ser no momento do desapego e, em consequência, da despedida. Nunca, de modo nenhum, entre os que se reencontram. Suspeitava, além do mais, que o tema surgira, deliberadamente, para que expressassem a lembrança mútua dos beijos ardentes e das mãos atrevidas. Em êxtase, intuiu que ela tinha a mesma percepção do rumo da conversa, pois ruborizava. Enfim, ele estava a receber do acaso muito mais do que pedira e pretendera.

Eis que, de repente, com boa dose de remorso, pôs-se a pensar na moça que há cinco décadas levou ao altar e ainda muito nova pariu seus filhos.

Atinava, naquele instante, que o resgate de coisas tão passadas, se possível fosse, não traria de volta a juventude, não remoçaria a alma nem reanimaria o corpo cansado. O sopro de ventos idos, afinal, não serve aos de pouco fôlego em seus restos de vida. Então, decidiu: aquela praça não era mais sua e não mais o veria. Assim, também, aquele povo. Não havia o que fazer ali.

Joaquim Neto sentiu os tremores da tia no braço que dela apoiava os passos lentos de volta para casa. Tinha na discrição outra herança do avô e, calado, tratou de ocultar o que bem aflito percebeu. Ali, ao Sol poente, os dois caminharam em silêncio para o acolhimento e a segurança dos seus lares, parede e meia um com o outro.

OS BRUTOS NÃO AMAM, por Frutuoso Chaves

Imagem: Wikimedia Commons/Jornal da USP (fotomontagem de capas de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, por Glauco Umbelino)

Não afirmo que tudo se tenha passado tal e qual. Mas uma coisa eu asseguro: foi assim mesmo, como agora reconto, a história por mim ouvida de um velho amigo no entardecer de Manaíra quando a Lua se erguia do mar no melhor dos seus brilhos.

Nossa conversa servia à análise dos bloqueios de estradas e ao mapeamento dos resultados das urnas. Ele observava, surpreso, os quase 22,8 milhões de votos conferidos pelo Sudeste, no segundo turno, ao Presidente eleito. Em números absolutos, foi cifra maior do que os 22,5 milhões obtidos por Lula no Nordeste, onde o desequilíbrio apenas se deu em termos proporcionais: 69 contra 31 por cento. Mesmo assim, a pior performance do PT na Região desde 2002.

Santa Catarina veio à tona pela preferência invertida: 69,27 a 30,73 em favor do outro. Mas também entrou na conversa em vista da paixão de uma família com sobrenome alemão pelo clima, pelo sotaque, pelos costumes, cheiros e tons nordestinos. Num cenário de divisão absurda e ódio injustificável, espantava-nos o fato de que gente endinheirada de lá provinda pudesse nutrir sentimentos tão bons, tão fortes e tão gratos pela nossa terra e pelo nosso povo.

Começa, agora, então, na essência e com as licenciosidades da crônica, a história por mim ouvida. O casal catarinense de meia idade e sua segunda filha haviam desembarcado, há pouco, em João Pessoa pela quinta vez. Aqui permaneceriam por quatro ou cinco dias em busca da água morna, festas, frutos e quitutes de Tambaú. O pai esperava, ainda, retomar o bate-papo noturno com o jangadeiro de quem se fizera amigo quando da primeira visita à cidade. Colhia, em cada ocasião, histórias do mar, truques para vencer o vento, informes sobre ocorrências de cardumes e sobre o comércio local de peixes. Sempre recompensava o interlocutor com experiências da pesca recreativa em águas profundas e mais frias com barco moderno, luxo a que se pode dar quem tenha amor pelo esporte e saldo bancário igual ao seu. E ambos, prazerosamente, compartilhavam conhecimentos desses dois mundos.

A mãe dispunha-se a buscar autores locais e a encher as malas com objetos do artesanato mais genuíno, panos diversos e roupas confeccionadas com o algodão que, na Paraíba, ao invés de levar tintura, ganha suas cores da Natureza. A graduação em Sociologia, enquanto isso, animava a garota ao estudo dos nossos hábitos e das nossas expressões culturais e artísticas. Ela mal esperava o momento de chegar à fazenda da irmã mais velha, no coração da zona seca, onde seu aprendizado e seu encantamento se completariam.

Meu amigo inteirou-se disso em razão da vizinhança ocasional com aquela família ocupante de apartamento junto ao seu. Conhecia o dono, o paraibano que conquistara o coração da primeira filha. Soube, por este último, que o sogro, a sogra e as duas crias de início não nutriam sentimento diferente daquele que os sulistas expressam contra os nordestinos, notadamente, quando perdem eleições.

Um fato inesperado, ocorrido há quase uma década, mudaria tudo. O moço rumava para o restaurante costumeiro, em Florianópolis, onde concluía o Mestrado em Carcinicultura, providência útil a seu propósito de criar e exportar camarões, quando percebeu o ataque de dois sujeitos a um terceiro que, já caído, recebia chutes. Os gritos por socorro da jovem ao lado o levaram a intervir na briga. Nada pretendia além de acalmar os ânimos até ele próprio ser agredido. Depois de uns bons tabefes, pôs os dois valentões para correr. Teve, depois disso, a companhia para o jantar do casal (primo e prima) por ele socorrido. Ganhou carona até a casa dos parentes que o hospedavam e o convite para conhecer a família da moça com quem casou em pouco tempo.

O Nordeste entrou, assim, com todas as honras e glórias, do mar ao sertão, no coração daquele pessoal. O apartamento em Tambaú, bairro cujo padrão e crescimento a todos surpreendia, passava a abrigar, ocasionalmente, os sogros, a cunhada e eventuais agregados. Assim, também, a casa da fazenda, lugar da predileção daquele projeto de socióloga.

Umas tantas leituras ampliaram o envolvimento da moça com temas díspares que por aqui incluíam a indústria, o consumo, a tecnologia, a modernização, as toadas, a literatura, o folclore e a vaquejada. Sabia do gibão, guarda-peito, perneira e de como o Islam, com escala na Península Ibérica, chegou ao Nordeste nos primeiros momentos da colonização para influências na comida, na arquitetura e na música. Que o dissesse a tríada sertaneja feita de pífano, rabeca e viola. Assim, também, a inscrição nos chapéus dos cangaceiros de símbolos encontrados no Castelo de Alhambra, palácio e fortaleza árabe, a oitava maravilha do mundo. E de como o Azan, o chamado islâmico à oração, deu seus tons guturais ao aboio, o canto de trabalho com o qual o vaqueiro acalma e conduz o gado. Sorvia ela, quase em êxtase, cada um desses conhecimentos.

“Para amar é preciso conhecer. A ignorância não ama, exista onde existir”, observou meu amigo no momento da nossa despedida. Saiu ele em direção ao Shopping Center onde encontraria a mulher e os netos enquanto eu me pus, pensativo e pesaroso, no rumo de casa.

BONS BELARMINOS, por Babyne Gouvêa

Imagem meramente ilustrativa copiada de declamaria.wordpress.com

Eles eram irmãos, de baixa estatura, de cor morena e cabelos lisos. Ele tinha bigode espesso, bem preto. Ele se chamava Manuel Belarmino – apelidado de Seu Mané e ela, Socorro Belarmino, carinhosamente também chamada de Help.

Vieram do interior da Paraíba procurar trabalho. A seca provocou a migração para a capital. Aportaram à casa dos meus pais e de imediato se estabeleceu empatia de ambas as partes. Ela ajudou a minha mãe nos serviços da casa e ele foi executar o seu ofício no Esporte Clube Cabo Branco.

A disposição física dos irmãos era admirável. Músculos dos braços e pernas faziam inveja a qualquer fisiculturista. A musculatura foi resultante do esforço físico diário em busca de água – do campo, onde moravam, a uma cacimba nas proximidades da cidade de Belém do Brejo do Cruz. Caminhavam com latas d’água na cabeça.

Socorro não tinha registro de nascimento. Foi convencida por minha mãe a providenciar a carteira de identidade. Inicialmente, foi ao cartório e conseguiu diminuir quinze anos na idade real. De trinta e três foi registrada com dezoito anos. Não sabemos até hoje como ela conseguiu essa proeza.

Um dos meus irmãos tentou alfabetizá-la. As lições eram ministradas com a Cartilha do Povo. Aquela mesma do Vovô viu a Uva. Ele era enérgico e aplicava repreensões à aluna, na ânsia de vê-la lendo. Ela, temerosa, decorava a sequência das palavras na cartilha. No final das contas, foi possível deixá-la familiarizada com as letras.

Quem passava pela sede social do Esporte Clube Cabo Branco via Seu Mané movimentando uma vassoura ou uma enceradeira. Era incansável. Mesmo nas horas de descanso ele não conseguia parar de trabalhar. Os colegas interrogavam de onde vinha tanta disposição. Respondia sem tergiversar, com dúvidas se estava satisfazendo a curiosidade dos amigos: “Não abro mão de trocar uns arrochos com a minha esposa, diariamente, nos primeiros raios de sol”.

No seu dia de folga, Mané se dirigia à casa dos meus pais e pedia para fazer algum serviço. Importante era não ficar ocioso. Em uma das ocasiões minha mãe lhe orientou a retirar umas manchas na parede do terraço; e que usasse um produto chamado Vim, que se encontrava na cozinha. Quando terminou o serviço quis mostrar o resultado, como de praxe. Ele passou vinho localizado, casualmente, na copa. A parede, evidentemente, ficou cor de rosa. Recebeu elogios bem típicos da personalidade delicada da minha mãe.

Determinado dia, Seu Mané seguiu para a Feira da Bicicleta. Fez compras e apareceu ostentando um relógio no pulso esquerdo. Gostava quando a minha mãe conversava com ele. E vendo a novidade em seu braço se estabeleceu o diálogo:

— Muito bem, Seu Manuel, me mostre o relógio mais de perto; ué, só tem um ponteiro!

— É porque com dois ponteiros é mais caro, D. Cidinha.

A beleza dos dois irmãos estava na pureza revelada em suas ações. Foram criados em ambiente sem malícia, mesmo enfrentando as adversidades que lhes foram impostas. Belarmino significa, gramaticalmente, indivíduo tolo. Belarmino, sobrenome de Seu Manuel e Socorro, significa servir ao próximo sob o credo da honradez.

ESQUIZOFRENIAS, por José Mário Espínola

Cena do filme ‘O Capitão’ (imagem copiada de Central Comics)

A vida às vezes imita a arte. Ou teria sido o vice-versa, neste caso? Vejamos.

A película alemã O Capitão (Der Hauptmann – 2017), direção e roteiro de Robert Schventke, conta a história de um soldado raso alemão, que nos estertores da Segunda Grande Guerra está desertando, em pleno rigor do inverno da Europa Central.

A fuga livra o soldado de comandos nazistas, fanáticos que caçam e executam esses desertores pelas florestas, usando todo o requinte de crueldade que lhes é peculiar.

O nosso “herói” consegue escapar escondendo-se num buraco. Mas perde uma das botas e rasga o agasalho. Passado o perigo, vaga pela floresta morrendo de frio e de fome, quando encontra um carro oficial abandonado, contendo uniforme, botas e sobretudo de capitão da Wermacht, o exército alemão. Está salvo do frio, pensa. E veste o uniforme.

Logo se defronta com outros militares, que lhes prestam a obediência ao cargo aparente e se submetem às suas ordens.

Assim, involuntariamente ele começa a comandar. Assume a identidade do uniforme e passa a perseguir outros desertores, inclusive usando os mesmos requintes de crueldade.

Quatro anos atrás, um tenente do Exército que nos anos 1980 havia sido reformado por incompetência moral e recebido o posto de capitão, foi eleito Presidente da República, em votação democrática e incontestável.

Em 1º de janeiro de 2019, o vitorioso assumiu o mandato, o que o tornou, por força do cargo, comandante-em-chefe das Forças Armadas. Como nunca teve maturidade nem equilíbrio para assumir um cargo de tanta responsabilidade, passou a confundir as Forças Armadas com objeto de sua propriedade pessoal, e não como órgãos institucionais, de estado.

É visível a sensação de “embriaguez” do cargo, nos primeiros registros de imagem, quando tem diante de si generais, brigadeiros e almirantes.

Semelhante ao capitão nazista, o capitão brasileiro assumiu a “farda” de comandante-em-chefe das Forças Armadas, porém nunca assumiu as responsabilidades conferidas pelo terno de Presidente da República. E assim vem se comportando ao longo de todo o seu mandato.

Ele chegou a essa distorção pela falta de alguém mais sensato que lhe chamasse à realidade, e que ele respeitasse. Ao contrário, ele só deu ouvidos àqueles insensatos que lhe alimentaram a sua distorção mental, a sua fantasia de marinheiro.

E para isso não têm faltado bajuladores em seu entorno, a começar pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional, figura que só exala ódio e rancor.

Esse arremedo de comandante, para felicidade do país, a partir de 1º de janeiro próximo vai despir-se da sua fantasia de comandante incontestável, enfrentará a realidade e deixará de brincar de Cabeça-de-papel.

Esperamos que finalmente receba o tratamento adequado à sua importância: psiquiátrico.

FECHANDO O FIRO, por José Mário Espínola

Imagem: Google

O firo é um jogo que foi muito difundido décadas atrás. Consiste em um tabuleiro com 24 casas, com dois participantes, cada um com nove pedras, pretas e brancas.

O objetivo é enfileirar três pedras em linha reta e sequenciada. Toda vez que se consegue essa formação, o jogador saca do tabuleiro uma pedra do adversário. A expressão “fechar o firo” é justamente o ato de concluir uma boa jogada. Ganha quem conseguir tomar mais peças do adversário, fechando o seu firo.

***

Pouco menos de quatro anos atrás, ao iniciar o mandato, o presidente iniciou uma dança de ciranda de mau gosto, ao avançar e recuar em ameaças às instituições da República e à democracia brasileira.

Todas as vezes que fazia algo reprovável, do ponto de vista institucional, ele recuava, dizendo que era brincadeira. Como ele previa, passou a não ser levado muito a sério, especialmente por quem teria como ofício levá-lo a sério: o presidente da Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República.

Vendo que nada de mal lhe acontecia, ao longo desses quatro anos de mandato o presidente foi proferindo palavras ou tomando atitudes cada vez mais ameaçadoras. E fechando uma espiral em torno da Constituição, como num Bolero de Ravel sinistro, mal-executado por músicos diabólicos, a cada rodada revelando que havia um golpe no centro da espiral.

Ninguém o impediu, o que o deixou cada vez mais estimulado a executar o seu plano sinistro. Sempre surgia alguém importante para dizer ao povo que ele não executaria seu plano sinistro, que era tudo brincadeirazinha.

Como o presidente, embora seja medíocre, não é nenhum otário, e como ele conta com uma assessoria diabólica para fazer o que não presta para o Brasil, ele tomou consciência de que havia fragilidade constitucional do cargo que exercia. Viu que o seu mandato passava pelas mãos do presidente da Câmara dos Deputados e do Procurador-Geral da República.

Nos primeiros dois anos de mandato ele contou com o fator sorte. Pois durante esse período choveram pedidos de impeachment contra ele, na Câmara dos Deputados. Porém, por razões misteriosas, todos foram abafados pelo presidente de então, Rodrigo Maia. A primeira pedra do firo.

A partir do 11º mês do mandato, o presidente contou com o apoio incondicional do Procurador-Geral da República. Este nunca tomou a atitude de denunciar as ações nefastas e crescentes do presidente. Ele é a segunda pedra do firo.

Na virada da metade do seu mandato, o presidente viu que ainda corria riscos: a Câmara dos Deputados ia renovar a sua diretoria, saindo Rodrigo Maia. Assim, precisava agir rápido.

Acionou o Centrão, agora seu parceiro e fiel depositário da sua garantia para continuar presidente. Com a influência do deputado piauiense Ciro Nogueira, eminência do Centrão e por ele nomeado ministro, foi selecionado o deputado alagoano Artur Lira.

Com o total empenho do presidente para “adquirir” apoios, Lira foi eleito e, portanto, assumiu a presidência da Câmara e se tornou o fiel escudeiro do presidente.

Com Lira, o presidente garantiu chegar ao final do seu mandato, fizesse o que quisesse. Assim, o presidente fechou o seu firo.

***

Chega-nos a notícia de que o presidente eleito pretende dar apoio à recondução do presidente da Câmara, Artur Lira. Diz a imprensa que isso pode acontecer devido à necessidade de trazer o apoio do Centrão para a sua bancada, naquela Casa. A notícia é preocupante. Gera muita apreensão.

Por tudo o que nestes quatro anos foi feito de mal ao Brasil, ao povo brasileiro. Às minorias perseguidas durante este governo. À natureza do nosso território. À cultura. À nossa independência. À nossa importância para o resto do mundo.

Enfim, tudo isso poderia ter sido evitado se uma dessas três peças do firo do presidente tivesse tido a hombridade de agir como lhe exigia o cargo.

Provavelmente vão dizer que essa negociação com o Artur Lira é estratégica, para garantir a sobrevivência do novo presidente. Lamentável. Significará garantir que o crime compensa. Será um péssimo exemplo para o nosso povo, os nossos jovens. Será um acinte!

Temos a certeza de que ele encontrará outra saída para governar em paz. Há muitos outros nomes na Câmara dispostos a apoiá-lo, e trair Artur Lira.

Temos a certeza, ainda, que o novo presidente já está fechando o seu firo para governar o Brasil com muito mais ética e escrúpulos. Tem apoios para tanto.

AS MODERNAS VIVANDEIRAS, por José Mário Espínola

Bolsonaristas fazem crianças de escudo em bloqueio de rodovia (Foto: Reprodução/Twitter)

“Eu os identifico a todos. E são, muitos deles, os mesmos que desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar.”

O autor dessa frase famosa é o marechal Castello Branco, primeiro presidente não-eleito a governar o Brasil nos vinte anos da ditadura militar de 1964.

Ele estava se queixando daqueles civis que, antes do golpe, assediavam os militares, procurando convencê-los a atentar contra a ordem constituída, derrubando o presidente João Belchior Marques Goulart.

Após darem o golpe, no dia 1° de abril de 1964, ao longo de mais de duas décadas os militares fecharam Congresso, cassaram milhares de políticos, juristas, funcionários públicos, magistrados, estudantes universitários e todos aqueles brasileiros que fossem adversários ou simplesmente discordassem da ordem estabelecida.

Estabeleceram a censura e instituíram a tortura e o assassinato de quem fosse considerado adversário. Em consequência, morreram milhares de pessoa.

Em agosto de 1964, Castello Branco proferiu a célebre frase. Queixava-se desses políticos que levaram os militares a embarcar numa nau sem rumo. E que, quatro meses depois, estavam proferindo críticas contra os mesmos militares, por não conseguirem as benesses que esperavam receber. Afinal de contas, apoiaram o golpe por interesse próprio, não da pátria.

As modernas vivandeiras não são pudicas, têm um comportamento bem mais ostensivo. Para pressionar os militares, estão bloqueando rodovias, infernizando a vida dos brasileiros. Agridem e ofendem quem pensa diferente ou se manifesta, mesmo que sejam estudantes secundaristas, invadindo ônibus para covardemente atacá-los. Bloqueiam ruas de acesso a quartéis, indiferentes aos transtornos que causam. Pois não têm a menor sensibilidade aos problemas dos outros.

***

Menos de sessenta anos depois, a história está se repetindo. Assistimos aos baderneiros da extrema-direita, açulados pelo seu líder, o presidente derrotado democraticamente nas urnas, rodarem as suas bolsinhas ao longo das calçadas dos quartéis de todo o Brasil. São as modernas vivandeiras.

Além disso, em outra frente tentaram paralisar o país, bloqueando as estradas com seus caminhões. Como tudo tem um custo, e caminhoneiro geralmente não é rico, provavelmente existem financiadores por trás deles.
São figuras covardes, que não se expõem por medo de sofrer as consequências legais dos atos praticados por seus paus-mandados. Mas o pior ainda estava por acontecer.

Quando finalmente as forças de segurança foram acionadas e chegaram à linha de frente, para se defender os manifestantes colocaram em risco a vida de crianças, que puseram na frente como verdadeiros escudos humanos, para os adultos não sofrerem com a repressão. Fizeram iguais ao que fazem os assaltantes de banco do moderno cangaço, que se escudam atrás dos reféns para evitar que a polícia atire neles. Atitude de tremenda covardia, sendo ainda mais cruel por fazê-lo com crianças!

Agindo como verdadeiras buchas de canhão para o presidente, esses baderneiros não aceitam que o seu candidato à reeleição tenha sido derrotado de forma limpa, nas urnas, após uma campanha desigual, nunca vista antes no Brasil, quando o presidente fez todo tipo de manobra vedada por lei, escancarando o Tesouro Nacional para comprar votos.

Todas essas agressões à Constituição, consideradas criminosas, estão sendo estimuladas pelo presidente derrotado e seus filhos, que estão na expectativa de perder as benesses acumuladas  nos últimos anos: impunidade, apesar de terem ferido a lei de todas as maneiras. E a proteção de elementos das instituições por ele aparelhadas: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, CGU, e tantas outras. É o fim do foro privilegiado.

Covardemente, nem ele nem seus filhos vão para a linha de frente das manifestações, estimulando os otários a se exporem por eles, como buchas de canhão.

***

Após a eleição, as autoridades de saúde vêm realizando o cálculo do número de leitos necessário para internar a imensa quantidade de psicopatas revelada na votação, para garantir tratamento.

Logo de saída, pensaram em mais de 40 milhões de leitos. Ao longo da semana, porém, como se realizassem uma autocrítica, esse número foi reduzindo progressivamente, ficando apenas em poucos milhares os leitos necessários para internar todos os malucos. A maioria está demonstrando que ainda tem juízo. Algumas delas até já estão fugindo para os Estados Unidos, para escapar da prisão. As manifestações estão funcionando como um auto-censo. 

Mas uma boa notícia estava reservada para o SUS. Boa parte das internações será paga pelos diversos planos de saúde privada desses pacientes, revelando sua origem social: as Unimeds, SulamericaSaúde, Amil, Hapvida, Bradesco Saúde, Allianz, Rede D’Or e outros convênios da medicina suplementar.

VÍDEO: BOLSONARISTAS AGRIDEM ESTUDANTES

COM A MORTE NA ALMA, por Francisco Barreto

Imagem meramente ilustrativa (Crédito: Senhora Terapia)

“Lembranças são lembranças, mesmo pobres; olha, pois, este jogo de exilado e vê se, entre as lembranças, te descobres”. Carlos Pena Filho

Nunca admiti, nem poderia, esquecer ou aniquilar as minhas doloridas lembranças de uma fase severa e brutal da minha juventude sob os coturnos militares. São cicatrizes irremovíveis.

E, a cada vez que afloram essas recordações, intensamente as vivo. Tenho a consciência de que o resgate delas não se cristalizaria enquanto memórias, mas como perversas imagens sempre recorrentes. E sei também, mesmo com o desencanto das más lembranças, que estas, quando compartilhadas, podem significar que desejei reeditar a amarga experiência de minha vida. E penso que, se alguém me guardar na memória, não terei ido embora sem deixar as marcas dos meus passos.

Já se profetizou – “quem fica na memória de alguém não morre”. E me guardará, se valer a pena.

Difícil é sempre editar a memória, quando se tem uma trajetória de fatos desabonadores. Fácil é buscar, e mergulhar no tempo, ainda que sofrido, e resgatar as lembranças honrosas que o coração nunca conseguirá arquivar.

É irônico, e lamentável, saber que as lembranças felizes raramente afloram. As más tendem a se perpetuar, como cicatrizes de fraturas expostas. São imagens de um passado desolador. Essas imagens negativas, vez por outra, são revividas, embora se escondam em ressentimentos indeléveis, porque exalam ferimentos, e dão asas à renegação de possíveis reprises como as que estamos vivendo.

Nestes tempos presentes nos aterrissam e nos assustam as dramáticas ameaças feitas por doentes que insistem na retomada dos ímpetos ditatoriais para sepultarem o Estado de Direito e a Democracia. Os que querem reinventar a maldade, os mesmos que advogam o cultivo de “ovos de serpentes” nos mostram que estamos diante de uma patologia que apregoa o sepultamento de uma sociedade atônita, e por vezes inconsciente.

Embora tenha decorrido mais de meio século a loucura, os desatinados, criminosamente e em grande número, insistem na infâmia ao conjugarem verbos que recitam o golpear instituições e pessoas como se faziam num monstruoso passado. Ditadura, prisões, torturas, mortes, exílios, cassações de direitos políticos, aniquilamento de instituições republicanas.

Não estamos mais diante de embates políticos e ideológicos entre direita e esquerda. Estamos asfixiados por atitudes que resvalam na vala comum de uma patologia do desequilíbrio mental coletiva que recorre e usa o ódio criminoso no exercício da maldade e da insanidade.

Retorna-se a reverberação de um maniqueísmo edificado à luz de graves e insanos desvios de personalidade que mitificam claros sinais de doença coletiva que os fazem abdicar de suas personalidades e consciência individual.

Com todas as ressalvas politicas e morais, parte da Nação brasileira agarrou-se com unhas e dentes para escapar do encilhamento da miséria humana. A nós, hoje, ainda não nos é permitido admitir que estamos a caminho do céu, sabemos apenas que procuramos nos distanciar do inferno. O tempo o dirá.

Aqui e agora, mesmo distantes e passadas as circunstâncias de uma tenebrosa e pretérita vida política, sabemos que o passado nunca desaparece. Guardamos sempre lembranças de eventos desoladores. A vida é feita de momentos bons e ruins. Os maus esmagam os bons. Somente a infância e a juventude, creio eu, são capazes de nos fazer reverberar antigos vestígios de felicidade. Recordações felizes alimentam a alma. as ruins machucam sempre o coração.

A miséria humana nos precipita a acreditar que no final de tudo poderemos ter a morte na alma política decretada pela desesperança e a maldade do ser humano.

Fernando Pessoa nos disse: “O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página, e a história continua, mas não o texto”.

CRIME DE LESA-PÁTRIA, por Frutuoso Chaves

Imagem meramente ilustrativa (Crédito: Pixbay)

Os acontecimentos tornam a mostrar que os bloqueios rodoviários – decorram das greves por aumento do frete, ou de movimentos perversos da política partidária – são mesmo uma questão de segurança nacional. A destruição gradativa das ferrovias brasileiras representa, desse modo, um crime de lesa-pátria.

Vale a pena uma boa olhada no Anuário Estatístico dos Transportes. A malha ferroviária do Brasil batia na casa dos 30 mil quilômetros, em 1920. Hoje, com todas as ampliações decorrentes, por exemplo, da Transnordestina, Norte-Sul, Pantanal, Estrada de Ferro de Carajás e Estrada de Ferro Vitória a Minas, nossos trilhos mal se estendem por 29 mil quilômetros e, em sua maioria, com a bitola métrica do Século 19. Num País sem navegação de cabotagem digna de seu papel em boa parte do mundo isso beira a catástrofe.

O desmantelamento iniciou-se com o nascimento da indústria automobilística e completou-se nos governos dos generais. A Transamazônica, a rodovia que nunca foi concluída, tem custo da ordem de US$ 1 bilhão, ao que lamenta a matéria “Crime e abandono”, da Folha (edição de 22/10/2016), com as assinaturas de Fabiano Maisonnave e Lalo de Almeida.

Até que houve alguma tentativa para a reposição do Brasil nos trilhos que, durante muito tempo, a contar da fase áurea do café e das fibras vegetais, foram a principal via de escoamento de cargas e passageiros neste lado de baixo do Equador. Que o diga o Plano Nacional de Desestatização dos anos de 1990, esforço que deu com os burros n’água, à luz dos entendidos, em razão do modelo que dá às concessionárias tanto o controle sobre as vias quanto sobre os trens. Modelo que ainda vige nos atuais corredores de exportação de grãos e minérios.

O velho PND de Collor foi o sepulcro, no Nordeste, da Rede Ferroviária Federal S/A, a “Refesa” da encantadora pronúncia interiorana, tal como muitos de nós a conhecemos. É que os trens e trilhos nordestinos passaram a servir como almoxarifado para a reposição de peças e equipamentos então criminosamente remanejados para os ramais mais lucrativos do Centro-Sul.

Matou-se o deficitário e assim se fez sem a percepção de que os déficits devem levar em conta o bem coletivo. Bela matéria da BBC Brasil, assinada por Camilla Veras Mota, tratava dessa questão, um ano atrás.

As ofertas do carro próprio, a expansão das estradas e os progressos da aviação, de fato, agravam os problemas do sistema ferroviário em partes diversas do mundo. Mas os governos, lá fora, não deixam de agir em favor da sociedade. Isso explica por que, nos Estados Unidos, berço do capitalismo, a condução de passageiros por trilhos está nos vagões de uma estatal: a Amtrak, fundada em 1971. Assim também ocorre na Alemanha (com a Deutsche Bahn), na Espanha (com a Renf) e na França (com a SNCF).

Condoo-me, particularmente, com a morte dos trens de passageiros. Até porque fiz muito uso deles. Foi o meio de transporte que utilizei, quando menino, para o estudo no Recife. Saía da pequena Estação de Pilar e pegava o rumo de Itabaiana. Viagem longa e saborosa até o destino final.

Acho que me tornei jornalista levado pela oportunidade de ter visto meu mundo pela janela do trem. As paisagens rurais, as conversas, a subida e descida das pessoas, a contemplação do abraço feliz ou do choro entre os que se reencontravam ou se despediam, a venda ambulante de castanhas, milho e cocada aguçaram-me o senso de observação.

Impressionava-me como, de repente, os meninos de todo o meu percurso, cidade por cidade, pareciam combinar a mesma brincadeira. Eu saía da pequena Pilar com jogo de bola de gude e constatava que não era outra a brincadeira nas povoações sucessivas à beira da linha. Outras vezes, era um empinar sem fim de papagaios, quando a viagem se fazia, em sentido inverso, no rumo de casa paterna para as férias de dezembro. Logo percebi que tudo dependia do tempo e do clima: ninguém solta pipa no inverno. Tive, desse e de outros modos, exercícios de contemplação da vida, mesmo que restrita à beira da linha. Repito: vi muito do meu mundo pela janela do trem.

O sucateamento do sistema ferroviário nos é danoso sob todos os aspectos. Agrava a superlotação das estradas, produz um dos trânsitos mais letais do planeta e embute nos preços de lojas e supermercados o custo elevadíssimo do frete rodoviário de mercadorias e produtos. Tanto quanto tudo isso, deixa uma Nação inteira à mercê dos inconsequentes.