Acreditem. Houve um tempo em que bacalhau era prato de pobre, bem ao contrário da galinha mais presente, então, à mesa dos abastados. Os adentrados hão de lembrar da expressão popular antiga e bem humorada: “Quando um pobre come galinha um dos dois está doente”.
Mas é do peru que pretendo falar. Dele e da crise perversa que campeia nas quatro direções da Rosa dos Ventos neste Brasil imenso, injusto e, agora, mais desigual.
Abstraída a esperança que por sabidas razões o Ano Novo nos reserva, este não será um dos nossos melhores Natais. Bem o dizem as piadas que, de uns tempos para cá, envolvem a classe média com suas carências e cartilagens. Fala-se que parte dela, mesmo arrependida de umas tantas burrices, ainda não perdeu a pose: come pé de galinha para arrotos de caviar.
Mas vamos ao peru dos ricos e ao bacalhau dos pobres, cuja tragédia, de tão grave, não deveria admitir o mínimo deboche. Sendo assim, tratemos do assunto com os olhos e os sentidos no passado. Deixemos que disso falem a vivência e o talento de José Lins do Rego, pilarense de quatro costados.
O que ele conta nos remete à sua infância na primeira década do Século 20 e às histórias ouvidas no Corredor, o engenho do avô hoje com a Casa Grande novinha em folha e disposta à visitação pública, porquanto objeto dos cuidados e do zelo dos atuais proprietários.
O capítulo diz respeito aos consertos de carpintaria na moita de engenho sob cujo teto abrigavam-se os tachos, a moenda e a fornalha para o preparo do mel e do açúcar. Lembra José Lins, no icônico “Menino de Engenho”, seu primeiro livro:
***
Eu passava o dia inteiro rondando os oficiais nas suas confidências. Contavam a história de uns carpinas num engenho do Brejo.
O senhor de engenho só mandava para eles bacalhau, na janta e no almoço. Passavam o dia inteiro bebendo água com a boca seca. Um dia um deles disse para o negro que não gostava de bacalhau, que não aguentava mais aquilo.
No outro dia o tabuleiro com a comida chegou: era peru. E peru de tarde. E a semana toda, peru. Num domingo, o mestre saiu para dar umas voltas nos arredores. Viu um negro com uma porção de urubus nas costas:
– O que é isto, moleque?
– É peru pros carpinas.
Os oficiais anoiteceram e não amanheceram na propriedade. E rebentou ferida pelo corpo deles. Estiveram para morrer um tempão.
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