Naquela madrugada de 1970, não sei por que, eu me pus a assoviar “Summertime”, a canção que George Gershwin legou à eternidade. Todo mundo já a ouviu, mesmo que disso, porventura, não o saiba. Está, vez ou outra, no rádio, embora quase se tenham passado 90 anos desde a composição para a ópera “Porgy and Bess”. Tornou-se um clássico do jazz e teve milhares de gravações, uma delas na voz espremida e emblemática de Janis Joplin.
Logo mais, amanheceria numa Pilar de portas fechadas e sem uma viva alma nas ruas, exceto a minha e as de três companheiros egressos, como eu, do forró de Zé Laurindo, no Alto da Serventia, onde, evidentemente, não tocavam Gershwin.
Os amigos seguiram para suas casas enquanto preferi deitar no banco de um dos canteiros situados no meio da rua principal. Assim o fiz no ponto defronte à extinta padaria do meu pai. Talvez, pelo desejo inconsciente de ter de volta as pessoas e tudo aquilo mais que o tempo me roubara. Mas, certamente, por sentir que não poderia estar, àquela hora, em lugar mais seguro.
Em 1970, eu morava em João Pessoa na companhia de pai e mãe ainda vivos e sadios. Mas estava em Pilar aos fins de semana para dar aulas a cinco turmas de ginasianos, quase um voluntariado se a expressão disser respeito ao salário do Colégio da Campanha Nacional das Escolas da Comunidade, a CNEC, ação benfazeja posta em prática, nacionalmente, pelo professor Felipe Tiago Gomes, paraibano de Picuí. Salário que, na verdade, ficava, ali mesmo, ora no Bar de Manoel de Laura, ora na Sinuca de Jaime, pontos habituais de reunião dos amigos antes dos nossos encontros com as namoradas e, depois disso, das idas clandestinas à Serventia, ou à Maloca.
Advindo dessas noitadas, aprendi a demorar, um pouco mais, em banco de rua, antes de buscar a cama na casa de um primo que me hospedava. A ideia era curtir um tanto daquilo consumido nos bailes que me presenteavam a juventude, os amigos e as circunstâncias.
Eram pausas ditadas pela cautela desde que despenquei no sofá de seu Raimundo, pai do meu primo, ao pular a janela estreita e disposta sem trancas aos retardatários. Caí e acordei o dono da casa que me tinha como filho e de quem recebi o pito: “Duas coisas podem derrubar um homem: bebedeira e rapariga”, alertou-me. Depois disso, sempre me seria aconselhável deitar durante algum tempo num daqueles bancos antes de tentar o ingresso na casa amiga em operação atlética e um tanto arriscada até para os abstêmios. E tome Gershwin na madrugada.
Isso me vem à mente a cada notícia de explosões em agências bancárias de outrora pacatas, serenas, cidadezinhas do interior deste Brasil mais próximo da barbárie. E pensar que o costume de portas e janelas recostadas era coisa comum, corriqueira, nos meus verdes anos. Lembro que a minha e outras mães não se dispunham a sair da cama para atender aos maridos. Noite alta, eles que empurrassem a porta e entrassem sozinhos no santo recesso do lar, franca ou disfarçadamente, com ou sem as caras lisas. Tem mais: o litro de leite depositado no umbral das nossas casas, antes do raiar do sol, ali permanecia até o recolhimento, horas depois, por alguém entre os moradores.
Tempo desgraçado, este de agora, no qual bandos armados agridem e, sem distinção, aterrorizam grandes e pequenas cidades subtraindo destas últimas, além do sossego, hábitos noturnos, alguns centenários como o das cadeiras nas calçadas para a confraternização dos vizinhos. Tempo infame este que hoje nos impede o assovio nas madrugadas.
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