Jacira chegou apavorada, depois das 8 da manhã, para o trabalho doméstico. “Madrinha, ninguém na rua conseguiu dormir”. Referia-se à Rua da Lagoa habitada, naquele tempo, por lavadeiras de roupa e louceiras, assim chamadas as mulheres que, em bom número, usavam o massapê dos fundos de quintal para a confecção e venda de panelas de barro nas feiras livres da minha infância.
“O que houve?”, perguntou minha mãe à afilhada de fogueira. Explique-se: de fogueira, sim, com batismo em fogo, isto é, em saltos sobre as brasas de junho, de mãos dadas e com os dizeres: “Juro por São João, São Pedro e São Paulo que a senhora é minha madrinha” (no pulo de ida) e “minha afilhada” (no de volta). A consideração, a partir daí, não era menor do que a dedicada ao fruto do batismo formal, com padre, vela, pia e festa. Não existe padrinho de fogueira, entretanto, isso não impediria que o velho Juca, meu pai, fosse tomado como tal pela moça assustada.
“O que houve?”, repetiu ele a pergunta da esposa. E Jacira contou que um choro de menino pequeno, surgido do meio das águas, varou a noite e a madrugada como se advindo de quem estivesse a carregar todas as dores do mundo, apesar de recém-nascido, como fazia crer o “coééé” esticado e quase sem pausa para respiração.
Só poderia ser uma coisa: um pagãozinho necessitado de reza. E reza não faltou naquela noite, coletiva ou solitariamente, puxada, no primeiro caso, pelos que tiveram coragem de ir à casa dos outros a fim de em grupo pedirem aos Céus abrigo para o anjinho. Porém, nada suavizou o suplício da almazinha penada e chorosa. E o medo se instalou na Rua da Lagoa.
Anos antes, outro acontecimento havia tirado o sono de moradores da cidade, desta vez, o dos residentes na rua principal. Acordavam com pedras nos telhados atiradas, não se sabia por quem, até a Polícia apanhar em flagrante o moleque Carneiro.
Mas pedra é pedra e choro é choro. Tinha-se, agora, uma coisa imaterial provinda do meio de um lago. Descrente, contudo, dos mistérios do Além, assim tidos e havidos, o Velho Juca convenceu o amigo Diu, com quem rivalizava no tiro em nhambus (politicamente corretos, naqueles idos), a montar tocaia para a assombração na noite seguinte. E assim fizeram, com suas espingardas, seus cachorros e, é claro, a melhor cachaça que o dinheiro ali podia comprar. Ninguém os condene: noite é noite e frio é frio.
Já quase desistiam da espera quando lá vem o berreiro. Apitos de madeira retirados dos bolsos reproduziram, numa margem e noutra, o pio de um pé-vermelho, conforme o combinado. O cerco foi encurtando, os cachorros foram soltos e, antes que alcançassem um amontoado de baronesa, aquela plantinha flutuante de onde o som provinha, algo alçou voo.
Pei! Pei!… Os tiros quase simultâneos de calibre 20 devem ter despedaçado o que quer que fosse aquilo. Os dois companheiros iriam jurar que se tratava de algum bicho de penas com hábitos noturnos. Mas sequer havia penas para mostrar. Errar o tiro? Impossível, no caso de caçadores com mira comprovada e invejada por muitos.
Bem, Jacira e alguns dos seus iguais chegaram a comentar, à boca pequena, que o medo frustrou a tocaia e aqueles dois apenas dispararam para o alto, em debandada. Vá lá confiar em afilhada de fogueira, gente de meio respeito e compromisso somente com as madrinhas. Seja como for, ave ou anjo, a Rua da Lagoa voltou a dormir em paz.
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