Poucas vezes na vida pude viver e sentir na alma uma contradição tão antagônica revelando extremos que me causaram feridas tão graves e tão gritantes até hoje.
Em 2006, fui a Santa Catarina participar de reunião do Fórum Nacional de Secretários de Administração das Capitais, do qual era Vice-Presidente. Sabedor da minha viagem, foi instado pelo meu estimadíssimo amigo Walter Galvão, então Secretário de Educação de João Pessoa, a fazer uma visita ao Balet Bolshoi de Joinville e ver como estava o nosso grupamento de talentosas crianças que lá estudavam.
Terminado o encontro com o coração alegre, acompanhado de minha ex-mulher Emília ganhei a estrada em busca de Joinvile. Lá chegando, após uma viagem agradabilíssima, fui direto ao endereço da Escola Bolshoi. Me apresentei. Era horário de atividades das crianças. Fiquei encantado com uma grande quantidade de colibris saltitantes executando nos corredores seus precisos passos. Fui recebido pela Maestrina Diretora, que de modo encantador me apresentou à Professora preceptora e cuidadora dos nossos infantes pessoenses.
Fizeram-nos visitar os deslumbrantes ambientes do formidável Bolshoi, inúmeras salas de música e de canto, ambientes espelhados onde deslizavam meninos e meninas vestidas a caráter, o local de indumentárias com centenas fantasias e malhas a rigor, sala de aulas de ensino convencional, cantina para refeições, pequenas quadras de esportes, sala de repouso em ambiente de profundo silêncio e finalmente, o requintado e confortável salão de apresentações das peças de inúmeros clássicos do balet clássico desde o Pássaro de Fogo de Stravinsky ao popular Lago do Cisne de Tchaikovsky. Nos corredores cruzamos com dezenas de crianças que não hesitavam em nos saudar com belas e curvadas mensuras corteses no estilo Vitoriano.
O Bolshoi propiciava uma educação extraordinária e todas as crianças estudavam música, teoria e prática, tendo o aprendizado instrumental. Passavam a conhecer os clássicos e – pasmem – em suas preferências instrumentais. Falavam dos gênios das músicas e exibiam as sua admiração pelos clássicos. Vimos um jovem de doze ou treze anos, filho de uma prostituta, executar movimentos da 5ª Sinfonia de Beethoven. Todas as crianças tinham ensinamentos musicais para que pudessem estabelecer cumplicidade entre a música, melodias e dança clássica.
Foi um visita memorável. Ficamos em transe com tanta beleza adornada por felizes e lindas crianças. Ficamos abismados ao ver a doçura, o afeto e a arte.
Marcamos um encontro para à tardinha fazer uma visita à tutora paraibana das crianças pequenas e adolescentes, uma formidável mestra da municipalidade pessoense extremamente dedicada. A memória me trai, esqueci o nome, mas não da imagem que guardo dela.*
Tão extremada que deixara o seu lar, família com filhos, para ser o Anjo da Guarda daquelas 10 ou 12 crianças sob a sua responsabilidade. Amava o que fazia. As crianças, vimos todas grudadas afetuosamente a ela. Cuidava de tudo da retaguarda doméstica tão inerente à função materna, além de acompanhar as atividades do acompanhamento escolar. A casa confortável, bem cuidada, leitos e ambientes limpos. Enfim, as crianças tinham o mais do que um perfeito lar.
Conversamos por longo tempo com todosbe ficou o absoluto e cristalino o prazer sentir e ver aquela enriquecedora e feliz vida. Da nossa conversa ficou claro que a Prefeitura durante algum tempo não vinha honrando com a sua responsabilidade financeira pondo em risco o bem estar, a alimentação, o desempenho das crianças. A intranquilidade e a angústia de todos era visível, pois, se persistisse o desleixo municipal, teriam que retornar.
Estavam completamente sem recursos já há meses por irresponsabilidade da Prefeitura da Capital. As crianças estavam desprovidas de suporte alimentar, material sanitário, medicamentos, enfim, no abandono.
As crianças todas eram de famílias pobres e alguns vinham de lares cujas mães se prostituiam nas imediações da Estação Ferroviária e no Porto do Capim. Não estudavam e viviam às expensas de esmolas. Alguns da promiscuidade doméstica. Transitavam em ambientes promíscuos e viviam no submundo das drogas nas proximidades do Terminal Rodoviário, do comércio clandestino e hediondo Mercado Público da Primavera. Revelaram muito medo de ter que retornar à vida infame em que viveram. Ao retornar, visitei algumas mães que se prostituíam e sofrendo me pediram para ajudar na permanência deles. Ficaram felizes quando relatei e mostrei fotos do quanto eram bem tratados. Lágrimas, saudades e felicidade daquelas pobres mães foram derramadas.
De volta, relatei a Galvão, fiz um documento dirigido ao então prefeito e ao amigo Walter, dando precisos detalhes de tudo que vi, ouvi e imagens recolhi. Uma única e fundamental conclusão remetia à grave ausência de recursos que sabidamente existiam.
Ao nos despedirmos deles em Joinville, fui a um supermercado e fiz uma compra de bens e gêneros essenciais, sem esquecer chocolates e doces. Foi uma festa. Em coral cantaram uma linda canção entoada com a melodia: Jesus Alegria dos Homens
Abracei a Professora e a todas as crianças. Saí com sentimentos de tristeza e angústia misturadas com uma ponta de felicidade pela visita.
Remeti o relatório ao prefeito Ricardo Coutinho acompanhado dos meus apelos invocando a proteção para aqueles que no Bolshoi, em Joinville, tinham a alegria de viver, em que pese o abandono institucional. Informei à professora que o secretário Galvão e eu iríamos brigar por eles.
Fomos ao edil. Esperamos alguns dias, e fomos recomendados pelo mesmo e irmos falar com o Secretário das Finanças que nos recebeu com indiferença e teve ousadia de proferir o seguinte e desprezível comentário:
– Balé? É coisa de vi….
Retornamos ao prefeito, tivemos o apoio de Luciano Agra, mas a audiência se encerrou quando ressoou a gargalhada do edil sobre a atitude do titular das Finanças.
O grupo retornou e o Bolshoi tempos depois ficou nos sonhos de cada um deles, possivelmente mergulharam na miséria, na fome, no mundo cão. Do Céu para o Inferno sem escala. Não tinha mais como acreditar nos gestores públicos de João Pessoa travestidos de socialistas.
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(*) Em tempo. É imperdoável não lembrar o nome da citada Professora/Tutora, Anjo da Guarda das crianças de Joinville. Passados 16 anos, a memória quase “provecta” não me permitiu nominar a extraordinária e tão exemplar magister et mater. Um desses dias irei ao encalço dos registros funcionais da Secretaria de Educação do município. Consigno assim meu pedido de perdão à formidável e ainda incógnita Mestra.
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