SEGUNDA-FEIRA DE CINZAS, por José Mário Espínola

Foto: Ricardo Stuckert

Amanhã, vai ser outro dia
Amanhã, vai ser outro dia…
(Apesar de Você – Chico Buarque)

“Acabou! Acabou!” Esses são os gritos que a gente costuma ouvir nas finais de campeonato, quando já estão chegando ao fim os acréscimos de tempo e o árbitro ainda não apitou o fim da prorrogação.

A torcida está prestes a invadir o gramado para comemorar, enrolada nas bandeiras do nosso time, que lutou bravamente até o fim de um campeonato atípico, superando todo tipo de catimba do adversário, que jogou o tempo todo de forma desleal, criando todos os tipos possíveis de obstáculos. Mas a gente acabou vencendo!

Aos torcedores da equipe derrotada cabe o sábio conselho do professor Genival Veloso: enrolar a bandeira, e esperar o próximo campeonato. Essa é a atitude democrática correta.

Esta segunda-feira será a festa da redenção. Será como uma verdadeira quarta-feira de cinzas, na qual vai passar nessa avenida um samba popular, cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar, num desfile pós-carnaval dos blocos que foram impedidos de ganhar as ruas, já que a verdadeira festa da democracia foi usurpada por esses quatro anos.

Amanheceremos revigorados para mais um ano e uma vida nova, após a noite escura que durou quatro anos, com nuvens plúmbeas cobrindo o céu do Brasil, a atmosfera tóxica, qual filme de Blade Runner, tendo envenenado quase toda a sociedade brasileira.

Foi um mau carnaval, que durou não apenas quatro dias, mas quatro anos, o Brasil assistindo a passarela ser invadida por um único bloco, que tomou conta do país de forma egoísta e irresponsável.

Seu mestre-sala, em vez de um elegante fraque e cartola, trajava farda, e estranhamente portava uma bandeira de navio pirata, com ossos e caveiras, revelando a índole ruim do bloco. Foi desse jeito que eles se apossaram do nosso carnaval, como fariam mais tarde com o nosso Dia da Pátria.

Nesta segunda-feira vamos comemorar. Pois nossa gente voltou a sorrir, nosso povo será amistoso de novo, irmãos voltarão a se falar, os pais voltarão a beijar seus filhos. Vizinhos se cumprimentarão sem baixar a vista, mesmo que ainda um pouco encabulados. Namorados se reconciliarão.

E todos cantarão com Beth Carvalho, o refrão da música ‘Esse é o Botafogo que eu Gosto’:

Tanto tempo esperando esse momento, meu Deus
Deixa eu festejar que eu mereço

A eleição deste domingo abrirá um novo tempo onde vamos sobreviver, como diz Ivan Lins na sua canção Novo Tempo:

No novo tempo, apesar dos perigos
De todos pecados, de todos enganos, estamos marcados
Pra sobreviver, pra sobreviver

E aos poucos o povo brasileiro voltará à normalidade plena, respirando aliviado, pois a democracia foi salva.

Numa segunda-feira atípica, o Brasil emergirá das cinzas, qual uma bela fênix auriverde.

COM A DOR DAS MULHERES, por Frutuoso Chaves

Paulo Vanzolini (foto do Facebook do compositor)

Milênios separam o paulista Paulo Vanzolini do velho Salomão, aquele mesmo, o bíblico. Mas não consigo ler um sem pensar no outro. Ambos cantaram os mesmos temas: a angústia e o desespero de um coração partido. Mais: a humilhação suprema da busca por um amor vagabundo, perdido nas noites. Mais, ainda: a renúncia ao mínimo resquício de amor próprio, bem necessário ao equilíbrio e à sobriedade, ao comedimento e à compostura.

Às favas com as aparências. Os dois, cada um a seu modo e em seu tempo, devem ter assim decidido a fim de que as dores do amor sejam gritadas sem pejo aos quatro ventos quando se esteja à procura de alguém a quem se queira e cuja ausência doa mais do que a aniquilação do espírito. Teriam percebido que, elevado a tais dimensões, o amor nada precisa respeitar. Nem as reservas nem a decência.

Mas, talvez por recato inerente à condição de machos, eles assim o tenham feito com a porção feminina de suas almas. Eis, aí, portanto, mais uma evidência do quanto se parecem as mulheres imaginadas por Salomão, ao que se conta, e por Vanzolini, com todas as certezas.

“De noite, na minha cama, busquei aquele que minha alma deseja. Procurei por ele e não o encontrei. Levantei-me, saí para as ruas da cidade, pelas praças, a ver se o achava. Mas em vão”, narrou a primeira delas em “Cânticos”, o livro atribuído ao poderoso rei. E a última: “De noite, eu rondo a cidade a te procurar, sem encontrar. No meio de olhares espio em todos os bares. Você não está”.

Semelhantes na paixão desmedida por seus amados, essas duas apenas se diferenciam no quanto podem aceitar e perdoar. “Passado pouco tempo, logo achei aquele a quem minha alma deseja e não o deixei até tê-lo levado para casa, para o velho quarto da minha mãe”, cantou a filha de Jerusalém, novecentos e tantos anos antes de Cristo.

Nas noites paulistanas, a cria de Vanzolini não teria a mesma sorte nem a mesma têmpera: “Volto para casa abatida, desencantada da vida”. E logo a seguir: “Se eu tivesse quem bem me quisesse esse alguém me diria: Desiste, tua busca é inútil. E eu não desistia”.

De uma delas a resignação somente não absoluta em razão da reprimenda àquelas com as quais o amante se dividia: “Conjuro-vos pelas gazelas e cervas do campo que não despertem o meu amor até que ele queira”

Da outra a raiva levada às últimas consequências: “Volto a te buscar e hei de encontrar bebendo com outras mulheres, rolando um dadinho, jogando bilhar”. E, depois, mais do que uma ameaça, a promessa: “Nesse dia, então, vai dar na primeira edição: Cena de sangue num bar da Avenida São João”.

Recorro aos meus botões e deles ouço que aos homens, quaisquer que sejam os tempos, costuma faltar a coragem para admitir uma paixão avassaladora, daquelas que rasgam o peito e esmagam a autoestima. A verdade é que sempre nos pretendemos mais fortes do que a desgraça de um amor bandido. Há, por certo, algumas exceções entre nós, mas me parece que apenas ocorrem para confirmar a regra.

Vejamos. O francês Jacques Brel compôs “Ne me quitte pas” para aquela bailarina por quem foi abandonado. O homem cantava aquilo à beira do desmaio, com o útero que não possuía. É impressionante rever sua figura desesperada, suarenta, o retrato da própria dor, num desses vídeos dos quais o milagre tecnológico, via Internet, possibilita o resgate. “Deixe que eu me torne a sombra da sua sombra, a sombra da sua mão, a sombra do seu cão. Mas não me deixe”.

Quantos machos teriam a coragem de expor, nos palcos do mundo, um coração tão despedaçado? Salomão, o rei, dono de harém com mil mulheres, não a teve. Também faltou a Vanzolini essa mesma coragem. Os dois, por conseguinte, inventaram mulheres para tamanhos sofrimentos.

Mais precavidos do que eu, os meus botões me advertem: “Prepare o lombo”. O aviso vem a propósito da possível contestação de algum estudioso. Algo do gênero: “Ô, estúpido, a autoria de Salomão, nesse caso, é discutível. Além do mais, a passagem por você citada é uma alegoria da relação entre Javé e Israel”.

Fico eu, porém, com minhas crenças. Há muito mais graça num rei com poderes desfeitos por uma entre mil. Por alguém da cor dos panos das tendas de Quedar, um tiquinho de gente queimada pelo Sol, um ser com o perfume de mirra e a recusa ao uso de véus. E ele, o rei, a inverter os papéis e a inventar voz feminina para suas próprias dores. Afinal, em coração alheio nem rei manda. Se até Salomão e Vanzolini assim fraquejaram, imagine você, meu camarada. Faltem os versos que lhe ponham as dores noutro peito, ou a coragem de Jacques Brel, você terá que engrossar o couro e engolir o choro.

RUM AND COCA-COLA, por Frutuoso Chaves

Imagem: Wikipedia

Notícias recentes dos combates na Ucrânia trazem o desmentido de autoridades ucranianas ao propósito do uso de bombas sujas contra a Rússia. As boas casas do ramo definem como “suja” a bomba que combina material radioativo com explosivos convencionais. É coisa destinada à contaminação de área apenas restrita à da explosão. Mesmo assim, é ataque condenado pela arbitragem dos conflitos modernos com assento na ONU.

Os americanos não acreditam. Entendem que a acusação é pretexto de Moscou para a escalada da guerra. Daqui, do meu insignificante poleiro, não sei em quem confiar. Mas entendo que todas as bombas são sujas e todas as guerras são abjetas, indecorosas. Servem à dominação, à espoliação dos povos e somente ocorrem por haver quem ganhe com elas.

Vivi o suficiente para presenciar a Crise dos Mísseis, aquela de 1962, ano em que John Kennedy deu à Marinha de Guerra dos Estados Unidos ordem para afundar qualquer navio de bandeira soviética disposto a aportar em Havana. É que, dias antes, seus aviões haviam fotografado escavação em solo cubano logo identificada pelo Pentágono como providência para a instalação, ali, de foguetes russos. Isso significaria ogivas letais inimigas a menos de 200 quilômetros da Flórida.

A ONU interveio e Nikita Krushev desistiu da empreitada, mas não sem o mundo prender a respiração por dias sucessivos. A encrenca de hoje inverte o endereço. É a Rússia que agora trata de impedir a anexação da Ucrânia pela Otan, posto que isso significaria ogivas atômicas ocidentais a 300 quilômetros de Moscou.

Abstraído o fato de que os Senhores da Guerra sem elas não vivem (a indústria bélica em escala mundial não pode parar), ainda contribuem para o agravamento da presente crise os negócios trilionários do petróleo e do gás numa Europa em 40% dependente daquilo que os russos fornecem. Califórnia, para que te quero? – perguntaria o velho Biden.

As guerras, além disso, são o palco de muitas outras perversões, são o campo onde melhor atuam os agentes da devassidão e da indecência. Quem não lembra daquele ex-deputado, daquele predador de moças fragilizadas pelo desamparo e pela orfandade? Daquele sujeito que sugeriu à sua turma o roteiro criminoso do turismo sexual no Leste Europeu porque, ali, as garotas são pobres e, portanto, seriam ‘fáceis’?

É preciso dizer que as meninas da Ucrânia não são os únicos seres humanos na mira desse tipo de gente. Somem-se a elas as mulheres pobres de todos os continentes em tempo de guerra, ou de paz. E, assim também, todos os filhos da miséria sem distinção de raça, gênero e credo. Estes últimos, desgraçados e indefesos, não são menos explorados, individual e coletivamente.

Mas é preciso acrescentar que a história tem registrado a iniquidade em tom e amplitude até mais graves, pois cometidas, institucionalmente, para o riso e a satisfação da soldadesca. De quando em quando, o insulto, o deboche e a humilhação têm, de fato, a magnitude dos exércitos.

No início de 1940, as Irmãs Andrew, o trio que percorria as bases americanas no palco da 2ª Guerra Mundial, aconselhava às tropas uma visita a Trinidade. “Rum and Coca-Cola”, a música mais aplaudida, recomendava que, além desse coquetel, a rapaziada ali desfrutasse dos favores das belas caribenhas, mães e filhas, em busca de dólares.

Eis o refrão em tradução livre: “Bebendo rum e Coca-Cola/vá ao Centro de Cumaná/Lá, ambas, mãe e filha/trabalham pelo ianque dólar”. Os soldados iam ao delírio.

Todo o Caribe há muito estava sob as asas de Tio Sam. Cuba, particularmente, desde 1898, quando os Estados Unidos derrotaram a Espanha na guerra pela Ilha. O estopim fora o afundamento do USS Maine, enviado ao porto de Havana, para “garantir a segurança dos cidadãos e dos interesses americanos”, onze dias depois de o governo autônomo de Cuba haver tomado o poder. Uma explosão no paiol do navio – interna, segundo investigações posteriores – foi atribuída à sabotagem espanhola, precipitando o conflito açulado pelos jornais da cadeia Hearst e Pullitzer.

Nos anos de 1940, época das Andrew Sisters, o esforço de guerra americano já havia levado Hollywood a descobrir as pernas de Carmem Miranda e a cobrir-lhe a cabeça com aqueles imensos chapéus de banana. Walt Disney, em pessoa, era despachado, enquanto isso, ao Rio de Janeiro, onde criou a figura do Zé Carioca, cicerone do Pato Donald.

Um Getúlio Vargas, premido pelo torpedeamento de navios da Marinha Mercante brasileira por submarinos alemães empenhados em cortar o transporte de víveres e matérias primas, embarcava o Brasil na guerra e cedia o espaço da Base Aérea de Parnamirim às tropas aliadas.

No Rio Grande do Norte, que exportou o biquíni, o chiclete e a Coca-Cola para o restante do País, os americanos também encontravam os favores de Maria Boa, uma paraibana de Campina Grande, dona de cabaré e, então, no comando de moças fugidas da fome e da miséria. Ela chegou a ser homenageada com a inscrição do próprio nome na fuselagem de um dos B-25, os aviões que faziam estragos nas tropas de Hitler, Hirohito e Mussolini. Trinidade e Tobago, o pequeno país de língua inglesa nos costados da Venezuela, também era, na ocasião, base americana no transcurso dessa guerra.

Mas voltemos às três irmãs e seu grande sucesso musical, um calypso com milhões de cópias vendidas. Letra maledicente e desmoralizante. Nenhum cuidado com os brios da população nativa.

As irmãs, de qualquer modo, estouraram nas paradas de 1945 enquanto a música era pivô de outra batalha, a travada na Justiça por direitos autorais. Um compositor acusava o outro de plágio. Além do mais, havia, ali, a propaganda indevida de duas bebidas. Há quem diga que este fato, naquele momento, chegou a contrariar de modo mais sério o senso de ética e decência das pessoas de bem. Lastimável, não?

TERRA ARRASADA, por José Mário Espínola

Imagem: apub.org.br

Não estou me referindo à Ucrânia, país covardemente invadido, que está sendo destruído por um dos maiores exércitos do mundo, o da Rússia de Vladimir Putin, um ditador eleito pelo voto democrático, mas possuído pela nostalgia da falecida União Soviética, de cujos porões se originou.

O presidente russo retomou a política de expansionismo das fronteiras e está destruindo a Ucrânia: seu povo, suas cidades, toda a infraestrutura viária e, mais grave ainda, as suas fontes de energia, o que é cruel diante do inverno rigoroso que se avizinha.

Mas aqui no Brasil estamos testemunhando semelhante política de terra arrasada. Para tentar reeleger-se, o presidente vem rompendo vergonhosamente o teto de gasto, criado em 2016 para disciplinar as despesas do orçamento.

Seu tutor na Câmara dos Deputados, Artur Lira, de Alagoas, criou essa aberração denominada Orçamento Secreto, candidamente aceito pelo presidente, pois faz parte do pacto nada secreto do presidente com o Centrão: “Nóis torra e te sustenta”.

Para abastecer essa botija e garantir a própria sobrevivência, o governo federal está desviando verbas destinadas para Saúde, para a Educação e Cultura, para Ciências.

A consequência é o desabastecimento das Farmácias Populares, levando doentes carentes a interromper tratamentos para doenças crônico-degenerativas, como diabetes, câncer, hipertensão arterial e insuficiência cardíaca.

Falta de alimentos nas creches e a merenda escolar destinada para os estudantes carentes das escolas fundamentais é outro problema revoltante.

Falta de medicamentos nos Hospitais Universitários, que tiveram que cancelar as cirurgias eletivas e reduzir internações, mais uma tragédia.

As Universidades tratadas a pão e água, como nos tempos de FHC, sem recursos para garantir o básico: luz, energia para os aparelhos de ar condicionado, limpeza, seguranças, combustível, tinta para impressoras e papel.

Outra grave consequência é a interrupção de pesquisas importantes, nas áreas de saúde, tecnologia e educação.

Acima de tudo, o Brasil assiste à destruição de suas reservas para beneficiar políticos inescrupulosos, que é o que não falta. Mas o pior está por vir: o comprometimento do orçamento para os próximos anos.

Qualquer que seja o novo presidente, herdará uma dívida impagável, que muito provavelmente o obrigará a ir bater nas portas do FMI, pedindo um socorro financeiro que compromete a soberania nacional, como acontecia em passado nem tão remoto assim.

A irresponsabilidade fiscal deixará um legado de ruínas para a nova gestão. E o atual presidente não está nem aí para o caso de ser reeleito, pois não tem o menor senso de responsabilidade nem noção do estrago que pode causar.

Ele age igual a um adolescente. Aliás, sempre agiu assim ao longo deste mandato. Em vez de trabalhar, passeia de moto com um bando de desocupados.

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Não estou falando apenas de destruição material, como a realizada no nosso meio ambiente, que por si só já é cruel, pois levará décadas para ser recuperado, se for adotada uma rigorosa política de conservação, o que com esse governo é totalmente impossível, pois contraria a sua filosofia.

Estou me referindo a algo mais grave: a destruição de uma nacionalidade, penosamente construída ao longo de cinco séculos. Hoje a nação brasileira está profundamente dividida, rachada ao meio. Definitivamente? Acho que não. Mas levará muitos anos para se reconciliar e voltar ao patamar civilizatório do final da década de 2010.

Hoje, o ódio grassa entre nós, tomando corpo nos últimos cinco anos. Coincide com o ápice do processo de substituição da imprensa livre e regulamentada por redes sociais totalmente irresponsáveis, sem nenhum controle.

As famílias estão divididas: irmã contra irmão; filho contra pai. Os amigos separados. A nossa nação está dividida, numa guerra fratricida como se fôssemos as piores diversas torcidas organizadas: sudestinos e sulistas contra nordestinos. Direita contra esquerda. Ricos contra pobres. Brancos contra pretos. Protestantes contra católicos. E por aí vai.

Surgiram até subdivisões de preconceito: dentre os evangélicos podem ser encontrados os que são crentes contra os que são roxos. Os primeiros acompanham a direita e os demais votam contra Bolsonaro, sendo classificados de esquerda pelos primeiros. É demais!

A realidade é que hoje nós apenas nos toleramos, porém não mais nos irmanamos. Hoje em dia, os nossos cristãos pensam e agem como se fossem os fanáticos do Estado Islâmico. Ou como agiram os seguidores de Pol Pot, no Camboja dos anos 1970, quando tiraram a vida de milhões de cidadãos.

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Perdemos quatro anos discutindo ideias arcaicas, trazidas de volta à baila, atrapalhando o nosso progresso. O certo é que o Brasil sofreu um processo involutivo, recuando à idade das trevas: discussão sobre a forma da Terra, eficácia de vacinas, costumes, cotas e estatutos sociais.

Combate ao Poder Judiciário, que é pedra basilar da Constituição. As Forças Armadas pertencerem ao presidente e não à nação brasileira. O Estado abandonando a laicidade, abrindo com a Bíblia as sessões do judiciário.

Tudo andou para trás. Médicos tornaram-se alquimistas, combatendo a ciência, prescrevendo placebos e, quem sabe, resgatando o tratamento de surto psicótico com clister.

Será que os estados voltarão a ser capitanias? Os municípios, feudos? O Inpe adotará astrologia para a previsão do tempo?

No momento, estamos assistindo a uma mobilização em torno da transformação do Brasil num país fundamentalista, semelhante ao Irã dos aiatolás e ao Afeganistão dos talibãs. No cardápio, uma nova Santa Inquisição, fogueiras, caça às bruxas, prova de religião no Enem.

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Exageros à parte, o fato é que sofremos um grande retrocesso nesses últimos quatro anos, que poderá se agravar ainda mais se não tomarmos uma atitude corajosa na próxima votação.

UM BANCO SOB AS ESTRELAS, por Frutuoso Chaves

Imagem meramente ilustrativa (Crédito: Pixbay)

Naquela madrugada de 1970, não sei por que, eu me pus a assoviar “Summertime”, a canção que George Gershwin legou à eternidade. Todo mundo já a ouviu, mesmo que disso, porventura, não o saiba. Está, vez ou outra, no rádio, embora quase se tenham passado 90 anos desde a composição para a ópera “Porgy and Bess”. Tornou-se um clássico do jazz e teve milhares de gravações, uma delas na voz espremida e emblemática de Janis Joplin.

Logo mais, amanheceria numa Pilar de portas fechadas e sem uma viva alma nas ruas, exceto a minha e as de três companheiros egressos, como eu, do forró de Zé Laurindo, no Alto da Serventia, onde, evidentemente, não tocavam Gershwin.

Os amigos seguiram para suas casas enquanto preferi deitar no banco de um dos canteiros situados no meio da rua principal. Assim o fiz no ponto defronte à extinta padaria do meu pai. Talvez, pelo desejo inconsciente de ter de volta as pessoas e tudo aquilo mais que o tempo me roubara. Mas, certamente, por sentir que não poderia estar, àquela hora, em lugar mais seguro.

Em 1970, eu morava em João Pessoa na companhia de pai e mãe ainda vivos e sadios. Mas estava em Pilar aos fins de semana para dar aulas a cinco turmas de ginasianos, quase um voluntariado se a expressão disser respeito ao salário do Colégio da Campanha Nacional das Escolas da Comunidade, a CNEC, ação benfazeja posta em prática, nacionalmente, pelo professor Felipe Tiago Gomes, paraibano de Picuí. Salário que, na verdade, ficava, ali mesmo, ora no Bar de Manoel de Laura, ora na Sinuca de Jaime, pontos habituais de reunião dos amigos antes dos nossos encontros com as namoradas e, depois disso, das idas clandestinas à Serventia, ou à Maloca.

Advindo dessas noitadas, aprendi a demorar, um pouco mais, em banco de rua, antes de buscar a cama na casa de um primo que me hospedava. A ideia era curtir um tanto daquilo consumido nos bailes que me presenteavam a juventude, os amigos e as circunstâncias.

Eram pausas ditadas pela cautela desde que despenquei no sofá de seu Raimundo, pai do meu primo, ao pular a janela estreita e disposta sem trancas aos retardatários. Caí e acordei o dono da casa que me tinha como filho e de quem recebi o pito: “Duas coisas podem derrubar um homem: bebedeira e rapariga”, alertou-me. Depois disso, sempre me seria aconselhável deitar durante algum tempo num daqueles bancos antes de tentar o ingresso na casa amiga em operação atlética e um tanto arriscada até para os abstêmios. E tome Gershwin na madrugada.

Isso me vem à mente a cada notícia de explosões em agências bancárias de outrora pacatas, serenas, cidadezinhas do interior deste Brasil mais próximo da barbárie. E pensar que o costume de portas e janelas recostadas era coisa comum, corriqueira, nos meus verdes anos. Lembro que a minha e outras mães não se dispunham a sair da cama para atender aos maridos. Noite alta, eles que empurrassem a porta e entrassem sozinhos no santo recesso do lar, franca ou disfarçadamente, com ou sem as caras lisas. Tem mais: o litro de leite depositado no umbral das nossas casas, antes do raiar do sol, ali permanecia até o recolhimento, horas depois, por alguém entre os moradores.

Tempo desgraçado, este de agora, no qual bandos armados agridem e, sem distinção, aterrorizam grandes e pequenas cidades subtraindo destas últimas, além do sossego, hábitos noturnos, alguns centenários como o das cadeiras nas calçadas para a confraternização dos vizinhos. Tempo infame este que hoje nos impede o assovio nas madrugadas.

CARTA AO INCUMBENTE, por Babyne Gouvêa

Imagem: Dicas Vip

Senhor Presidente,

Acordei melancólica, absorvida por preocupações diante da possibilidade de o senhor se perpetuar no comando do país. Resolvi, então, escrever uma cartinha.

As preocupações são muitas, não por mim, particularmente, já que sou uma mulher na casa dos sessenta, com vida estabilizada (até o momento; não sei o que poderá vir após o próximo dia 30/10).

A minha aflição reside, notadamente, naqueles que lutam pela sobrevivência e nas crianças e jovens sem condições de acesso a uma educação digna. Penso nos estudantes que, num passado recente, acompanharam o crescimento das suas universidades em várias frentes. Hoje, estudam num cenário inferior.

Fiquei também impactada por denúncias de corrupção no Ministério da Educação, gestão Milton Ribeiro. Pastores acusados de receber propina por liberação de verbas do Mec. E o que mais me deixou perplexa foi ter ouvido do próprio ministro que tinha o aval do presidente.

Por outro lado, pedir ao senhor para ter piedade da população é demais, eu sei. Não faz parte da sua personalidade ter pena da situação de penúria de um patrício.

Lembro bem quando o senhor imitou uma pessoa com falta de ar durante a pandemia da Covid. Doeu tanto, Senhor Presidente. Sabe por que?

Porque a população estava sendo dizimada pelo vírus e o meu irmão estava num leito de UTI lutando para se manter vivo. Deixe-me dizer uma coisa: ele chegou a receber a extrema-unção. Imagine o estado dos seus familiares e amigos. Mas Deus permitiu que o meu irmão continuasse a sua missão aqui na Terra.

Enquanto rezávamos, rogando a Deus pela recuperação de sua saúde, o senhor se vangloriava assistindo aos seus seguidores fazendo carreatas e parando em frente ao Hospital das Clínicas, São Paulo, entoando as buzinas dos seus carros, em afronta aos agonizantes. Sim, lembro também de gente filmando na área interna dos hospitais para em seguida editar e publicar cenas não condizentes com as reais.

Sou uma mulher sessentona, já não sou menininha, tampouco bonitinha, como as garotas venezuelanas. Portanto, sem perigo de pintar um clima. Sinto-me com liberdade para escrever ao senhor e falar do temor que lhe tenho.

Veja bem, esforço-me para visualizar algo de positivo no senhor, mas não consigo. Me ajude. Até da nossa Constituição, algo pelo qual lutamos e conseguimos aprovar em 1988, o senhor desdenha.

Mostramos ao mundo que somos uma democracia com os três poderes podendo funcionar em sintonia, em defesa dos brasileiros. A Constituição é motivo de orgulho para o país. No entanto, desde que o senhor venceu as eleições em 2018, com o auxílio do Moro – este é um capítulo à parte -, não o vejo respeitar o Supremo Tribunal Federal.

Isso é tão ruim para o país, Senhor Presidente. Sabe o que ocorre com esse comportamento desrespeitoso? Muitos dos seus seguidores não obedecem regras; qualquer sociedade civilizada precisa de normas. E aí se sentem livres para explicitarem o que está dentro de si. Senão vejamos, para o senhor entender melhor: cresceram durante a sua gestão, coincidentemente, os números de agressões aos negros, índios, mulheres, homossexuais e a outros grupos de vulneráveis.

Não posso omitir outra grande preocupação, Senhor Presidente, que diz respeito a nossa Amazônia. As nossas florestas estão sendo destruídas (a monitoração pelos satélites não me deixa mentir), enquanto a “boiada passa”.

Lembro bem que o senhor demitiu o cientista Ricardo Galvão do cargo de diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, após publicar dados do desmatamento no Brasil que lhe desagradaram.

É só um lembrete amigo para corrigir as suas palavras na ONU, quando diz que em seu governo não houve desmatamento, praticamente. Os rios daquela área estão sendo poluídos com a mineração, que faz uso do mercúrio, contaminando os peixes – alimento da população indígena.

Como o senhor deve ter sabido, o ambientalista Bruno Pereira e o jornalista Dom Philips foram mortos por fazerem o seu trabalho em defesa do meio ambiente. Que trabalho honroso, não?

Ah, Presidente, fanáticos estão invadindo os templos religiosos e ameaçando os sacerdotes, quando esses proferem palavras que contrariam as ideias da pessoa chamam de “mito”.

Nunca tinha visto isso em toda a minha vida. Bastou o arcebispo D. Orlando Brandes falar nos pobres para receber xingamentos, por exemplo.

O senhor deve ter assistido ao que aconteceu na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do nosso Brasil, porque o senhor estava lá. Lamentável, presidente.

Sabe o senhor que nasci, cresci e envelheci sob as palavras de Deus: “não mentir”? Está em Êxodo 20:16. “Guarda a tua língua do mal e os teus lábios de falarem o engano (mentira)” : Salmos 34:12-13.

Estou reproduzindo aqui nesta cartinha algo que o senhor, pretenso leitor da Bíblia, deve conhecer. Mas peço-lhe um favor, em consideração à população da nossa pátria. Diga para os que querem lhe ver reeleito para não propagarem a mentira. Esse mal distorce a formação das nossas crianças.

O senhor deve ter ouvido uma leviandade perversa de uma ex-ministra do seu governo, a senadora eleita Damares Slves, contando estórias execráveis sobre crianças da Ilha de Marajó. É apenas um dos exemplos de mentiras contadas na sua campanha.

Para não lhe cansar, não me estenderei mais. Deixarei em banho-maria as rachadinhas, os 51 imóveis comprados com dinheiro em espécie, o uso da máquina pública em campanha, orçamento secreto, a campanha em horário de expediente, condecoração a milicianos, 33 milhões passando fome e tantos outros que, se partissem de outro candidato, a reação de muitos seria outra.

Agradeço a sua atenção de ter lido esta missiva. Saiba que peço sempre a Deus para o senhor se redimir e se transformar num cidadão generoso e respeitável. As famílias, hoje divididas, e os amigos, hoje separados, voltariam a viver felizes no país, como outrora.

Saudações democráticas.

Babyne Gouvêa 

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P. S. Conte comigo se quiser apagar essa sua imagem de “espelho da ignorância humana”

POR QUEM SOMOS AVALIADOS? por Girlene Machado Lima

Imagem copiada de psicologaportoalegre.com.br

Estava num velório de uma parente distante. Uma senhora que deixou um legado de alegria. As poucas lembranças que tenho dela remetiam sempre a um sorriso em seu rosto e a uma risada, ou melhor, a uma gargalhada, mesmo diante de um mínimo de graça.

Seus parentes mais próximos tinham o semblante de dor e alegria ao mesmo tempo, por reunir os velhos conhecidos. A irmã mais velha não saia de perto do caixão. Tinha mais de noventa anos e se via jovialidade e elegância nela. Já a outra irmã não ‘batia bem do juízo’, era alvoroçada, inquieta, mas coordenava algumas conversas. Só soube que eram irmãs porque em um funeral não falta quem lhe fale ao ‘pé da orelha’ quem é e o quê faz cada visitante, como se todos fossem legenda de filme.

Estava próxima de umas primas da defunta, que eram irmãs entre elas. Começaram falando de seus maridos que, segundo me contaram, estavam ficando ‘gagás’. Uma delas, vendo-me próxima e sabendo da minha profissão que é primordialmente OUVIR, continuou suas queixas em meus ouvidos. Como eu não dizia nada a respeito, começou a falar dos presentes ao velório. Com um jeito que substitui o apontar dos dedos, direcionando brevemente a pupila dos olhos no sentido da pessoa da qual desejava falar, descrevia resumidamente assim: “Esse aí (olhinho direcionado) é velho, muito velho!” “Já aquela ali (olhinho pra lá) é doida”. Assim eram classificados os visitantes. Dentre esses, um me deixou em situação constrangedora em razão da descrição que aquela senhora fez. “Esse velho ali (e lá vai o olhinho) casou de novo e teve que colocar uma prótese peniana”, falou. Disse assim olhando ora para cima ora para a região da suposta prótese. Esforcei-me para não fazer o mesmo.

Em outro momento, numa igreja, enquanto o pastor lia as recomendações de Jesus sobre amar uns aos outros, um irmãozinho na fé vem para o mesmo par de ouvidos – o meu. Ah se tivesse uma porta para ouvidos! Além de trancar, colocaria uma plaquinha: FECHADO. Pois, sem aviso algum do tipo, ele chegou e falou: “Sabe aquele fulano? É roxo. Como pode um roxo estar entre nós? Nós é que somos os verdadeiros seguidores de Cristo”.

Em qualquer ambiente, a nossa humanidade se revela. Povoada por diversas formas de pensar e agir. Aproveitei as falas ouvidas e me perguntei: o quê de fato está sendo avaliado por nosso Criador?

Lembrei de uma empresa que precisava contratar um funcionário e abriu inscrições para a vaga. Choveram currículos acompanhados de diplomas e certificados diversos. O RH preparou uma seleção em que avaliava não só o currículo, mas, principalmente, a atitude diante das situações expostas.

E se, neste momento em que está em jogo tão acirrado a decisão de escolher presidente da República, estiver sendo avaliada nossa atitude diante da situação? Se estiver sendo avaliada pelo Senhor nossa capacidade de amar o diferente para além do discurso? E se tudo isso for também uma oportunidade de exercer o amor?

Para o tempo de escolher o representante da nação, precisamos ser intencionais em nossos interesses sociais. Mas  para todo o tempo, amar intencionalmente. Amor prático. Que não terceiriza o cuidado quando lhe é possível fazer e nem descansa na obrigação do Estado de promover o bem estar aos seus cidadãos. Que sente prazer em ser agente do divino na terra cujo mel por vezes é amargo e o leite azedou. Até que venha a morada eterna.

Maranata!

* Girlene Machado Lima é Psicóloga

COMO PODE? por José Mário Espínola

Imagem meramente ilustrativa (Foto: Félix Zucco/Revista Cult)

Outro dia o prezado colega Saulo Londres indagou-me o que levou a nossa classe médica a desenvolver tanta admiração por um indivíduo como Jair Bolsonaro. Claro que estou generalizando, pois conheço inúmeros médicos que votarão exatamente contra essa figura, pelos motivos que exponho abaixo.

Desde então tenho refletido na procura de uma resposta lógica e convincente. E que seja honesta para com aqueles que fizeram a sua opção, livre e conscientemente. Acho que a escolha de um ídolo é muito complexa, pois resulta de muitos fatores. Mas o que faz um brasileiro admirar alguém como Bolsonaro, seja ele médico ou outro profissional?

Também tenho pensado muito nisso, tentando entender o mecanismo, a fisiologia de alguém que desenvolva empatia por outrem que possa ser considerado por todos como pessoa no mínimo muito difícil, para não ser deselegante. Considerando que empatia são afinidades de ideias, pensamento, palavras, atitudes e identificação com o outro, Jair Bolsonaro apresenta o seguinte perfil de personalidade:

  • Quanto às ideias
  • * ele tem desprezo pelos fracos; tem o pensamento da supremacia de macho, de cor; tem desprezo pela natureza; exibe total indiferença ao sofrimento, à dor alheia; tem inveja e ciúmes de todos que venha a considerar melhores do que ele;
  • * as suas palavras são grosseiras; agressivas; humilhantes; ofensivas; desestimulantes; jocosas; imorais; mentirosas ou despidas da verdade;
  • * Apresenta atitudes de agressão; humilhação; ofensas. Pratica o negacionismo da ciência e vem realizando o desmantelamento das pesquisas científicas no Brasil;
  • * Nunca é sincero, pois o que ele diz não se escreve e sua falsidade é explícita, além de comportar-se como um mitomaníaco, do tipo que à tarde desmente o que disse pela manhã usando outra mentira.
  • Quanto à identificação com o próximo
  • * ele sempre exibiu total ausência de empatia, porém exibe proteção irrestrita dos seus parentes e amigos, mesmo quando existem evidências de que estão em situação irregular ou ilegal.
  • * Outros fatores devem ser levados em consideração, na escolha do candidato. O perfil ideológico, por exemplo. Ele representa o meu pensamento? Compartilha a minha fé? A religião provavelmente é um fator importante que deve ser levado em consideração. Pelo menos pelos cristãos católicos e evangélicos, que juntos são a quase totalidade dos eleitores brasileiros.

Até o surgimento do “mito” Jair Messias Bolsonaro, Jesus Cristo era o maior ídolo do cristianismo, de quem deriva a denominação. Assim, é difícil imaginar que um cristão possa fazer uma opção por um anticristo, pois aprendeu ao longo de sua formação religiosa a reconhecer e procurar se inspirar na personalidade de Jesus: candura, amor ao próximo, capacidade de perdoar, sinceridade, mansidão, fé, esperança, solidariedade, caridade, amor pela natureza, amor pelas crianças, pelos necessitados, pelos fracos e oprimidos.

Bolsonaro é perseguidor implacável de tudo o que representa minorias: pobres, pretos, mulheres, índios, ciganos, quilombolas. Alguém como ele considera arte e cultura manifestações de fraqueza, assim como radares controladores da velocidade nas rodovias. E faixas para pedestres.

Ele fala uma coisa e comporta-se diferente do que disse. Como a antítese do cordeiro de Deus. Como um agnus-diaboli. Apesar de tudo isso, um segmento importante de cristãos, médicos ou não, aderiu ao culto desse moderno Bezerro de Ouro.

É, portanto, muito difícil compreender por que um cristão possa se deixar impressionar por um indivíduo que tem atitudes exatamente contrárias às de Jesus: é grosseiro, agressivo, mentiroso, rancoroso. Assim, fica a pergunta: como pode um VERDADEIRO cristão votar em Bolsonaro?

Mas, como muitos deles têm feito essa opção, acho que não é apenas a religião que faz com alguém venha a perfilar cegamente com essa antítese do Salvador, esse anti-Jesus. Devem existir outros fatores. A identidade política é um desses fatores.

Na eleição de 2018, muitos eleitores votaram em Bolsonaro por ele ter representado o antipetismo. Desde 2013, a sociedade brasileira tinha sido intoxicada por uma atmosfera de repulsa ao Partido dos Trabalhadores.
A campanha teve origem puramente elitista.

Incomodada pela situação econômica do Brasil, a elite brasileira, com a participação ativa dos grandes empresários do agronegócio e da indústria, além de usineiros, mega comerciantes e industriais da fé, junto com a aristocracia brasileira, que nunca engoliu um governo de origem popular, arquitetaram uma forma de excluir o PT dos desígnios da nação.

Essa campanha foi executada pela grande imprensa liderada pela Rede Globo, mas com a participação de diversas outras emissoras e rádios, como a Record, a Band e o SBT, além das rádios CBN, Globo, Jovem Pan, dentre outras. E pelos jornais Folha de São Paulo, Estadão, Jornal do Brasil, além das revistas Veja, Época e Isto É.

Aproveitaram-se do momento de fragilidade econômica e social, que afetava mais as classes B, C e D; e do surgimento dos resultados da Lava jato. Os veículos da grande imprensa deram ampla publicidade às operações realizadas pela Polícia Federal. Todos os dias os telejornais jorravam imagens de prisões de empresários da construção e políticos famosos, provocando ódio e terror à classe média, que passou a estigmatizar o PT e seus símbolos.

O clima ficou tão ruim que, numa quarta-feira à noite, a Globo pôs no ar a ausculta ilegal de um diálogo entre a então presidente Dilma Roussef e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, publicizada irresponsavelmente pelo então juiz Sérgio Moro, que nem no Brasil estava. Essa foi a senha para as famigeradas redes sociais, que ainda engatinhavam no veneno potencial que se cristalizaria em 2018, mobilizarem a população numa grande manifestação nacional contra o PT.

Naquela noite, o ódio contra o PT foi tamanho que, se um torcedor devidamente uniformizado do Internacional gaúcho ou Náutico de Recife passasse nas imediações da Avenida Paulista correria o risco de ser agredido pela turba açulada pelas redes sociais. A apoteose foi a prisão de Lula meses depois, comemorada em tons carnavalescos na Avenida Paulista. O antipetismo foi, portanto, fator decisivo para uma parcela importante dos eleitores na escolha de Bolsonaro como seu representante na eleição de 2018.

Mas, quatro anos depois, com toda a incompetência administrativa revelada e o verdadeiro Bolsonaro totalmente exposto, um número muito significativo de eleitores mudou, passando a rever a sua escolha para o próximo dia 30 de outubro.

Assim, voltando à indagação do Dr. Saulo Londres, podemos acrescentar varias perguntas. Por exemplo: como pode uma mulher votar em alguém que tem um sério distúrbio psicológico em relação a elas, pois, ao contrário de Jesus Cristo, que defendeu abertamente as Marias Madalenas, Bolsonaro sempre toma a atitude de atirar a primeira pedra nas mulheres que atravessam o seu caminho?

Como pode alguém que seja culto ou bem educado votar numa pessoa tão grosseira e acanalhada? Como pode um preto votar em Bolsonaro, se ele sempre demonstrou preconceito e desprezo explícito por essas pessoas? Como pode um profissional de saúde votar em alguém que nega e combate sistematicamente a ciência e desmantelou o Ministério da Saúde, perseguindo e excluindo, por ciúmes e negacionismo, ministros que demonstraram competência e pautaram a sua conduta pela ciência, sendo trocados por aqueles que sejam subservientes ao presidente, tendo como consequência, por exemplo, o mau funcionamento da saúde em todo o Brasil, e o comprometimento da eficiência do nosso Programa Nacional de Imunização, que era modelo para todo o mundo?

Como pode um professor ou um estudante votar em alguém que desmantelou o Ministério da Educação, entregue a pastores que negociaram as suas verbas por barras de ouro e bíblias, no escândalo chamado Bolsolão do Mec, e que empobreceu as universidades federais, chegando a comprometer o funcionamento dos hospitais universitários?

Para mim é muito difícil explicar. Com a palavra, o Dr. Sigmund Freud.