Não ouso afirmar que as excursões internacionais hajam melhorado aquelas duas. Eu, não. Nem supor que tenham regressado daqueles périplos mais cultas, ilustradas e livres dos velhos preconceitos. Até porque a tolerância, a civilidade e o alcance das coisas não compõem a bagagem de ninguém. Ao invés disso, são substâncias do espírito e, portanto, é aquilo que se leva e se traz sejam quais forem o destino e a duração das viagens. Ou todos disso já dispomos, ou, dificilmente, disporemos. Ou se tem, ou não se tem.
Bem sei o quanto ambas, em suas origens, tinham nojo de bunda de formiga. E repulsa, ainda maior, aos que disso se serviam nos tempos de gordura quando a Natureza dispunha essa proteína às tigelas dos miseráveis. “Uns selvagens”, gritavam elas dos catadores de insetos aos meus ouvidos de menino, naqueles princípios de chuva.
Símbolos de elegância e distinção para boa parte da cidadezinha – a formada pelos mais abastados – apenas prendiam minha admiração quando ao piano, o primeiro e único ali já visto por mim. Com a inocência dos nove anos, eu procurava e não via o rabo do instrumento, por mais que elas o supusessem de cauda. Mas o que então saía das suas teclas me encantava. Como tocavam bem aquelas duas. Era quando mais se pareciam, pois fora da sala de música, onde eu me punha, evidenciavam tamanho e peso corporal bem diferentes: a mais velha, muito mais baixa e robusta.
Minto. Também se pareciam na repugnância às tanajuras. A isso e, ainda, aos pratos advindos dos rejeitos de carne, ossos e tripas após a seleção de peças nobres por “bouchers”, os açougueiros paraibaníssimos assim por elas referidos com biquinho francês. Felizmente, faziam as exceções que o mundo quase inteiro faz aos mocotós, orelhas, rabos, paios e toucinhos da feijoada, uma identidade cultural brasileira e, a bem dizer, uma unanimidade universal. Mas, naqueles idos, torciam os narizes para buchada de bode. Sarapatel, chouriço? Eca!…
Lembrei dessas aversões quando do reencontro com elas, já adulto, numa bela casa do Recife para onde me levou um amigo em comum. Eu havia aproveitado a carona oferecida para tratos na Sucursal d’O GLOBO. Ficaram impressionadas com o rumo profissional tomado pelo filho da vizinha, o garoto que bem conheceram nos idos de 1950, quase 60.
Recusamos o preparo do almoço, por volta das 15 horas, porquanto já nos havíamos empanturrado com o cozido e o pirão de dona Maria, chefe suprema e afamada de barraca instalada em terreno baldio da Rua do Riachuelo, bem perto da Sucursal. Fui tomado pelo espanto, ao ouvir de uma delas: “Adoramos aquele chambaril”.
E lá vieram as comparações. Intuitivamente, dona Maria dava ao ossobuco pernambucano os temperos da Lombardia, os daquele restaurante de beira de estrada onde estiveram numa das visitas à Europa. Pouco tempo de conversa e eu já percebia que o pirão da Riachuelo lhes descia goela abaixo com o sabor do deslumbramento e da afetação.
Que saudade tinham daquele “haggis”, o parente escocês da buchada nordestina, o picado de fígado, pulmão, coração e vísceras envolto em pele advinda do estômago de carneiros. A irmã mais nova salivava à mera lembrança do “black puding”, o embutido que os ingleses preparavam com sangue e gordura de porco. A França lhes oferecera o “andouillete”, a linguiça feita com intestino de veado, ou porco mesmo, cebola e pimenta. A contribuição exótica da Itália também viera na sobremesa “sanguinaccio”, o doce que mistura chocolate, canela e, mais uma vez, sangue.
Gosto de pensar que frequentaram o três estrelas L’Astrance, o La Festin Nu, o Chez Mushi e outros restaurantes franceses pagando os olhos da cara por pratos de formigas, gafanhotos e escorpiões. “Fourmis frites”, assim justificariam tais despesas absolutamente convictas, elas e seus narizes empinados, de que o idioma, o lugar e as circunstâncias valeriam a pena.
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