“Nunca te esquecerei.
Espero que tenhas sorte no céu.
Espero que estejas no paraíso.
Obrigado por minha infância".
Carta de uma criança ucraniana de nove anos à Mãe morta.
Nos escuros umbrais da história da humanidade, a miséria humana sempre submeteu – com toda a virulência – a morte, a violência e a desgraça às crianças. Não há na historia da humanidade momentos perenes em que a paz, o amor e o beneplácito misericordioso, raramente, foram concedidos para preservarem as crianças.
Nos tempos modernos, os fatos que nos aterrorizam derivam das violências brutais que foram e são impostas aos inocentes. São monstruosos os exemplos que os homens são capazes de fazer. É terrível se debruçar sobre os fatos.
Sir Bertrand Russel e J.P. Sartre criaram em 68 o Tribunal dos Crimes de Guerra sobre a tragédia do Vietnam. Em sua grandeza e agnosticismo, Russel pontificou em suas reflexões filosóficas: “O homem destruiu a sua capacidade de ser feliz e insiste destruir a sua própria vida”. Questionava: como age a Providência Divina diante dos morticínios praticados contra crianças? Severa indagação: Deus criou o homem e o dotou de livre arbítrio para agir como desejasse?
Todos nós fomos na esteira da fé cristã e seus dogmas. Fomos treinados para não conflitar. As respostas que nos são oferecidas recorrem a raciocínios banais. Sir Russel nunca se conformou com esta premissa. E a questionou escrevendo o impetuoso libelo ‘Porque não sou Cristão’. Uma prece ao agnosticismo.
Nos tempos recentes, a maldade e a inconsciência humana aliadas ao refinamento da tecnologia utilizada nas guerras modernas indiscriminadamente matam, mutilam e causam enormes sofrimentos às crianças. De todos os atos criminosos os mais aterradores foram Hiroshima e Nagasaki. Na guerra da Coreia, no norte, o Agente Laranja buscou exterminar a população civil e crianças indiscriminadamente.
Em 1969, estarreci-me no quando vi a brutalidade das cenas no Vietnam, no massacre de My Lai, crianças desesperadas correndo pelas estradas com seus esquálidos corpos sendo consumidas pelas chamas do napalm jogados pelos helicópteros dos marines. Tudo isto obra dos americanos.
Em 1971, fui ao Campo de Concentração Nazista de Dachau, perto de Munique, e até hoje não tenho como definir a minha estupefação ao ver montes de sapatos infantis dos que sucumbiram envenenados por gases letais, ao tempo em que se seguia a incineração dos pequenos corpos de judeus brutalmente trucidados. No mesmo Dachau, estavam à mostra abajures feitos com peles humanas e de mulheres grávidas com as pernas atadas impedindo o parto. Contabilizavam o tempo de sobrevida das parturientes.
Visitei ainda, em 1972, o terrível cenário do massacre nazista do Village de Ouradour-sur-Glane, na Aquitânia, que no amanhecer de 10.06.44 uma divisão de SS Panzer reuniu 642 civis e numa Igreja todos foram fuzilados, inclusive muitas crianças. Levei meus filhos adolescentes (2001) para conferir a maldade humana. Nada foi mudado em Ouradour. O tempo parou e tudo foi preservado.
Em Estalingrado, a maior batalha da 2a Guerra ganha pelos russos, algumas centenas de milhares de mortos eram civis e crianças sob os bombardeios alemães que pereceram ao lado de mais de 2 milhões de mortos de russos e alemães. A ordem nazista era matar e morrer todos.
Na África Negra, ainda hoje se contabilizam milhares de crianças que morrem brutalizadas ou vitimadas pelas epidemias. Em Beirute, 1982, Israel, sob o comando de Ariel Sharon, promoveu o brutal massacre de palestinos encurralados nos acampamentos de Sabra e Chatila. Cerca de 2.400 pessoas, em sua maioria mulheres e crianças, foram mortas enquanto dormiam. Israel nada aprendeu com o genocídio dos judeus, pelo visto. Agiu sem misericórdia.
E hoje, na invasão da Ucrânia, ainda se contabilizam os mortos infantis e estimam que centenas de milhares de crianças, muitas sem a presença dos pais, refugiam-se em outros países. Centenas de milhares crianças, muitas sozinhas, famintas, vagam pelos violentos corredores humanitários. São as atrocidades que hoje nos aterrorizam.
Europa e Estados Unidos, que nos legaram a grandeza humana da cultura e do saber, são exemplos repugnantes quando nos debruçamos sobre as suas perversas trajetórias sob profundas violências genocidas. Luís IX (século 13), venerado santo católico, foi um matador impiedoso ao edificar o Estado Francês. Temos que, pacientemente, apenas nos conformar com o que nos disse São Mateus 19:14 ? “Deixai vir a mim os pequeninos porque deles é o Reino dos Céus”.
Absoluta razão tinha Millôr Fernandes na finesse de sua inteligência quando suspeitava que das criaturas de Deus a única que não deu certo foi o homem.
Somos ainda criaturas de Deus?