NUNCA MAIS SEREMOS OS MESMOS, por Francisco Barreto

Astor Piazzola e orquestra executando ‘Adiós, Nonino’. Veja vídeo ao final da crônica. Imagem: YouTube

A nefasta e mortal escuridão pandêmica nos atingiu profundamente. Dilacerou a nossa alegria de viver de modo plural. A peste nos atingiu brutalmente como fortes ventos a estibordo e a boreste. Este se alternou ruidosamente, balançando o minguado convés, e nos obrigou a nos escudar na escuridão dos porões de uma nau sem rumo e sem prumo. Nos refugiamos nos sentimentos mais primitivos dos humanos: o pavor. Condutas reprimiram o nosso caminhar. Os gestos afetuosos dos olhares das proximidades físicas para com os outros foram severamente banidos. Nos tornamos meros objetos, tais como fotos esmaecidas dependuradas nas paredes. Dias, meses e anos passamos a sermos enclaves afetivos.

Tivemos sentimentos de dor, de misericórdia, a saudade dos amigos e das pessoas que foram despejadas nas UTIS. Enfrentaram a morte tais como destroços afundados por tempestades, sem direito a tábuas de salvação ou uma mão amiga. Estas tábuas inexistentes foram apelidadas de vacinas. Muitos amigos se foram. Sucumbiram nas turbulências do oceano da tristeza. Os que sobreviveram foram indulgenciados pela solidão e pela benéfica proteção do duro isolamento. Mergulharam em si mesmos e trilharam sem rumos veredas de traumas emocionais. Passaram a viver longe, muito longe de suas referências afetivas.

Sombrias e distantes lembranças dos doces olhares, dos abraços, esmagados por uma impiedosa não convivência. Muitos aderiram aos álibis pandêmicos e assim se tornaram náufragos e não mais emergiram para o afeto. Avós, pais e filhos, amigos fraternos, vivos e distantes, foram quase sepultados e ressurgiam de modo fragmentar graças às novas e gélidas tecnologias. Não são raros aqueles que por consciente adesão ao silêncio não acenaram impetuosamente aos seus. Muitos são os que não sentiram que duas das mais graves sequelas que são a tristeza e o abandono. Esses poderão ter sido vitimados pelo vírus do desafeto.

Não somos mais os mesmos. Encolhemos nos nossos rudes individualismos. Muitos dos nossos, mutuamente, nos esquecemos deles. Nos apequenamos na dimensão humana que o afeto e o amor nos inspirava. A solidão há que ser admitida como nos disse um dia Georges Moustaki, o genial poeta e musicista egípcio-francês:

Pour avoir si souvent dormi

Avec ma solitude

Je m’en suis fait presqu’une amie

Une douce habitude

Ell’ ne me quitte pas d’un pas

Fidèle comme une ombre

Non, je ne suis jamais seul

Avec ma solitude

Moustaki nos ensinou que “a solidão passa a ser quase uma amiga, um doce hábito, fiel como uma sombra, não estou nunca só, tenho a minha solidão”. Hoje, como ontem no exílio, inspira-me novamente a recorrer a Moustaki. Quantos de nós passamos longas noites face a face com a solidão, apenas nós dois. E, nas minhas noites invadidas por lembranças dos filhos, dos amigos, dos netos, escuto-os solfejarem aos meus ouvidos, baixinho e distante, a eterna melodia de Piazzolla – Adiós Nonino.

Não sou mais, nunca mais seremos os mesmos.

É BOM ESCLARECER
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Uma resposta para NUNCA MAIS SEREMOS OS MESMOS, por Francisco Barreto

  1. Brilhante artigo, Barreto! Uma grande parte da população sentiu-se exatamente assim. Muitos não tinham Piazzolla para consolar.
    Esses meses, poucos anos, arrastaram-se como se fossem décadas.
    Você tem toda a razão, ao dizer:
    NUNCA MAIS SEREMOS OS MESMOS!