Era bonito de ver a cumplicidade entre as duas irmãs solteironas. Dolores, comunicativa, procurava conversar com muita gente nas poucas vezes que saíam de casa. Já na recatada Isaura até o sorriso era tímido. Uma complementava a outra, de qualquer sorte e modo, e esse companheirismo beneficiava principalmente Dolores.
Vez por outra, ela costumava cometer gafes pelo exagero de sua expansividade. Isaura fazia o papel de moderadora da irmã, feito aconteceu quando faleceu João, irmão delas. Foram ao velório, Dolores sempre à frente, ansiosa para abraçar o morto. Mas fez de uma maneira que deixou perplexos muitos dos presentes.
Ao pé do caixão, aos prantos, primeiro lamentou a aparência do falecido. “O bichinho tá tão magrinho!”. Logo em seguida… “Ô, João, por que foi que você foi trair sua mulher, hem?”. Isaura procurou intervir. Sem sucesso. Dolores não parava de falar, sem dar trégua nem mesmo ao finado. “Joãozinho, meu irmão, você errou, errou feio, porque você foi infiel a minha cunhada”. E soltou mais algumas frases nessa linha.
Isaura conseguiu, finalmente, um ‘aparte’. Aproveitou uma pausa de respiração da irmã. “Dolores, esse não é Joãozinho. O nosso irmão está na sala vizinha”, explicou. Tarde demais, a viúva do suposto João, alertada por parentes, aproximou-se das duas e sobre elas descarregou um caminhão de impropérios e questionamentos.
“Agora, você vai me dizer com quem ele me traía”, gritou a ‘dona’ do velório. A turma do deixa disso tentou, em vão, contornar o barraco e conter a fúria da mulher que se sentiu por demais ofendida. Mas ela não conseguiu atingir as irmãs com algo mais do que palavras fortes. Dolores e Isaura escaparam para a sala ao lado, onde descansava o verdadeiro João.
Assim viviam as irmãs, vez ou outra ‘aprontando’, passando por situações inusitadas. Como na feira que frequentavam semanalmente. Eram conhecidas por pechincharem com irritante insistência, embora transmitissem ternura na suavidade da voz de cada uma. E desse jeito quase sempre arrancavam algum desconto do feirante.
“Meu bichinho, baixe o preço da banana… Por favor, vai”, apelava Dolores! Alguns vendedores cediam de primeira, para não esticar a peleja. “Com essa falinha mansa, bem diferente daquela víbora lá de casa, atendo na hora”, dizia um. “Dá vontade até de dar a mercadoria de graça, minha senhora, só pra senhora parar de insistir”, atalhava outro.
O trânsito da cidade também ‘sofria’ nas mãos e nos pés de Dolores e Isaura. Especialmente os demais motoristas. As duas não se davam conta de que dirigiam com certa imperícia e imprudência, porque trafegavam em excessiva baixa velocidade. Causavam aborrecimentos e ligeiros congestionamentos. Afinal, não passavam da segunda marcha.
Quem viesse atrás, sem chance de ultrapassagem, que aguentasse. “Passa a terceira, comadre”, gritava um ou outro, sem a menor desconfiança de que elas ignoravam gozações ou irritações alheias.
E na missa dominical? Católicas fervorosas, ocupavam bancos da primeira fileira diante do celebrante. Terços nas mãos e cobertas por mantilhas, permaneciam de braços dados durante toda a liturgia. Desgarravam-se apenas no momento da comunhão ou quando percebiam um olhar reprovador do padre.
Uma das melhores histórias das irmãs, Dolores sempre protagonista, aconteceu com um flanelinha. No estacionamento ao lado da igreja, saindo da missa, ela procurou e não encontrou na bolsa algum trocado para dar ao rapaz que ficara ‘tomando conta’ do carro delas.
“Ah, moço, vá me perdoando, mas não tenho um vintém pra lhe dar”, disse. “Quero vintém não, minha senhora. Basta me dar um dinheirinho”, respondeu o flanelinha.
Causos e casos do tipo marcavam o cotidiano de Dolores e Isaura. Mas, apesar dos percalços e certas distrações, digamos, eram conhecidas e queridas pela candura com que tratavam todas as pessoas. Tanto que muitas de suas amigas e amigos, se lhes fosse dada tal atribuição, não hesitariam em identificá-las em vida e em lápide como ‘doces vitalinas’.
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Uma resposta para DOCES VITALINAS, por Babyne Gouvêa
Conheci tia Dôrinha Neiva, era uma grande figura, exatamente como Babyne descreve!
Ela tinha um Gordine, que Paulo Neiva, sobrinho, usava para fazer pegas na Av. Epitácio Pessoa, com Aldemar Peregrino Júnior, o Bitu, e Saulo Souto Maior.
Excelente texto, Babyne! Muito bem escrito, como está se tornado uma constante para você.