Olhando para trás, a uma distância de 50 anos, as palavras não são suficientes para dizer o que nós sentimos naquela noite, quando tivemos a oportunidade inusitada de viver uma aventura eletrizante.
A noite de 2 de janeiro de 1971 por si só já prometia ser agradável, pois era uma noite de sábado, ainda dentro do clima de Festas Natalinas, que só termina no Dia de Reis, 6 de janeiro (e aniversário de Seu Alberto Teixeira!). Mas terminou memorável para todos aqueles que a viveram intensamente.
Havíamos acabado de concluir o científico, hoje curso médio, boa parte de nós no Liceu Paraibano. O regime havia engrossado com Ato-Institucional nº 5, o famigerado AI5, a ditadura militar evoluía em direção aos seus piores momentos. Mas ainda faltava um pouco para a repressão atingir o seu ápice, o que aconteceu em 1972-73.
Com o regime fechado, restava nos dedicarmos somente aos estudos. O terceiro científico era ano de preparação mais intensa para o vestibular. Mas 1970 fora um ano atípico.
Esse foi um ano em que estudamos como nunca no preparo para o vestibular. Mas foi o ano em que mais nos divertimos. E como nos divertimos!
A Copa do Mundo do México marcou a conquista do Tricampeonato, com o Brasil trazendo para casa a Taça Jules Rimet. A diversão emendou com a tradicional Festa das Neves e pouco mais tarde com os Jogos da Primavera.
Frequentando à tarde o Liceu, todas as noites, após o cursinho pré-vestibular de Jader (física), Honório (biologia), Valtércio (química) e Aléssio Toni (português), estudávamos até amanhecer, virando a noite. Dia seguinte dormíamos um pouco, tomávamos um banho e íamos para o Liceu.
Alternávamos os estudos na garagem da casa de Roberto Lira com a república de estudantes de Itaporanga, na Rua General Osório, onde morava Nilvando Gabriel Ferraz, um grande colega e amigo. Nas noites das sextas e dos sábados, porém, só brincávamos (depois do cursinho, claro), pois ninguém é de ferro!
Alguns iam para o Elite Bar, na praia de Manaíra. Outros, para o jantar dançante no restaurante do Clube Cabo Branco, no Miramar. Muitos, aqueles que tinham um namoro fixo, iam para as casas das suas namoradas.
O ponto de chegada, de final de farra, mesmo, era a churrascaria Bambu, que tinha esse nome por se situar dentro do bambuzal do Parque Solon de Lucena, a Lagoa. Ou o cabaré.
***
Mas nessa noite todo mundo convergiu para a Bambu, devido aos boatos de que estavam vendendo o bizu (que é como antigamente chamavam a “cola” da prova) da primeira prova do vestibular da Universidade Federal da Paraíba, português, que seria aplicada na manhã seguinte no Campus I da Universidade.
Roberto Lira foi me buscar lá em casa com Zé Paulo: “Zé, tão espalhando que o bizu da prova de português está sendo vendido. Vamos atrás? Se não conseguirmos, pelo menos tomaremos um bom porre! Vamos buscar Paviva”. Foi assim que começamos uma das nossa melhores aventuras.
Lá na Bambu grupos se formaram em torno de garrafas de Rum Montilla com coca-cola e pratos de galeto nas mesas, e depois se espalhavam pela cidade, à medida que os boatos iam chegando.
O boato se espalhou e muitos vestibulandos correriam para a Bambu nessa noite. Nesta foi estabelecido o QG das operações da Caça ao Bizu. Nesse tempo não existia celular e a comunicação se fazia pelo telefone da churrascaria. Ou pelo boca-a-boca, gritando de um carro para outro, quando cruzavam.
Foi assim durante toda a noite. Chegavam notícias de bizu procedente de todos os bairros da cidade, todas posteriormente descartadas por serem falsas.
“Estão vendendo uma lista de resultados na Praça dos Motoristas, lá em Jaguaribe!” Ou: “Um contínuo da Universidade está vendendo um bizu lá em Mandacaru!” Era o suficiente para uma debandada de vários carros lotados.
O clima, verdadeiro frisson, era uma mistura de alegria com preocupação, pois havia quem realmente acreditasse. Ou quisesse, precisasse acreditar, por não crer em sua própria capacidade.
A noite era uma aventura só. Lá pras dez Roberto nos chamou para irmos até a casa daquela colega, na qual estavam várias outras também interessadas no bizu.
Dono de boa lábia, um gentleman, impressionava mais as mães do que as meninas. E foi dessa forma que convenceu a mãe da colega a ceder o seu jipe para ir atrás de um bizu lá em Jaguaribe.
Fiquei com Leninha e Ana, na ladeira de São Francisco. Partiram ele, Zé Paulo e Paviva. Depois me contou: na Avenida João Machado cedeu a direção do jipe a Paviva, para que este aprendesse a… DIRIGIR!
Pois é, Paviva, muito bom de futebol (era um craque com a bola!), não sabia dirigir nem carrinho de mão, quanto mais um jipe. O resultado foi uma trombada com um tonel de lixo por cima da calçada. E voltaram para entregar o jipe, dizendo que o bizu foi falso alarme, sem mencionar o acidente, e muito menos a autoescola de Paviva.
Outro grupo foi chamar Marcos Melquíades, que estava dormindo em casa. Gritaram pelo seu nome, mas quem acordou, e atendeu, foi o pai, que não ouvia muito bem:
– Quem é?
– Sou eu, Coronel Melquíades. O senhor podia chamar Marcos?
– Marcos? Pra quê?
– É pro bizu!
– O peru? Solte aí no jardim.
– Não, Coronel, a prova…
– Farofa? E esse peru já está assado?
Desistiram e foram embora sem Marcos, que só no dia seguinte veio saber da aventura que havia perdido.
A noite toda foi nesse ritmo: cachaça, boato, correria, frustração, mais cachaça…
Nessa noite fiz boas amizades na aventura: Zé Rubens e Nisbel, que estão cursando pós-graduação na universidade lá do Céu, Rosimar China e Pedro Corredor, só para citar quatro. Roberto Lira e Paviva também estão estudando lá em cima com eles.
A noite terminou com uma tragédia. Já amanhecendo chegou a notícia do grave acidente na falésia da Ponta do Cabo Branco. Corremos para lá e encontramos o carro de Marcos Sá lá embaixo, à beira mar, destruído. O corpo já tinha sido levado para o Hospital do Pronto Socorro. Ele havia caído lá de cima quando estava num colóquio amoroso com uma moça. Morreu de amor, coitado, encerrando uma vida que prometia ser brilhante.
***
Ao amanhecer do dia cheguei a casa, para tomar uma ducha revigorante, um caldo de crista de galo para eliminar o cansaço e um copo de suco de laranja. Ouvindo as reprimendas (plenas de razão!) de Papai e Mamãe: “Irresponsável!”
Na hora da prova, que foi aplicada pelo advogado Paulo Américo Maia, ao nos depararmos com os 50 quesitos confirmamos com o que desconfiava: as dezenas de bizus eram todas falsas!
Ficou evidente com o comentário lacônico de Zé Paulo: “Chambalaio!”
Mas essa história de bizu foi apenas um detalhe. O bom foi a impagável noite de aventuras, que antecipou o prazer e a glória de termos passado naquele vestibular só com os nossos próprios estudos.
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Uma resposta para A NOITE DO BIZU, por José Mário Espínola
Eita, Zé Mário, que escrita gostosa e cheia de saudades… Leninha, minha irmã, e Ana Medeiros, minha amiga querida, citadas de forma tao fraterna nos seus lembrares, a ausência de tantos que já se foram, o tempo que tudo transforma… me deu saudade de coisas que não vivi e que você descreve tao bem. Parabéns, amigo, por esta página de beleza.