O dia começava cedo para D. Matilde. Tomava o seu café reforçado, e acendia o cigarro, que não dispensava sob nenhuma condição. Depois do banho matinal se apoderava do telefone fixo, puxava o seu longo fio e o apoiava no colo após se acomodar numa confortável cadeira de balanço, na sala de visitas. Iniciavam ali as conversas diárias com familiares e amigos.
Geralmente, se queixava do marido alcoólico que, embora sofresse desse vício, sabia fazer filhos. E como sabia! Emprenhou a esposa por doze vezes. Eram tantos meninos que concordavam em doar alguns para os seus irmãos criarem.
Levavam a vida em comum sem aborrecimentos, ele trazendo o dinheiro para a manutenção da casa, e ela tendo a sua individualidade respeitada pelo consorte. Havia fidelidade de ambas as partes e um
comportamento familiar de particularidade singular.
Os interesses e ocupações dos dois eram semelhantes em alguns aspectos, diferentes em outros: enquanto o Sr. Albino trabalhava, gostava de leitura e costumava beber fora do lar, a D. Matilde era doméstica e chegada a uma bebida em qualquer circunstância. Não apreciava um livro, achava enfadonho.
O cotidiano do casal fugia ao convencional de sua geração. As crianças eram dotadas de inteligência acima da média e se desenvolveram sem receber muita atenção dos pais nas tarefas escolares. Tiveram sorte na educação formal dos filhos, cada qual assumia as suas responsabilidades colegiais. O casal era apontado como pais afortunados, por terem uma prole próspera.
D. Matilde tinha um perfil de mulher bem-disposta, gostava de festas, fascinada por danças, enquanto o Sr. Albino era reservado, preferindo o lazer em casa, aproveitava qualquer momento de sossego para ler. E assim a convivência respeitosa entre os dois se deu durante toda a vida matrimonial.
D. Matilde comemorava o período de Momo nos salões de dança devidamente paramentada. As fantasias homenageavam os seus personagens preferidos, da baiana de Carmem Miranda ao Pirata do Rum Montilla. E os embalos eram sempre acompanhados de uma bebida destilada, confetes e serpentinas. A orquestra tocava o frevo iniciando a festa, e a carnavalesca abraçava um dos familiares para lhe fazer companhia na folia.
No carnaval, se a senhora estava com filho em idade de berço, encontrava uma maneira de entretê-lo caso acordasse no meio da noite – colocava um espelho onde ele se via acreditando ser uma outra criança. Pronto, esse não seria obstáculo para as suas brincadeiras momescas.
Terminada a noite de divertimento, retornava para casa, muito feliz, esquecia o cansaço e com muita disposição preparava o café de Sr. Albino e dos filhos. Esse compromisso era repetido anualmente; nem mesmo um feto sem vida no útero interrompeu os seus dias de festa. Dizia: “Na quarta- feira de cinzas eu resolvo isso”.
Todos gostavam de D. Matilde. Obcecada pela vida, não conhecia momentos de tristeza. Onde chegava a alegria se fazia presente; conseguia proezas como fazer rir até mesmo em velórios. O marido não compactuava desse feitio da esposa, mas admirava o seu comportamento expansivo. O casal era a prova viva do velho jargão “os opostos se atraem”.
Em casamentos, aniversários ou qualquer outro evento social para o qual fosse convidada, era sempre a primeira a chegar. Fazia questão de desfrutar de todo o tempo que tinha direito, de preferência com um copo de bebida na mão. Não cometia vexame por ter exagerado no álcool, este apenas a deixava mais enérgica se tornando o centro da alegria. O cigarro era sempre o companheiro inseparável em todas as ocasiões sociais.
Quando uma irmã estava muito doente, ela foi lhe fazer uma visita com uma recomendação: “Nilzinha, não forneça o meu endereço Àquele lá de cima; se perguntar por mim finja que brigou comigo e que desconhece o meu paradeiro”. E assim encarava a sua filosofia de vida: primeiro ela, segunda ela, terceiro ela. O restante vinha depois. Mas nem por isso teve a sua reputação depreciada. Tinha horror à ideia da finitude, respondendo sempre a quem lhe falava sobre essa hipótese certeira: “Partirei contrariadíssima”.
Chegou uma época que precisou de cuidadora por ter fraturado o fêmur. Deu um trabalho enorme aos filhos, que se preocupavam muito com a sua indisciplina. Subornou a sua auxiliar para conseguir um cigarrinho, pedindo: “Só unzinho”! Nessa altura o Sr. Albino já tinha subido aos céus em decorrência de uma cirrose. Sentia a sua ausência porque tinha nele um aliado, um admirador de seu modus vivendi; existia realmente uma afinidade difícil de ser entendida.
Lutou para estender a sua existência. Esteve hospitalizada contra a sua vontade, em briga com um diabetes que lhe impunha limitações. Conseguiu amenizar as suas abstenções subornando dessa vez um enfermeiro. À noite, ele fazia companhia à D. Matilde, apreciando o seu prazer em dar umas tragadas no seu cigarro, como estivesse a saboreá-lo. As conversas entre os dois se alongavam até a madrugada, e ele ciente da brevidade de sua subsistência lhe proporcionou os últimos desejos.
Antes do seu último sono, respondeu ao enfermeiro que lhe questionou sobre vários assuntos, inclusive sobre o seu marido. Ela tergiversou fugindo de assuntos envolvendo pessoas falecidas. Ele insistiu procurando distraí-la, tentando demovê-la da vontade de continuar fumando – essa era a sua intenção. D. Matilde num gesto repentino, retrucou: “Se é o que você quer saber, lamento ele ter batido as botas, mas antes ele do que eu”.
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Uma resposta para ANTES ELE DO QUE EU, por Babyne Gouvêa
Bravo, Babyne! Personagem fascinante, muito bem construida.
Excelente cronica. Parabens!