UMA JUVENTUDE LIBERTÁRIA: PERPLEXIDADES E INSURGÊNCIAS (I), por Francisco Barreto

Crédito:  Jacques Marie

Universitários e policiais se enfrentam nas ruas de Paris (Foto: Jacques Marie/IstoÉ)

Durante quase seis anos vivi exilado, a partir do início de 1969. Pude vislumbrar o que significaram as causas e as consequências das insurgências de 1968. Aqui e agora, 50 anos depois, exponho a minha limitada percepção do que ainda guardo, do meu sentir e ver, sobre a rebeldia juventude em defesa de princípios libertários. São registros esparsos da minha memória.

A França vivia em 68 momentos de estabilidade econômica e financeira apesar de uma precarização do mundo do trabalho. Estava numa fase de bem estar social, e mais, era a principal nação do mundo europeu com desemprego baixo, forte crescimento, aumento da renda, explosão do consumo e um elevado grau de liberdade individual: raro no Ocidente.

Vivia os “30 anos gloriosos”. Concluíra a descolonização na África e na Ásia, com graves fraturas sociais e políticas nas guerras da Argélia e do Viêt Nam. Tornou-se uma potência atômica e tinha uma “Force de Frappe” que a deixara sem ameaças potenciais. Mostrara ao mundo que era Troisième Force obra do Gaullismo, tudo muito distante dos impérios americano e soviético.

No final dos anos 60 ocorreram convulsões em escala planetária. Foi uma grande onda de protestos que teve início com manifestações estudantis reivindicando reformas no setor educacional. A Primavera de Praga, a ocupação da Universidade de Roma, levantes no Leste Europeu e a repressão soviética, movimentos internacionais contra a Guerra do Viêt Nam e Camboja, movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, os Blackpanthers, Luther King, a Revolução Cultural na China (1966-1969), contestações estudantis no México concluídas em outubro pelo massacre de Tlatelolco às vésperas da Olimpíada. E 68, um ano chave na luta contra a Ditadura no Brasil, encerrando com o AI-5 e Decreto 477, as lutas armadas na América Latina e na África.

A revolta estudantil e, na sequencia, a adesão operária francesa, é a mais célebre entre todas as insurgências no mundo do pós-guerra. Foi a época da explosão das tensões sociais reprimidas desde o início nas décadas de 50/60 na Europa, nas Américas e na Ásia.

Ocorreram adesões do operariado, sobretudo dos jovens, ao movimento, diante de uma estrutural impossibilidade muito sentida por jovens trabalhadores de ter uma vida normal, profundamente diferente do contexto da grande e da pequena burguesia, uma vez conscientes de que suas existências inteiras transcorriam pesadamente em fábricas insalubres em condições por vezes duríssimas.

A juventude estudantil queria mais liberdade e autonomia no pensar e no fazer. Os cernes das revoltas ao longo dos anos 60 emergiam de 68 de fortes emoções libertárias submersas e reprimidas que eclodiram. Os objetivos, às vezes irrealistas, foram associados a elementos de contestação não somente do ensino burocrático, sobretudo do conteúdo da sociedade e da vida em geral. A sexualidade era apenas um leit motiv.
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“Changer Ia vie” foi o principal mote. A contestação do ensino não começou em 1968. Desde 1966, os estudantes se rebelavam contra a natureza do ensino indo até o boicote das aulas julgadas inadequadas. Não seguir os mestres era indisciplina, contestação insuportável. Não eram raras as escolas que recorriam à violência física contra as crianças e adolescentes.

Aos mestres eram delegados poderes coercitivos com incidência física: corriqueiras tapas na cara. Às famílias não se concediam nem estas contestavam os métodos. E, mais grave, eram passivas concordantes com tais atos de agressividade fruto da pedagogia da porrada.

Eu mesmo tinha um filho, Pablo, que foi vítima de várias agressões em sala de aula. Tinha apenas nove anos. Morava com a mãe em Malesherbes, França. Sofria para estudar, ficou com um trauma francofônico.

O academicismo, o rigor dos métodos, a adesão do ensino à burocracia e ao tradicionalismo, ao lado de rígidas disciplinas comportamentais no aprendizado, geraram inconformismos generalizados nos ambientes escolares e universitários. A rigidez da transmissão do conhecimento teórico desvinculado de atos empíricos nos campos das ciências sociais gerou enfado: o mesmíssimo academicista.

O sistema educacional e universitário não havia mudado durante várias décadas e entrou em crise. Começaram a ser encaminhados projetos de reformas que foram contestados como as propostas tecnocráticas submetidas ao mundo acadêmico e aos estudantes lyceens.

O Estado francês, sempre jacobino, centralista e autoritário desde o “Ancien Regime”, nunca soube cultivar a grandeza histórica e cultural de Carlos Magno, que no Século Nono criou e impôs a escola e o o ensino alfabetizador laico no Império Carolíngio. Há mais de mil anos.

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