Na contagem regressiva da vida é renitente o meu desejo de me enveredar e fazer reluzir os afetos que se exilaram há décadas. Muitos foram e ainda são meus amigos, amigos que procuro todo tempo em noites insones. Alguns ainda lindos e vivos estão ao meu lado e de leve povoam a minha alma quase esmaecida, mas o tempo e a distância vêm tristemente nos dizimando.
De repente, irreverente como sempre, aterrissa Fernando Marinho Falcão. E, como Carlinhos Bang Bang, famoso bandido preso no Carandiru, memorizo e repito o chamamento: “Chega mais, Falcão”. No fundo de uma cela de presos políticos vindos de Ibiúna, foi convocado pelo citado meliante para integrar o seu time de futebol. “Quem é Falcão? Venha jogar no meu time”.
Meio assustado, Fernando foi e como ousado atacante fez miséria com os seus curtos dribles de futebol de salão. E numa daquelas diatribes insolentes foi agredido por um famoso bandido adversário. Carlinhos Bang Bang defende Fernando e diz ao ameaçador agressor: “Se segura, vagabundo; esse garoto é um dos meus”. O temido e respeitado Carlinhos deu ao buliçoso e irreverente atacante Falcão o salvo conduto para continuar jogando. Estava sob boa e violenta proteção.
Pouco tempo depois, Fernando saiu da prisão, enfileirou-se na clandestinidade, na retaguarda armada de Carlos Marighella na ALN. Encontrei-o em abril de 69, no Rio de Janeiro, com outro militante. Tentou me seduzir para acompanhá-lo na guerrilha. Com decidida recusa, saí do país. Fernando sabia que ela era o irmão que não tivera.
Logo depois, encontramo-nos em Paris. Estava vindo acossado pela repressão brasileira. Passamos a morar juntos no Clocher da Eglise St. Esprit, em Dausmenil. Tempos mais tarde, por determinação do Cura, fomos desconvidados a permanecer, graças à impulsividade de Fernando, que insistia em comboiar algumas hippies do Quartier Latin para o recatado abrigo da Santa Madre Igreja.
Em seguida, fomos acoitados como residentes na Maison du Brésil e ao persistir nas suas habilidades futebolísticas foi várias vezes ameaçado por rancorosos marroquinos. Era o artilheiro do time brasileiro, secundado por João Agripino, o Preto, e Fausto Neto. Sempre estivemos juntos, e ousadamente algumas vezes deslizávamos nos bons Cafés de Paris, Les Deux Magots, Cave des Oubliettes, Café de Flore, entre outros, confiscando passaportes brasileiros que eram remetidos ao Brasil para facilitar a fuga de militantes da luta armada.
Na sequência, Fernando, que também era excelente percussionista, ingressou nas veredas musicais. Ganhou o mundo como músico e compositor. Em Roma, além de atropelar com seus infalíveis dribles o grande Chico Buarque no campinho do Colégio Pio Brasiliano, tornou-se amigo de Bernardo Bertollucci, o premiado e fenomenal realizador de 1900, de ‘O último tango em Paris’, ‘O Conformista’, dentre muitos outros. Fernando vez vários arranjos para o grande Bertollucci.
Casou-se com a atriz Valerie King, filha do grande escultor o escultor François-Xavier Lalanne, Falcão criou vários instrumentos de percussão, como o balauê (um berimbau horizontal. E com o sogro criou uma praça infantil musical em Israel, onde em um dos brinquedos, um escorrego, dedilhava os acordes da nordestina ‘Asa Branca’.
De volta ao Brasil na década de 80, produziu extraordinárias composições de músicas brasileiras com influências afrobeat e incursões experimentais de vanguarda. Os sons da musicalidade nordestina, dos mercados públicos de João Pessoa em que os reencontrou na Kasbah de Marrakech.
Com Naná Vasconcelos, considerado o maior percussionista do mundo, foi longe. Ainda foi distinguido parceiro musical de Alceu Valença (Saudades de Pernambuco) e teve um arrebatada convivência e parceria musical com Fagner, Nazaré Pereira e Nara Leão.
Em 1988, passou uma boa época comigo em João Pessoa. Tinha um sonho não realizado e sentiu infeliz por não fazer um concerto experimental no Pátio da Igreja de São Francisco em que nos seus delicados e carbonários desejos desejava juntar os metais da Orquestra Tabajara de Severino Araújo, Naná de Vasconcelos, Sivuca e os Cellos da Sinfônica de São Paulo. A Paraíba – “aqui ninguém nasce impunemente”, dizia – não lhe deu acenos.
Morreu em Londrina, em 1992, deixando uma bela produção musical em seus álbuns: ‘Memória das Águas’, inspirado nos ventos e no mar de Tambaú, ‘Barracas Barrocas’ e o ‘Engenho dos Meninos’, recordações de sua infância no Engenho Corredor, o mesmo de José Lins do Rego, de quem era parente.
Escreveu dois livros de poesia – ‘O Avarento e o Vento’ e o ainda inédito ‘O Pesadelo do Demônio’.
Após a sua morte, que ignorava, recebi uma carta dele pelas gentis mãos do nosso fraterno amigo Humberto Espínola. Tristeza profunda. Fernando fora meu amigo por mais de seis décadas e, post mortem, brindou-me com viagem afetiva ao seu profundo amor à Paraíba. Uma Paraíba que nunca soube e nunca saberá quem foi ele.
Ontem, como hoje e sempre sinto um grande desejo de lhe dizer: “Chega mais, Falcão. Até breve”.
- Francisco Barreto é economista e Professor de Direito da UFPB
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