A memória age sempre como um rastilho de pólvora iluminando as noites escuras de passados longínquos. Vêm-me sempre os sentimentos e a tristeza dos duros anos de uma distante e penosa juventude. Hoje, mergulhei em uma das minhas remotas cicatrizes: Natal de 1969.
A lembrança me leva também ao que escreveu afetuosamente Cristovam Buarque prefaciando ‘Os Olhos no Exílio’, livro em que ousei, na generosa leitura desse Amigo e Mestre, mostrar que “o exílio é para sempre, não importa onde moramos” ou porque “o exílio não nos deixa, nós o carregamos conosco”.
Há mais de meio século, eu e mais três estimadíssimos amigos – Fernando Falcão, Fausto Neto e Elias Mota – enveredamo-nos na autoestrada do Norte da França numa madrugada gélida de 23 de dezembro. Seguimos num velho e resistente Volksvagen, então já merecedor de repousar numa sucata. Tinha o predestinado nome de Apocalipse.
Longo e tenebroso trajeto envolvido pelas brumas de uma noite sombria. Horas depois, chegamos ao Pas de Calais estimulados pelo arrebatado desejo de fazer a travessia do Canal da Mancha com destino a Londres. Era o alvorecer da véspera de Natal. Deparamo-nos com a impossibilidade de continuar. Ignorávamos que não havia barcos trafegando.
Decepcionados, ficamos encalhados em Calais. Curiosos, fomos ver o Mar do Norte, onde ventos frios sopravam aos nossos ouvidos, lindamente, trechos de ‘Folhas Mortas’, canção de Édith Piaf: “E o vento norte as leva na noite fria do esquecimento…”.
Esquecimento que não nos impediu de caminhar e entrar nas casamatas da Guerra 14/18, onde milhares de aflitos soldados aliados, mutilados ou não ansiavam, como nós, alcançar a Inglaterra. Logo ali, na frente, Dover.
Fomos para o Hotel des Bourgeois, nome em homenagem aos heróis “Les Bourgeois des Calais”, escultura do magistral Auguste Rodin que ficava nas cercanias da minúscula hospedaria. Horas de lassidão, entremeadas de cognacs e cervejas num pequeno bistrô.
Fausto e eu, com religiosidade à flor da pele por volta da meia noite, caminhando em ruas estreitas e vazias saímos em busca de uma igreja. Encontramos uma. A Chapelle de St. André. Lotada. A Missa do Galo era nosso cenário de recolhimento pelo nascimento de Jesus.
Fomos reconfortados pela fé e calor humano. Espiritualmente, havia reencontrado a minha mãe e a minha terra.
No meio de muita desolação, minorada pelos cânticos dos infantes numa noite feliz, fomos ao final cristãmente cumprimentados por algumas famílias. Saímos em estado de graça com o coração pacificado. Havia entre as pessoas um olhar piedoso.
Não tínhamos como esquecer que o exílio estava em nós. Como Maria, José e o menino Jesus, havíamos encontrado em Calais a nossa Manjedoura.
- Francisco Barreto é Escritor e Professor de Direito
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2 Respostas para EXILADOS COM CRISTO, por Francisco Barreto
Um texto que retrata um momento vivido por um ser sensível, de fé, e testemunhando uma das maiores passagens do crescimento humano em todos os tempos: o sofrimento com a humildade simultânea. Todos seres humanos que são marcas do seu tempo, todos, passaram por esse processo de engrandecimento pessoal: de Jesus a Confúcio, aos nossos tempos, com Luther King a Mandela. Assim, foi seu exílio, tão bem descrito em OS OLHOS NO EXILIO.
Onde estavam Fernando Catão e Elias Mota?