A historieta romântica adiante contada me foi presenteada pelo ilustre historiador e Professor Humberto Melo. Ele chegou ao meu consultório com a historinha embrulhada em “papel de amizade”, como um mimo. Leitor assíduo de tudo o que se escreve, Dr. Humberto acompanha até as crônicas que eu cometo neste espaço.
Nessa tarde, chegou a meu consultório sorrindo misteriosamente. E não aguentou a esperar pelo final da consulta. Disse-me ter ouvido este conto de amor da boca do escritor Ariano Suassuna, a quem atribui a autoria. Sou, portanto, apenas um simples “descritor”. E lembro, para aqueles que não gostarem, que portador não merece pancada.
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A Doutora Eneida era psiquiatra consagrada na outrora cidadezinha de Misericórdia, do Alto Sertão paraibano. Hoje, já com o nome de Itaporanga, tornou-se uma cidade tão próspera que se deu ao luxo de ter uma psiquiatra em seu crescente quadro de especialidades médicas.
E psiquiatra das chatas, porém muito bem sucedida com os pacientes que a adoravam, apesar do jeitão duro. Diziam até que ela dava cascudos e beliscões em seus clientes mais resistentes. Como todo bom psiquiatra, cobrava consulta até dos parentes, que eram muitos na cidade. Não atendia de graça nem tinha convênios.
Para tristeza do seu velho pai, Seu Zarias, agricultor que morava com Dona Joaquina mais sete dos 14 filhos no Sítio Várzea do Saco, sua roça de origem, é que ela tinha se decidido pela especialidade de Psiquiatria.
Muitos anos depois, o pai morreu levando um certo desgosto, porque achava que psiquiatra não era médico. Para ele, médico tratava anemia, verminose, sezão, febre terçã, ventosidade e nó na tripa. Fazia parto e operação. Tratar só de doidos?… Mas isso é outra história.
Pois bem. A Dra. Eneida tinha excelente formação científica. Graduada pela UFPB, fez residência médica no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e clinicou no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha, na região metropolitana da capital paulista. Depois fez mestrado em Barcelona (Espanha) e doutorado na Alemanha.
Retornando à Paraíba, trabalhou por pouco tempo na Colônia Juliano Moreira. Criou juízo e partiu para carreira solo em sua cidade natal, onde teria mais futuro. Pelo menos monetário.
Todos os anos, porém, ela frequentava o Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Foi num desses congressos, dessa vez em São Paulo, que a Dra. Eneida reencontrou o também psiquiatra Doutor Walfredo Tiburtino.
Dr. Vavá, como era carinhosamente chamado pelos seus amigos, havia sido colega de residência médica da Dra. Eneida. Sujeito boa-praça, oriundo do interior de São Paulo, na época da residência havia tido um flerte com ela. Mas sem nenhuma intimidade. Logo, cada um tomaria o seu rumo, nunca mais se falando.
Depois da residência médica, aquela era a primeira vez que se reencontravam. Agora, nas palestras e conferências, sentados lado-a-lado, coxas roçando, logo esqueceram o congresso. Passaram quatro dias e quatro noites no hotel. Amor tórrido! Mandaram às favas todas as teorias de Lacan, Freud e Jung. Depois, partiram sem dizer adeus, cada um para a sua cidade. E não mais se falaram.
A vida dá as suas voltas. Anos depois, os psiquiatras casualmente voltaram a se encontrar. Desta vez, na piscina de um hotel em Natal. Ele ficou muito feliz com a oportunidade de revê-la. Tentou se aprochegar, mas Eneida mostrou-se muito arredia. Vavá logo descobriria o motivo: Eneida não estava só. Em sua companhia, um belo menino, de uns cinco anos.
“Quem é esse menino tão lindo?”, perguntou. “Walfredinho, nosso filho”, disse bruscamente a doutora. Vavá quase caiu da cadeira! Recuperado do susto, aproximou-se do menino. Olhando de perto, realmente achou muitos traços seus. Como ainda estava solteiro, Vavá adorou a ideia de ser pai. Rapaz de bons princípios, formação católica de berço, falou:
– Mas você nunca me procurou, nunca me disse nada. Imagino o que você deve ter sofrido no seio de tradicional família cristã, sertaneja. Em uma cidadezinha atrasada, ultraconservadora. Por que não me chamou? Eu teria me casado com você. Teríamos evitado tudo o que você deve ter passado.
Eneida respondeu:
– A princípio, pensei em te procurar. O desgosto dos meus pais foi enorme. Mamãe quase morreu de vergonha. Meus irmãos chegaram a se armar e preparar a partida para São Paulo, para forçar-te a casar. Mas abandonaram a ideia, depois do que meu pai falou.
– E o que foi que seu pai disse que foi tão sábio assim? – quis saber Vavá.
Eneida:
– Ele disse: “Um psiquiatra na família já é muito. Dois psiquiatras é demais. Prefiro uma mãe solteira e um neto filho-da-puta”.
José Mário Espínola
Técnico-amador em Psiquiatria do Mais Médicos
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