Quem chega a Veneza de trem, desembarca sempre numa estação lotada, no meio do vai-e-vem ininterrupto de viajantes, de todos os tipos de turistas: ricos, pobres, estudantes, artistas, ciganos.
Todos os setores estão sempre lotados: as plataformas, que eles chamam de binários; as lanchonetes; lojas de souvenir; o birô de informações, distinguido pelo inconfundível i logo acima do balcão. E, como se pode esperar, os sanitários também estão sempre movimentados.
À época em que nós lá estivemos pela primeira vez, não existia automatismo. Os sanitários eram dirigidos por um funcionário.
Abro um parêntese para observar que, na cultura italiana, o título é muito importante. Assim, o mestre é a figura mais respeitada, e venerado como Il Professore. Também os profissionais médicos são distinguidos como Il Dottore.
Aqui no Brasil, o culto à autoridade não é muito diferente. Existem, porém, outros profissionais italianos com poder de mando, que também são muito respeitados, e são sempre chamados de CAPO, Chefe.
Este era o caso do chefe do sanitário da estação ferroviária de Veneza. A figura era felliniana! Um jovem magérrimo, esquálido mesmo, palidez cadavérica, humor cáustico, orelhas pontiagudas, que o faziam parecer com um duende. Mas era o chefe! Ou Il Capo, na cultura nacional. Respeitado,portanto, como a autoridade naquele ambiente.
O nosso capo era uma figura onisciente e onipresente em seu ambiente de trabalho. Controlava tudo: quem entrava, quem saía, quem pagava; e o tempo de cada usuário. Além disso, comandava um pequeno time de jovens e simpáticas faxineiras, que mantinham tudo muito asseado, com uma característica comum: trabalhando sempre muito bem humoradas.
Vestidas com alegres batinhas de fustão, elas adoravam infernizar a vida do Capo! Chegavam por trás, dizendo gracinhas e fazendo-lhe cócegas. Puxavam-lhe as orelhas, realçando o aspecto de personagem de conto de fadas. Quando ele se enfurecia, sentindo-se desmoralizado, elas o abraçavam e o beijavam, aplacando a sua ira.
Eu estava aguardando Ilma e os companheiros de viagem, tomando conta da nossa bagagem, quando tive a felicidade de presenciar tudo isso.
Chegou um jovem turista, com aspecto de britânico, grande mochila às costas, morto de suado. Parecia que vinha à pé desde a Cornualha. Parou diante do quadro de preços. Olhou demoradamente. Pensou. Olhou para o Capo, que a tudo assistia com ar de desconfiança. Coçou o bolso e sacou algum dinheiro. Contou. Olhou para o quadro de preços, novamente. Olhou para o Capo e se decidiu, dirigindo-se até ele.
Pagou determinada quantia (não devia ser muito, pois usou apenas moedas), recebeu uma chave etiquetada com o número 9 e se dirigiu para um dos reservados.
Tudo isso sob o olhar desconfiado do Capo que, apesar da pouca idade, parecia ter uma longa experiência no ofício. Este olhou para o relógio no momento que o gaulês (acho) entrou no sanitário e voltou sua atenção para os outros passageiros.
Mas vez por outra olhava para a cabine 9 e consultava o relógio. O tempo passava e o Capo começou a se inquietar. Uns 15 minutos depois ficou em pé, olhando fixo para a porta do 9, e se sentou. Esperou mais um pouco e consultou novamente o relógio. Levantou-se de um salto: 20 minutos!
Foi até a porta, encostou o ouvido, apurou o olfato, e bateu firmemente, bradando alguma coisa como:
– Aprite! Aprite la porta! Cagare non puó! CAGARE NON PUÓ!! Solo migiare!! Aprite!
Veneza nos deslumbrou com os seus canais, suas gôndolas, suas pontes, seu casario, suas igrejas, seus palácios e toda a sua mística. Lá, desfrutei alguns dos melhores momentos da minha vida. Mas esse episódio hilariante se imiscuiu em nossa lembrança. Assim como sempre nos lembraremos da cidade de Veneza, nunca mais nos esqueceremos de “Il Capo di Cagatore!”
- José Mário Espínola
- Aprendiz de Capo
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