COVID SINE DIE: A VIDA CONTINUA, por Francisco Barreto

Ilustração de Peter Kuper para

Ilustração de Peter Kuper para “A Metamorfose”, de Franz Kafka

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.

Franz Kafka

Aos 17 anos, defrontei-me com Franz Kafka na sua magistral obra ‘A Metamorfose’ e com o pesadelo de Gregor Samsa ao se deparar com um “bicho nocivo e repugnante, um monstruoso inseto”. Sempre conservei abrigado no meu pueril o não entendimento do porquê do kafkiano enredo e de seus atormentados e fantasmagóricos sentimentos. Lembro ter lido com avidez procurando rastros do inseto monstruoso. Busca inútil.

Deparei-me apenas com um personagem comum provido de angústias de uma vida sem grandes desafios, a não ser a difícil convivência com a sua entourage familiar que questionava a sua trajetória parasitária. Solidão e morte compõem a trajetória traçada por Kafka para Gregor Samsa. Cada um de nós já vivenciou pesadelos com repugnantes insetos. E tudo acontece de modo inaudito, e como sempre, há uma ponte para o caos.

Hoje, mais do que nunca acabaram os limites entre sonhos e pesadelos. Sobrevivem intensamente os últimos. Não existem mais os alísios de paz sanitária, apenas sobrevoam sobre nós as cumulus nimbus impregnadas de desastres aleatórios e previsíveis. Somos todos Gregor Samsa com pesadelos constantes. Proteger-se, para os que são caminhantes conscientes de olhos abertos, é uma precária saída. Não elimina as tênues e indomadas fronteiras para os vírus que nos assolam com poderes para destruir as nossas esperanças de vida.

Os sobressaltos deste escuro momento são vividos por todos o tempo inteiro, segundo a segundo. De repente, incompreensivelmente, somos contaminados. O pesadelo chegou e a minha desconfiança se confirmou. A esperada brutalidade me atingiu. Não adiantaram as paliçadas. O intramuros não barrou a voracidade do vírus. O reforço aos cuidados via inúmeros testes e meia dúzia deles atestaram a minha incolumidade até ser detectada a presença do “avassalador e maledetto vírus”.

Sabia que era um alvo gravoso e possível. Era aquela espera presumível, atemporal, e suspeitando sempre o pior na intensidade dos sintomas. Com o exame na mão, não havia mais dúvida. Tinha que mergulhar na averiguação clinica. Dias, horas terrificantes de espera. Nos interstícios, a minha cabeça vagueava celeremente. Filhos, netos, amigos, todos a distância. Ninguém por perto. Melhor assim. Não iria abdicar do enfrentamento. O que tiver que ser, será. Refugiei-me na solidão. Tinha que rastrear providências e definir prioridades. Estas que se repartiram no domínio emocional, material e religioso, reconciliando-me com a fé católica.

Nunca receei enfrentar a morte, medo ao nascer não tive nem o teria para partir. Apenas uma inquietação residual como iria morrer. Esta minha conformação diante da morte se confirma pelos detalhes que já os preparei, de longa data, definidos quando tiver que partir. O local onde deverão ficar as minhas cinzas será na Capela da Virgem de Lourdes, nas Laranjeiras. Preparado está o lócus da urna e precavidamente já esculpi há muito o epitáfio – “Adormeci contrariado. E como uma criança não mais acordei. Sonhos Lindos Findos”. Data em aberto.

À espreita dos sintomas, a pulso fui dominando a minha inquietude, dei um mergulho na minha vida em quase todas as dimensões dela. Sempre soube que vivi momentos de felicidade, tendo feito quase tudo o que me obrigaram o afeto, a consciência e a dignidade possível. Morreria em paz. Aos 73 anos encerraria tudo com tranquilidade. Lamentaria pelos meus familiares e amigos, pela natureza que acobertou o meu silêncio e a paz no alto das Laranjeiras.

Pensei em quase tudo, até nos meus escritos que pude com alegria fazer. Lamentava, e muito, confessava sempre aos meus alunos, que não gostaria ter vivido tanto para ter que presenciar e me indignar com tanta brutalidade e indecência humana e política dos nossos dias atuais no Brasil. Sobrevivi. E, feliz, hoje exibo meu coração batendo forte. As únicas inclemências que me subsistem provêm da rudeza e da brutalidade que se espraiaram pela sociedade brasileira. O desastre do Covid ficou no meio do caminho, tributo a um crédito divino à Graça alcançada.

O meu epitáfio aguardará, sine die.

  • • Francisco Barreto é economista e Professor da UFPB
É BOM ESCLARECER
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Uma resposta para COVID SINE DIE: A VIDA CONTINUA, por Francisco Barreto

  1. JEAN KLEBER SANTOS DA SILVA escreveu:

    Lindo texto meu nobre amigo Barreto me fez lembrar de uma pessoa especial para nós.