Querido Dom Helder,
Tudo em paz por aí?
Permita-me iniciar essa missiva pedindo-lhe um favor: fale com Deus em nome do povo daqui. É que um grande mal se abateu sobre todos nós. Tenho dó só de lembrar, viu?
A situação não está fácil, são doentes aos milhares e mortos às centenas. A gente tem tentado falar com Ele, sabe… Acho que nunca se rezou tanto, mas parece que Ele não escuta mais. Não sei!
Talvez não estejamos pedindo direito. Se bem que, cá pra nós, Ele não suporta o alarido dessa gente que pensa saber rezar. E como Ele responde com silêncio e brisa, essa massa não entende. E reclama.
Ah, Dom Helder, fala com Ele, já que estás aí tão pertinho do seu divino ouvido. Usa teu jeitinho de poeta, pois dizem os mais chegados que Ele adora poesia.
Vai devagarinho, com teu sorriso leve, teus olhos cansados, fechados em oração, segurando tua cruz peitoral e acariciando seu rosto inimaginável, e digas de repente, mas docemente: “Deus, Pai Amoroso, por favor, voltes a amar”.
E com teus gestos grandiosos, dignos de uma verdadeira Liturgia de alma circense, dá-lhe um aconchegante abraço. Nessa hora, amigo, aproveita e lembra como Ele era contigo nos dias do teu Recife, quando andava ao teu lado, em favor daquela gente sofrida, pelos mangues, esquinas e meretrícios que só vocês dois tinham coragem de andar.
Ah, Dom, se o fizeres, Ele há de amolecer o coração, e como chuva inesperada, se derramará em salvação sobre seu povo. Se tu pedires, Ele há de curar os doentes, e mais: há de sarar até as mentes dos imbecis, daqueles que ao invés de chorar a ceifa de seus mortos, perdem-se recontando seus dinheiros carcomidos pela avareza.
Raça sem juízo, Dom. Mas pede juízo pra esses também. Se ainda me permites, Padre José, lembra de tuas idas e vindas às favelas, hospitais e presídios? Então. retoma tua vocação de caminhante e vai rumo ao coração do Compassivo, e pede-lhe, suplicante, que Ele escute nossas preces de peregrinos também.
E já que agora és quase santo de altar (mesmo que eu ache que não o queiras), afina tua voz e fala com o Senhor. Pois se Ele te ouviu nos tempos em que ela ecoava em favor da justiça no mundo, como não te ouvirá agora, que estás tão pertinho d’Ele, Justiça Plena, no céu?
Te peço, animador da fertilidade nos desertos, que te levantes na madrugada de tua eternidade e rogueis ao Misericordioso que Ele ouça de novo seu povo exilado.
Desde já te agradeço e te faço uma promessa: quando eu for lá por Olinda, assim que der, e chegar às portas da Igreja da Sé, rezarei dançando ao som de frevo e maracatu, ensaiando, em teu nome, os passos de uma era nova.
Ah! já ia esquecendo, escritor silencioso. Como sei que vai sempre gente nova por aí, te mandarei um agradinho: um caderno com linhas, bem novinho, e uma caneta daquelas, pra escreveres teus poemas insones à Virgem Maria que os recitarás depois, eu sei, pelas praças da Nazaré celestial.
Pronto, seresteiro da paz, era só isso que eu queria te pedir. Fica em paz, místico perigoso, mas não cales tua voz fininha de profeta teimoso que é pra ver se o Eterno se convence que sem Ele não haverá dia e luz para estas criaturas suas.
Um abraço em prece desta tua irmã e amiga, cansada, mas esperançosa, Terra.
Marcelo Gomes de Barros
- • Monge beneditino, o autor foi secretário de Dom Hélder
- • Carta-prece escrita em 1º de abril de 2020, quando o Brasil ainda contava doentes aos milhares e mortes às centenas; hoje, os doentes são milhões e os mortos, milhares.
- • Cópia da carta-prece de Marcelo Barros a Dom Hélder foi cedida ao blog pelo Professor Francisco Barreto
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