Plantada pelo vento de Iansã, a gameleira resistiu e viveu seu advento, se enraizando em solo adverso. Fincou-se no muro do terreiro de um antigo casarão, do histórico bairro olindense de Santa Tereza. Árvore de Terreiro de Santo, forjou o seu tronco, a ele integrando diversos elementos de ferro, abandonados junto ao muro, que ela abraçou com suas raízes aéreas, e com os dois se fundiu num só tronco. E, nesse rito de luta pela vida, se consagrou aos dois orixás, a Iansã, que a plantou, e Xangô, que a cultivou. E assim aquilombou-se naquele verdejante terreiro de Oxalá. Onde Iansã abria clarões de sol e luar, raios de luz, a riscar o chão assombrado por sua exuberante copa, domínio de Xangô, o santo guerreiro.
Assim, a majestosa gameleira assumiu seu domínio naquele quintal de Santa Tereza. Santa do nome de duas dissemelhantes mulheres, donas daquele histórico casarão. Uma Tereza branca, de família tradicional, que o vendeu a outra Tereza negra, de nome forjado no trabalho como professora. Uma que defendera o destino da casa como moradia de família, a outra que abria seu quintal para acolher os Erês da Ilha do Maruim. A meninada, que lá ia brincar com seus iguais, os meninos da casa, e colher mangas, goiabas, acerolas, pitangas, azeitonas, cocos, tamarindos e abacates, pra matar a fome de alimento, brinquedos e brincadeiras, em libertária relação, com a materna natureza. E ainda levar pra suas casas, além dos frutos colhidos, as flores de Colônia e as cascas e frutos da Aroeira pras meisinhas das avós.
Nesse contexto da Refazenda de Gil, reconstruída, (“Oh! Gameleira acataremos o teu ato/ Nós também somos do mato/ Como o pato e o leão…”), vivia e reinava a leônica e intocável Gameleira. Ninguém nela subia nem queria podar a sua frondosa copa, para não ser atingido pela fúria do seu leite causticante, que queimava, qual raio de Iansã e cortava qual espada de Xangô. Assim, protegida por seus santos, ela se transformara em morada de pássaros, pouso de borboletas e seus casulos e de outros tantos insetos, como as abelhas arapuás, convidadas pela floração das trepadeiras, por sua copa acolhida. Sua discreta flora e pequeninos frutos, eram manjares para os morcegos. O seu imenso tronco era esconderijo de lagartos, lagartixas, à caça de besouros e mosquitos. Até de uma família de timbus, ali aninhava as suas crias. A sua natureza compunha o sentido da sua existência, e, em troca, era musicada por diferentes gorjeios da passarada e cantada em verso e prosa pela preta Tereza, a bendizer poeticamente o que ela era e representava. Pelo sentido de natureza integrada ao divino e pelo feliz bem viver gerado por seu existir.
Mas um dia ela se foi, sem nenhum rito de passagem, sem pedir licença pra se ausentar e levar a sua alma pra outro lugar. Vagando, ficou o seu espírito, sem pouso, qual uma alma penada. Penando… Anima sem ânimo… Possivelmente, não suportara a transformação do seu espaço de existência. Perdera o sentido da sua essência, a sua divindade. Mesmo aterrada no mesmo terreiro, agora transformado em um quintal de animação, de brinquedos e brincadeiras, de encontros e festejos contratados. Desconhecida e não reconhecida como entidade sagrada, sem comunicação, sem reverência nem pedido de proteção. Partira, partida ao meio em uma noite de temporal. Em tempo, sua mãe Iansã, atraída por seu pai Xangô, veio lhe arrebatar a alma e tudo transformar. Em estrondoso trovão, o raio de Oyá, a iluminar o terreiro, penetra em sua densa copa, atraída pelos ferros integrados ao seu tronco, e qual a espada de Xangô a divide ao meio, queimando as suas entranhas e expondo tudo que ela integrara e representara em vida.
Sua morte destroçou espaços e tempos, conteúdos e continente. Destruindo os limites de dois quintais, espaços onde em vida ocupava altaneira, e agora, em morte, a espalhar seu lenho e todos os elementos que a compunham no encharcado chão. Recompondo a origem daquela terra de manguezal, morada das vidas que ela abrigava, como os caranguejos de andada e guaiamuns, que em locas ali ainda habitavam e pelos meninos eram pescados com suas armadilhas de latada, no Tupi, arataca. Mas agora, ali jazia a histórica Gameleira, naquela terra ensopada pela chuva caída, em copioso pranto, a prantear a sua vida finda.
Finda uma vida, quantas tantas outras dela podem renascer? Como na Refazenda de Gil… “Aguardaremos/Brincaremos no regato/Até que nos tragam frutos/Teu amor, teu coração…”, a Gameleira, espalhada pelo chão, trocou seu tronco por toras ainda pulsantes de vida, a escorrer sua branca seiva, branco leite a nutrir o coração da mãe terra. Chora a Gameleira pela terra que a acolhera e pela terra originária de onde viera.
- (Árvore milenar de origem sagrada e mitológica tanto na África quanto na Índia e Roma, a Ficus doliária Mart é popularmente denominada gameleira por ter um lenho macio, próprio para a confecção de artefatos como as gamelas. Tanto esse artefato quanto a copa dessa árvore sagrada, chamada de Iròkò, são elementos de uso litúrgico e terapêutico, pelo povo de Candomblé, Gêge-Nagô. Nas gamelas são colocadas as oferendas aos orixás, dispostas embaixo da copa do Iròkò, planta-deus do terreiro. Daí a sua morte, em um terreiro, requer seu replantio por um pai ou mãe de santo nagô).
Assim, a Gameleira, in memoriam, como a ancestralidade da preta Tereza, expatriadas e desmamadas da Mãe África, são por essas pretas letras homenageadas. Renascidas em sua história. Recriada a sua memória. A quebrar muros e correntes. A gerar novas sementes. Libertas quæ sera tamen.
- Tereza de Santa Tereza de Olinda
- Em Paudalho, Pernambuco, julho de 2020
• Tereza Barros é Educadora
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Uma resposta para GAMELEIRA, por Tereza Barros
Maravilha de texto. Como tudo que a poeta educadora Tereza Barros faz.