Ao tomar conhecimento da flexibilização da quarentena, meus sapatos se animaram. Um mundo de possibilidades voltou a se abrir para eles. Finalmente se encontrariam novamente com as tão queridas calçadas, com o concreto, com as rampas, degraus e ladrilhos, com outras cerâmicas além do chão dessa casa enfadonha onde estamos todos enclausurados há 4 meses.
As sandálias organizaram um Plano de Reabertura com detalhado rodízio em que elas próprias, os tênis, as alpercatas, as botas, os sapatos baixos e altos ganhariam a liberdade, dois pares por dia. As chinelas havaianas ficaram de fora e quiseram protestar, mas no fim reconheceram seus privilégios de livre trânsito pela casa e até mesmo uma ida ou outra à farmácia e ao banco.
Qual não foi a revolta quando lhes comuniquei que meus pés ficariam guardados ainda por um bom tempo! Recusaram meus argumentos, irredutíveis. Às favas com o isolamento social, gritaram alto. “Lugar de calçado é onde ele quiser”, “liberdade quando? Já!”, “A rua é nossa casa!” e outras palavras de ordem tomaram a sapateira. Organizados com os cachorros, armaram um Plano que me fez pisar em cocô por três vezes consecutivas numa manhã só.
As coisas estavam ficando fora de controle, e precisei entrar em acordo com a sapatada. Tiraram uma comissão para se reunir comigo, composta da sapatilha preferida no dia a dia do trabalho, o saltinho que arrasa nas festas e o tênis de corrida – as havaianas foram vetadas da comissão, por receio de golpe.
Ainda bem que a negociação foi um sucesso: duas voltas no quarteirão por dia. Uma pela manhã bem cedo, em companhia dos cachorros, outra à tardinha, na direção inversa. A paz, então, voltou a reinar na sapateira.
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Uma resposta para A REVOLTA DOS SAPATOS, por Ana Lia Almeida
Que você crônica encantadora! Deliciosa! Um deleite para os nossos olhos.
A autora escreve leve, macio. Me fez lembrar George Orwel.
Parabéns, Ana Lia, que estilo!