NÃO ME TOCs (III), por José Mário Espínola

Antiga sede do Clube Cabo Branco, no Centro de João Pessoa (Foto: Acervo Mirabeau Dias)

No amplo espectro de graduação dos Transtornos Obsessivos Compulsivos (TOC) encontramos alguns que são entendidos como simples mania. Os outros são doidos, mesmo!

A calçada do Esporte Clube Cabo Branco, no Centro Histórico de João Pessoa, era um desfile de doidos. Não só os de fora, mas também os de dentro. Tinha Joãozinho, um jovem doido que trabalhava na Farmácia Teixeira e só vivia na calçada do clube. Era engraçadíssimo, pois mexia com os transeuntes, sempre sério, como se não tivesse sido ele.

Mas, para mim, o grande destaque era Macaxeira. Este era um pobre doido (paupérrimo, mesmo!) que, quando estava solto, percorria a cidade pelo leito das ruas, dirigindo a toda a velocidade um automóvel imaginário. Mas era bom motorista: obedecia ao Código de Trânsito melhor que a maioria dos motoristas da época. Ao dobrar “fazia” sinaleira. Buzinava, rangia os “freios,” cantava os “pneus!” E ele também gritava as horas, correndo, que via num relógio também imaginário.

Seu sonho de consumo (descobri!) não era ter um carro de verdade. Era, isso sim, assistir um filme COMPLETO no Cine Rex! Pois ele era cinemaníaco, literalmente. Coitado, não o deixavam entrar só porque era doido. Acho que Macaxeira ficou doido porque nunca lhe permitiram assistir a um filme até o fim…

Mas às vezes ele conseguia burlar Seu Etelvino, o porteiro, e Seu Pedro, o segurança, e entrava de fininho, já iniciada a sessão. O problema é que ele não suportava a emoção e começava a vibrar alto, se agitava muito, pulava na cadeira, até que Seu Pedro acendia as luzes (cruzes!) e chegava para botar Macaxeira pra fora. Ele, no entanto, não saia fácil: pegava seu “carro,” passava primeira e saía rasgando os pneus, dirigindo pelos corredores do cinema com Seu Pedro atrás, para delírio e apupos da platéia!

O Cine Rex funcionava como um apêndice do Clube Cabo Branco. Era comum frequentarmos um e outro no mesmo dia, desde que tivesse algum filme que valesse a pena.

Antigo Cine Rex (Foto: Acervo Mirabeau Dias)

Nosso pai, desembargador Chico Espínola, além de frequentador assíduo do xadrez do Cabo Branco era louco por cinema. Ele jogava até a hora da sessão das 6 e meia. Quando tinha um bom filme ele atravessava a rua e assistia no Rex.

Certa ocasião, Silvino, meu irmão, queria assistir um filme famoso, Sem Lei e Sem Alma, que contava a história do Duelo de OK Corral. O filme era censura 14 anos, e faltavam poucas semanas para ele completar.

Silvino resolveu tentar entrar na última sessão, das 8 e meia, quando a fiscalização era mais frouxa e ele aproveitaria o movimento da saída da sessão anterior. E quase conseguiu, mas deu azar: quando ele foi entrando Papai ia saindo e falou para o porteiro:

– Esse daí não tem 14, não – disse, sorrindo.

E o porteiro barrou Silvino, que foi para casa ouvindo Papai dizer:

– O filme não é lá essas coisas, não.

O Clube Cabo Branco também tinha a sua fauna particular. Não eram propriamente “doidos” (embora alguns se destacassem e deixassem dúvidas). Digamos que fossem “excêntricos” ou tinham manias peculiares. Ou que fossem portadores de um defeito congênito, a agenesia do juízo, como diria a Dra. Marluce.

Cada ambiente do clube tinha pelo menos uma figura que pontificava. Servindo o cafezinho, por exemplo, havia Ferreira, excelente pessoa que se destacava pelo humor fino e malicioso. Gostava de fazer jogos de palavras. Dizia, só pra provocar:

– Vou à padaria. Vou ver se acho pão. Mas acho que lá só tem pão baliza.

A molecada adorava, caía na gargalhada.

No xadrez havia figuras histriônicas, como Dr. Arnaldo Tavares, Flávio Xaréu, Arnaldo Carneiro Leão. Mas o mais expressivo de todos era Ivo Bichara. Ele foi o primeiro beatnik da Paraíba; depois tornou-se hippie, até o fim da sua vida. Ivo era exímio enxadrista, especialista na clássica abertura Índia do Rei. Ivo jogava melhor do que “girava”,

Em torno da mesa ficavam os pitaqueiros. O pior deles era Dr. Herul. Ele não só dava o pitaco, como não admitia que não fosse obedecido, chegando até a agarrar a mão do jogador, para obrigá-lo a fazer o lance que pitacava.

Já seu Lyra, do Foto Lyra (vizinho ao Rex), era mais discreto, sonso. Ele adorava provocar Dr. Arnaldo Tavares, dando corda. O desembargador Chico Espínola gostava muito de jogar com Romero Peixoto. Concentrado no lance, distraído segurava o cigarro Minister entre os dedos, que se consumia totalmente até a cinza cair sobre o tabuleiro.

No gamão, o “Clássico dos Clássicos” era Seu Isaías versus desembargador Paulo Bezerril. Era muito engraçado assistir o profissionalismo e a seriedade de Seu Isaías serem avacalhados pelo humor mordaz de Dr. Paulo. O clube parava pra ver o duelo, a platéia anarquista em torno, uma verdadeira loucura dando “cordas” aos dois, liderada por Xexéu, Gratu e Concriz.

Já o baralho, no primeiro andar, era repleto de histórias e personagens. Lá aconteciam tragédias consequentes às apostas. Muitas fortunas trocaram de mãos dentro dos seus reservados.

Uma das cenas mais espetaculares aconteceu numa sexta-feira santa. Quando o Senhor Morto passava, carregado no andor, uma determinada figura da sociedade paraibana, Pedro Cordeiro, até então muito rico, tinha acabado de perder uma verdadeira fortuna. Naquele exato momento atirou todo o baralho pela janela. Aconteceu, então, uma chuva de cartas de baralho sobre o cortejo da procissão. Um escândalo! Dizem as línguas mais exageradas que uma Rainha de Copas posou entre os espinhos da coroa.

Hoje em dia ainda devem existir doidos na cidade. Porém, embora provavelmente mais numerosos, são mais discretos. Ou menos decantados. Ou mesmo mais “normais!”.

***

Relembrando tudo isso, não consigo deixar de escapar um suspiro: é uma pena que a nossa cidade tenha crescido tanto.

  • • José Mário Espínola é Médico e Cronista
É BOM ESCLARECER
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7 Respostas para NÃO ME TOCs (III), por José Mário Espínola

  1. Afrânio melo escreveu:

    Voltar ao passado é uma atividade muito boa. Conheci todos esses personagens. Como foi bom recordar! Parabéns Zé Mário.

  2. Guy Joseph escreveu:

    Zé Mário, a Cidade não perdeu os seus doidos. O fato é que, os doidos de ontem, se confundem com a modernidade dos doidos de hoje!… Parabéns pela crônica!

  3. Gratuliano Brito escreveu:

    Brilhante Ze.Parabens.

  4. Peço desculpas ao amigo Mirabeau Dias, de cujo acervo emprestou as fotografias que ilustram esta crônica.
    Muito obrigado

    • Rubens Nóbrega escreveu:

      O editor do blog subscreve o pedido de desculpas ao Professor Mirabeau Dias, informando, contudo, ter corrigido o crédito de procedência das fotografias que ilustram a excelente crônica de José Mário Espínola.

  5. Lauredo Ventura Bandeira escreveu:

    Gostei muito da história do José Mário…. Fez lembrar muita coisa que acontecia na sede do Cabo Branco. Eu era muito jovem mas me trouxe a minha adolescência. Gostava de ir todas as tardes na sede do clube ( ainda era de menor) depois fui estudar medicina em Recife.
    Minha mãe tinha uma amizade muito grande com sua família e eu fiz uma amizade muito boa com o Silvino. Gostei muito.
    Um grande abraço

  6. ROMERO ANTONIO DE MOURA LEITE escreveu:

    Mais uma excelente crônica do Zé Mário.