Os velhos carnavais persistiram com todo o seu glamour em João Pessoa, até o final da década de sessenta: desfile de blocos e de foliões na Lagoa (o corso); bailes animadíssimos nos clubes, especialmente os da elite pessoense, Astrea e Cabo Branco.Vivia-se em uma época onde prevalecia a moral tradicional.
No Pio X e nas Lourdinas, colégios religiosos dos mais remediados, rezava-se todos os dias. Esta moral inspirava-se no Catecismo da Doutrina Cristã, de 1951, prescrito pelo Papa Pio X, em 1953, para uso da juventude. Nele está dito que merece-se o inferno (o sofrimento, por toda a eternidade) ainda que seja por um só pecado mortal.
Nesse contexto, os carnavais propiciavam à juventude, em João Pessoa e alhures, uma válvula de escape, ainda que limitada, da rigidez moral dominante. Neles se podia desfrutar de momentos especiais de prazer, pelo que têm de contagiante a sua música e seu charme. E, sobretudo, por ensejarem mais liberdade para a aproximação com o sexo oposto, driblando-se, em meio aos confetes, serpentinas e lança-perfumes, a rigorosa vigilância dos pais.
Contudo, nessa época de ouro dos carnavais de clube, a ampliação dos espaços de liberdade tinha limite no caráter familiar, e de classe, desses carnavais. Pais, filhos e namorados, mesmo de maior idade, iam “brincar” juntos, sob a vigilância dos primeiros. Muitas vezes, o faziam na próprias casas dos foliões, que eram visitadas por animados blocos, como o inesquecível Camisa Listrada.
Devemos sublinhar o elo entre essa moral rígida e o caráter pré-capitalista da economia vigente à época, especialmente em regiões como o Nordeste, ainda não totalmente inserida no mercado. Por exemplo, alguns clientes do estabelecimento comercial de meu pai, o Studio Lyra, não pagavam pelos seus serviços fotográficos ou pelos seus trabalhos artísticos, como a pintura de suas esposas, ilustres damas da sociedade. Em contrapartida, meu pai também fazia o mesmo, em relação, sobretudo, a médicos da família.
Destarte, fica evidenciado que a moral que cimentava os laços familiares não poderia também deixar de estar presente nas manifestações culturais, como o Carnaval. Da mesma forma, a modernização capitalista acarretaria mudanças nos conceitos morais vigentes. Com efeito, já no remoto ano de 1848, Marx apontava para mudanças que ocorriam nesse âmbito, destacando que “a burguesia arrancou da relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu- a uma simples relação de dinheiro”.
Modernamente, até carnavais de rua expressam, em blocos fechados, a separação, por força do dinheiro, entre classes. E não somente carnavais, mas diversos outros entretenimentos, como o Big Brother, cuja trama tem como único móvel polpuda recompensa financeira, ilustram exemplarmente essa redução das relações humanas “ao vil metal”.
Vê-se que as transformações na economia repercutem diretamente no conteúdo ético das relações sociais e na práxis que as concretiza, tornando preponderante o individualismo, o consumismo e a busca ostensiva de status e de riqueza, estimulada , inclusive, por influentes confissões religiosas, como as igrejas evangélicas.
Mas a modernidade capitalista produz, contraditoriamente, condições para um salto qualitativo no campo da moral, quebrando a rigidez dos costumes nos carnavais, e com ela, o seu reduto, os clubes sociais. Estes são substituídos pelos de rua, sendo os mais tradicionais os de Olinda e Salvador e os mais recentes, os de São Paulo e Belo Horizonte, cada vez mais impessoais e massificados.
Consoante famoso trecho da mais popular obra de Marx, o Manifesto Comunista, sob a égide do capital “tudo que é sólido se dissolve no ar e tudo que é sagrado é profanado”. Destarte, nenhuma hegemonia, nem mesmo a do Capital, é absoluta. Atualmente, florescem, em muitos carnavais práticas e valores que não se moldam por formas de relacionamento ditadas pelo mercado, prenunciando o advento de uma sociedade mais solidária que poderá, mais adiante, substituir as hodiernas, governadas pelo dinheiro.
Nas cidades supramencionadas, revigoram-se antigos festejos de Momo, porém escoimados do moralismo que os caracterizavam. Neles se resgatam relações mais livres e afetos mais verdadeiros, ensejando, sobretudo nos carnavais de bairro, que os foliões se divirtam e se confraternizem, sem o tacão da moralidade repressiva nem dos valores do mercado. São espaços onde o exercício da autonomia individual se combina com relações espontâneas de amizade, e também amorosas, não limitadas apenas à busca do prazer.
Mas há exemplos de recentes carnavais onde os valores contra-hegemônicos vão além: alcançam dimensão social e política, transformando-se em palco de denúncias contra injustiças e cobrando a sua reparação. Desde a escravatura, os senhores de escravos sempre procuraram colocar limites a essa festa popular. Gil e Caetano compreenderam plenamente a sua dimensão libertária ao exaltar, em uma das suas composições, “o samba, pai do prazer, filho da dor, o grande poder transformador”. Disso é exemplo o samba enredo da Mangueira, campeã do carnaval carioca de 2019. Prestando comovente homenagem a Marielle, a letra do samba lembra que “tem sangue retinto pisado atrás do retrato emoldurado”.
Escolhendo como tema de seu desfile a denúncia dos falsos heróis da nacionalidade, exaltados na literatura oficial e na maioria dos livros didáticos, a Mangueira propiciou uma magnífica demonstração de contra-hegemonia, traduzida na íntima relação entre protesto, carnaval e democracia. Nesse mesmo diapasão, em 2020, o enredo dessa escola contou a história de um Jesus de “rosto negro, sangue índio e corpo de mulher”. Criticando, sem dizer o nome, Bolsonaro, o enredo em questão conclui dizendo que “Não tem futuro sem partilha, nem existe Messias de arma na mão”.
Carnavais, especialmente em momentos de crise, ensejam protestos que se assemelham a atos de desobediência civil, de insubordinação e de resistência. Quanto maior o descompasso entre líderes institucionais e os anseios do homem comum, mais os cidadãos – no caso, os foliões e seus blocos – encontram nos festejos populares espaço para o exercício da liberdade de crítica, sem a censura dos governantes autoritários e de seus asseclas.
- • Rubens Pinto Lyra é Doutor em Ciência Política, Professor Emérito da UFPB
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