Na foto, Chico Buarque em Lisboa (1967) recebendo homenagem da Banda da Carris. É obra do venerado fotógrafo português Eduardo Gageiro, publicada originalmente no matutino lisboeta Século Ilustrado (nº 1530). Foi pescada no blog que traz o sugestivo título ‘Dias que Voam’. Deve ser por conta da esperança geral de que passe ligeiro o tempo presente com seus ódios e fogos incinerando o nosso patrimônio afetivo e ambiental.
Do jeito que vai, o jeito seria mesmo ver a banda passar, cantando coisas de amor. Aqui, já entra o conselho que Carlos Drummond de Andrade nos deu em 14 de outubro de 1966, ano em que Chico venceu com sua antológica ‘A banda’ o II Festival da Música Popular Brasileira (TV Record). Mais do que oportuno, então, o conselho foi dado em crônica (‘Nota sobre A banda’) publicada no diário carioca Correio da Manhã. Com muito gosto, o blog reproduz adiante o belíssimo texto do imenso poeta mineiro.
NOTA SOBRE A BANDA
por Carlos Drummond de Andrade
O jeito, no momento, é ver a banda passar, cantando coisas de amor. Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir para a frente. Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando.
A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir a janela, abrir não, escancará-la, é subir ao terraço como fez o velho que era fraco mas subiu assim mesmo, é correr à rua no rastro da meninada, e ver e ouvir a banda que passa. Viva a música, viva o sopro de amor que a música e banda vem trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, na falta de ar.
A felicidade geral com que foi recebida essa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a idéia de como andávamos precisando de amor. Pois a banda não vem entoando marchas militares, dobrados de guerra. Não convida a matar o inimigo, ela não tem inimigos, nem a festejar com uma pirâmide de camélias e discursos as conquistas da violência. Esta banda é de amor, prefere rasgar corações, na receita do sábio maestro Anacleto Medeiros, fazendo penetrar neles o fogo que arde sem se ver, o contentamento descontente, a dor que desatina sem doer, abrindo a ferida que dói e não se sente, como explicou um velho e imortal especialista português nessas matérias cordiais.
Meu partido está tomado. Não da Arena nem do MDB, sou desse partido congregacional e superior às classificações de emergência, que encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução. Ele não obedece a cálculos da conveniência momentânea, não admite cassações nem acomodações para evitá-las, e principalmente não é um partido, mas o desejo, a vontade de compreender pelo amor, e de amar pela compreensão.
Se uma banda sozinha faz a cidade toda se enfeitar e provoca até o aparecimento da lua cheia no céu confuso e soturno, crivado de signos ameaçadores, é porque há uma beleza generosa e solidária na banda, há uma indicação clara para todos os que têm responsabilidade de mandar e os que são mandados, os que estão contando dinheiro e os que não o têm para contar e muito menos para gastar, os espertos e os zangados, os vingadores e os ressentidos, os ambiciosos e todos, mas todos os etcéteras que eu poderia alinhar aqui se dispusesse da página inteira.
Coisas de amor são finezas que se oferecem a qualquer um que saiba cultivá-las, distribuí-las, começando por querer que elas floresçam. E não se limitam ao jardinzinho particular de afetos que cobre a área de nossa vida particular: abrange terreno infinito, nas relações humanas, no país como entidade social carente de amor, no universo-mundo onde a voz do Papa soa como uma trompa longínqua, chamando o velho fraco, a mocinha feia, o homem sério, o faroleiro… todos que viram a banda passar, e por uns minutos se sentiram melhores. E se o que era doce acabou, depois que a banda passou, que venha outra banda, Chico, e que nunca uma banda como essa deixe de musicalizar a alma da gente.
VEJA E OUÇA A BANDA, EM VÍDEO
- Nota do Editor – Agradeço ao advogado Jairo Oliveira, de Campina Grande, por esta publicação. Dele capturei (no grupo dos Juristas pela Democracia) a lembrança de um escrito – embora cinquentão – com impressionante atualidade. Veste feito luva uma das poucas alternativas que resta a quem se queda resignado e impotente diante do que vê e fazem no Brasil de agora.
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