O MEDO À LIBERDADE (IV), por Rubens Pinto Lyra

Imagem do documentário ‘O espelho do mártires’ disponível em santainquisicaocatolicablogspot

“Os que não se lembram do passado são condenados a revivê-lo” (Santayana).

Avançamos, nas sociedades democráticas, na conquista das liberdades individuais, pois nelas o Estado não pode tolher ou dificultar o seu exercício. Nem por isso os indivíduos alcançaram, como muitos pensam, a sua efetiva autonomia.

Seu comportamento continua sujeito à influência determinante de condicionamentos de natureza psicológica, que se traduzem na interiorização de exigências externas ao seu eu. Elas tendem a conformá-los ao pensamento, estilo e modo de vida dominante, alienando-os de si e dos outros, ao privá-los de raciocinar e se comportar de forma autônoma.

Destarte, o crescimento genuíno do ego é tolhido, lhes sendo acrescentado um pseudo-ego, que consiste essencialmente na incorporação de padrões de pensar e de sentir impostos à sua consciência. Em outras palavras, o individualismo vigente funciona como um invólucro, asfixiando a afirmação do individualismo que liberta: aquele que permite sermos originais, raciocinarmos livremente, e, sobretudo, exteriorizarmos sem censura o nosso pensamento.

Esmagados por esse individualismo pervertido, reina soberana o que Fromm chama de autoridade anônima, disfarçada no senso comum, nos “comportamentos normais”, em suma, em posicionamentos moldados pela “opinião pública”. Aliás, alguns deles influenciaram fortemente as eleições de outubro de 2018, como o mito de que a corrupção seria o problema número um do Brasil ou que “o clamor popular” deve determinar a atuação dos poderes de Estado, como o Judiciário.

Para a prevalência de tais concepções, existe o que os marxistas denominam aparelhos ideológicos, como o monopólio midiático televisivo existente no Brasil. Eles inculcaram nos indivíduos, amparados na quase exclusividade desse monopólio na difusão do pensamento e da cultura – mediante a repetição exaustiva de suas “verdades” – a hostilidade à política, como se dela não dependessem todos os aspectos da vida social.

O entorpecimento da capacidade crítica, derivado desse processo, levou cidadãos a desprezarem o voto como instrumento de escolha entre distintos projetos de sociedade. Não obstante a sua subsunção a uma visão conformista da política, eles supõem se guiar por opiniões próprias, quando, regra geral, seguem as que são impostas de fora. Mesmo quando as têm, preferem não exteriorizá-las, pois tal procedimento pode marginalizá-los, deixando inseguros das consequências advindas de sua demonstração de autonomia.

Por isso, eventos sociais, como reuniões de família, comemorações natalinas, reuniões de colegas e outras confraternizações desse gênero são, em geral, marcadas pela superficialidade, ou mesmo pela hipocrisia. Seus protagonistas preferem não arriscar as consequências do exercício da liberdade crítica – a exemplo da discussão de suas preferências eleitorais – que poderia causar rupturas difíceis de suportar.

Também evitam a exteriorização franca de opiniões sobre as dificuldades nas suas relações pessoais, quando somente ela é que pode ensejar o surgimento de laços baseados na amizade autêntica, sinceridade e afeto. A vitória da liberdade, ao triunfar sobre os constrangimentos psicológicos e deformações de comportamento que a cerceiam, sobrepujando relações vazias, dominadas pela formalidade, só será exequível se a democracia evoluir para uma sociedade em que o livre desabrochar das potencialidades do indivíduo seja a meta e a finalidade da vida social.

Na visão de Erich Fromm, uma sociedade “em que a vida não careça de nenhuma justificativa dada pelo sucesso ou qualquer outra coisa, em que o indivíduo não seja subordinado ou manipulado por qualquer força alheia, que seja o Estado, o sistema econômico ou interesses materiais espúrios; uma sociedade em que os ideais do homem não se limitem á interiorização de exigências externas, mas que provenham realmente dele e exprimam os objetivos oriundos de seu próprio ego”.

  • Rubens Pinto Lyra é Professor Emérito da UFPB
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