É fato: estamos vivendo no Brasil uma profunda era de retrocessos, num cenário em que pensamentos toscos, rasteiros e obscurantistas ganham autoridade e são utilizados como contraponto à ciência. Pessoas absurdamente despreparadas adquirem credibilidade para rediscutir a história e desdenhar de universidades, de professores e de figuras de comprovado reconhecimento intelectual, inclusive, mundialmente.
A paixão política dominou os sentimentos e a forma de pensar, cegando e corroendo a capacidade crítica das pessoas, tornado-as presas fáceis da manipulação do poder simbólico. Assim, qualquer coisa empurrada no contexto de afloramento político, por mais absurda que ela seja, é imediatamente absorvida, aceita e defendida com unhas e dentes.
É nesse cenário que surge o projeto de lei Escola sem Partido, cujo pano de fundo está a efetivação dos interesses privados da educação a distância, a perpetuação dos interesses conservadores da classe dominante e a desmoralização completa da ciência nos pontos que não interessam ao projeto de dominação, manipulação e adestramento.
Esse projeto de adestramento, dominação e manipulação, que tem a grande mídia como instrumento central, se vê ameaçado justamente pela liberdade de ensino e pesquisa nas universidades, bem como pelos professores, impulsionadores do contraponto, do pensamento crítico e que podem mostrar aos estudantes outros pontos de vista não fornecidos pelo poder simbólico e pela própria família.
É o policiamento estatal nas atividades docentes. Não é sem razão que o movimento Escola sem Partido utiliza como marco teórico o livro de um autor chamado Armindo Moreira, intitulado Professor não é educador.
O projeto guarda enormes armadilhas em seus termos, com o objetivo de tumultuar e subtrair das escolas e das universidades toda a capacidade crítica e todas as dimensões da discussão política, como se a política não estivesse presente em todas as estaturas sociais.
Mas, quais são as armadilhas?
Para atingir todos esses objetivos, a estratégia central do projeto “Escola sem Partido” é empregar termos amplos e vagos para identificar a conduta proibida do professor, como, por exemplo, “prática de doutrinação política e ideológica”, “exprimir opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas”, “contrariar as convicções morais e religiosas dos pais”, “incentivar a participação em passeatas”, “promover seus próprios interesses” e “exigência de neutralidade”.
Ninguém jamais vai conseguir aferir ao certo quais condutas se encaixam nessas expressões.
O resultado é a completa desestabilização da vida escolar e acadêmica, uma vez que se incentiva e concede-se poder ao aluno para processar administrativamente o professor por qualquer conteúdo dado em sala de aula, seja em matérias como português, geografia, história, filosofia ou até mesmo ciências físicas ou biológicas, uma vez que em todas elas pode-se extrair pontos veiculadores de opiniões políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas.
Sabe-se que é muito difícil não enxergar conteúdos políticos e ideológicos em discussões como a assinatura da Lei Áurea, a independência do Brasil, a ditadura civil-militar no Brasil, o evolucionismo darwinista, o crescimento econômico no governo Lula, o marxismo, o liberalismo, a astronomia de Copérnico e Galileu e livros de autores, como José Saramago, Graciliano Ramos e Paulo Freire. Todos esses temas, assim como outra infinidade de assuntos, poderiam dar ensejo a confusões e processos administrativos contra professores. Pergunta-se: como lecionar sem correr o risco de confusão? É justamente por isso que o referido projeto coloca o professor em situação de vulnerabilidade, dificultando o livre exercício da liberdade de ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, inscrito no art. 206, II da Constituição Federal.
Em verdade, a construção de tais expressões traz uma restrição excessiva a tais liberdades, gerando um completo esvaziamento da norma constitucional ante a absurda insegurança jurídica deflagrada.
Não se pode desprezar que as liberdades constitucionais não são absolutas, podendo ser restringidas pela ponderação com outras liberdades constitucionais, bem como pela legislação infraconstitucional, desde que esta lei não faça as restrições a ponto de esvaziar o conteúdo da norma constitucional restringida. Nesse ponto, o projeto Escola sem Partido, ao se utilizar de expressões vagas e indeterminadas, traz restrições desproporcionais e perigosas a essa liberdade de ensinar.
Esse raciocínio é também utilizado na jurisprudência dos Estados Unidos, onde se proíbe a utilização de limites a direitos fundamentais por meio de termos genéricos e vagos, em que se constrói o efeito inibidor (chilling effect) em pessoas que preferem não fazer uso de seus direitos previstos constitucionalmente por receios de sanções administrativas e de aplicação seletiva da norma (selective enforcement). E essa seletividade se torna ainda pior no projeto Escola sem Partido, uma vez que essa perseguição e aplicação seletiva da norma pode ser guiada pelas convicções morais, políticas ou religiosas dos alunos e de seus pais, e não somente do Estado.
Tudo isso dificulta o exercício de um dos principais objetivos da educação, que é justamente formar a análise crítica do aluno, para que ele consiga desenvolver seus próprios potenciais interpretativos, a fim de identificar e livremente seguir quaisquer das múltiplas ideologias ou visões de mundo para além daquilo que é repassado pelos meios a que já teve acesso. Trata-se da construção de uma das facetas do desenvolvimento da própria liberdade de expressão do aluno para a sua vida em sociedade, que não pode ser confundida com a liberdade acadêmica ora em debate (artigo 206, II da CF).
Explico. A liberdade acadêmica tem o objetivo de resguardar o avanço tecnológico, cultural e científico, protegendo a liberdade de pesquisa, de discussão, de ensino, de publicação e de propagação de conteúdo dentro e fora da sala de aula. E é justamente essa liberdade acadêmica que vai alavancar a liberdade de expressão do aluno na condição de sujeito crítico, pensante e participante do processo educacional e social, permitindo ao professor fornecer em sala de aula as diferentes concepções de mundo, sem estar com receio de responder a processos e sem estar amarrado a religiões ou convicções morais dos pais.
Ora, é evidente que os professores, assim como qualquer pessoa, são passíveis de erros e de excessos em suas práticas profissionais. Mas, para conter tais excessos, já existem mecanismos no ordenamento jurídico de cada entidade estatal que prescrevem faltas funcionais e sanções ao servidor que cometa abusos.
Nesse prisma, a veiculação de quaisquer conteúdos em sala de aula, por mais absurdos que sejam, não justifica a imposição de norma estatal de tamanha envergadura direcionada para toda a classe dos professores, uma vez que há outros meios menos gravosos para resolver esses problemas.
Por tudo isso, fica claro que o meio utilizado pelo projeto Escola sem Partido (expressões genéricas, vagas e indeterminadas) não é adequado e proporcional para o fim a que se propõe, até por que o nosso ordenamento constitucional não é compatível com qualquer forma de censura estatal prévia.
- Othoniel Pinheiro Neto é Defensor Público do Estado de Alagoas, doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia e mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Professor de Direito Constitucional.
- Artigo publicado hoje (26) no Consultor Jurídico
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