por Flávio Lúcio Vieira
A narrativa cinematográfica tem, claro, uma dinâmica própria. O cinema é, por assim dizer, o produto mais bem acabado da indústria cultural porque já nasceu sob o seu signo e foi o grande impulsionador, ao lado do rádio, da cultura de massas. Numa sociedade onde cada vez mais valores e opiniões são determinados pelo apelo visual, por uma estética presentista que lida com o passado sem muita preocupação com uma descrição mais ou menos fiel deste, o perigo está em transformar tudo em entretenimento.
Bem, alguns dirão, se parte dos historiadores veem a narrativa histórica como construção literária, e, no limite, como ficção, porque o cinema também não o faria? O mundo está cada vez mais irracional e isso é parte de um padrão cultural do nosso tempo, alimentado por visões desse tipo.
Dito isso, vamos à discussão. Assisti ontem junto com meu filho de 13 anos ao filme Mulher Maravilha, e fui com certo interesse em razão do sucesso de crítica e público. Confesso que saí do cinema muito mais incomodado do que lá entrei. A não ser pela ação ininterrupta, que quase não deixa o expectador respirar, o filme é uma confusão só, que mistura eventos históricos e mitologia, propositadamente distorcidos unicamente para oferecer entretenimento, mesmo à custa de um enredo que não faz nenhum sentido lógico e histórico.
A primeira das incongruências do filme aparece logo na abertura, quando uma guerra entre o bem e o mal que comanda os destinos da humanidade nos é apresentada. Os deuses da mitologia grega são convenientemente adaptados para representarem a maniqueísta e dual divisão ocidental criada na Idade Média entre o “bem” e o “mal”: Zeus criou a humanidade − quando na realidade foi Prometeu, que deu vida a bonecos de barro, com ajuda de Atena – enquanto Ares, o deus da guerra na religião dos gregos da Antiguidade, assume o papel de Lúcifer, e chega mesmo a ganhar, na parte final do filme, chifres que adornam o seu elmo.
A intenção de Ares, claro, é destruir a humanidade. Para protegê-la, Zeus cria do barro Diana, nome original da personagem. Diana na mitologia grega é Ártemis, a deusa caçadora irmã de Apolo, e filha de Leto, um dos tantos amores proibidos de Zeus. No filme, Diana tem mais semelhança com Atena, a filha dileta de Zeus, deusa da guerra estratégica e principal adversária de Ares, como Homero nos mostra na Ilíada.
Diana foi criada por Zeus do barro – ah, sim, como o “nosso” Deus nos fez – e a entregou para ser criada e treinada por Hipólita, a rainha das Amazonas, para que um dia cumprisse o destino de derrotar Ares.
Essa é a primeira parte do filme, a parte “mitológica”.
A segunda parte se desenvolve durante a Primeira Guerra e começa com um encontro inexplicável das dimensões terrena e mitológica. De repente, um avião, pilotado pelo protagonista por quem Diana se apaixonará, entra pelo céu, sem que fique claro – e isso tem importância? − porque era aquele o primeiro encontro de dois mundos paralelos se bastava que alguém ou alguma coisa passasse para o outro lado. Depois, um navio de guerra inteiro aparece e, mais do que um confronto de dois mundos, um confronto de civilizações se desenrola. E as Amazonas vencem.
Aliás, a não ser pelos seios preservados e dos saltos e voos bem ao gosto dos filmes chineses de Kung Fu, a ilha dessas mulheres guerreiras, e elas próprias, são a parte do filme que tem mais relação com os relatos antigos sobre esse povo, cuja origem mais aceita é a vingança pelo fio da espada contra todos os homens da ilha, e não apenas os maridos infiéis. Esse “fato” não foi, obviamente, mencionado no filme. Estragaria a pureza e a ingenuidade dessas mulheres, que representam o “bem”.
Ao saber de um mundo desconhecido em guerra, onde milhões são mortos – os dados do morticínio apresentados (acho que 60 de milhões de pessoas) são da Segunda e não da Primeira Guerra, − Diana, ao lado do seu novo “parceiro”, passa para a outra dimensão para se engajar na luta contra o mal, no caso, contra o Império alemão – os EUA jamais farão parte do campo do mal nesses filmes.
Os equívocos da segunda parte de Mulher Maravilha são tão escandalosos quanto ao desenvolvimento, uso de armas e a antecipação de tecnologias militares que chegam a ser vergonhosos. O gás mostarda é apresentado no filme como sendo criação de uma inventora meio maluca, que usa uma pele de metal no queixo para encobrir uma cicatriz, quando na realidade o gás mostarda (sulfurada) faz parte das contribuições dos cientistas alemães e da indústria química alemã, especialmente a IG Farben, o conglomerado ao qual pertence, entre outras grandes empresas, a Bayer, que o produziu em larga escala para ser usado no front, e não sobre civis, como é mostrado no filme. Tá vendo a utilidade de não ser fiel aos acontecimentos históricos?
Além disso, no filme, o gás foi a solução encontrada para reverter a iminente derrota alemã, quando, na realidade, começa a ser utilizado na segunda metade do conflito. Além disso, não é mencionada a inventividade dos franceses na ciência da morte, que responderam atirando cianeto de hidrogênio e ácido prússico sobre os soldados alemães.
Os absurdos continuam no final do filme. Como é sabido, a aviação foi usada ainda de modo muito rudimentar na Primeira Guerra por conta do pouco desenvolvimento dos aviões, que foram mais importante para o reconhecimento do campo inimigo para ataques de artilharia do que como arma de guerra. E a razão principal era a frágil estrutura dos aviões, em geral, feita de tecido e madeira.
Mas, no filme nos defrontamos com um imenso avião bombardeiro − de três asas! − todo ele feito de metal, construído para bombardear Londres com milhares de bombas químicas, coisa que nem Hitler pensou em fazer. Eu quase saí do cinema quando vi a cena!
Quando o filme terminava, comentei comigo mesmo: “Eis o exemplo mais bem acabado da estética pós-moderna no cinema”. Os aplausos adolescentes ao final de filme tão medíocre confirmaram minha impressão sobre o mundo e o cinema. E me fizeram escrever esse texto.
É BOM ESCLARECERO Blog do Rubão publica anúncios Google, mas não controla esses anúncios nem esses anúncios controlam o Blog do Rubão.
4 Respostas para MULHER MARAVILHA E AS FICÇÕES DA HISTÓRIA
Existe um filme sobre o criador do Mulher Maravilha!! Tem vários filmes que são dos meus favoritos e fiquei espantada quando descobri que o diretora era Angela Robinson, uma vez mais me surpreendi com a sua nova produção. Professor Marston e as mulheres maravilha tem uma forma especifica de dirigir Dos fimes de super herois e levar o espectador passo a passo com a história. É um diretor que é reconhecido por causa da qualidade dos seus trabalhos. É uma produção que vale a pena do principio ao fim.
Como vc fazia para passar vergonha antes da internet ?
O medíocre professor precisa compreender — o que pra ele parece difícil, dada a sua conhecida intolerância a alguns temas — é que um filme como esse, cuja personagem é fantasiosa, é, como o mesmo medíocre professor descreve, uma obra de ficção. Logo, por ser uma obra de ficção, não há a menor obrigação de se ter compromisso com a realidade. Quem quiser sabe a verdadeira história, vai assistir documentário. As pessoas vão ao cinema pra de divertir, espairecer. É por causa de gente como o medíocre professor que tem tanta gente chata e intolerante nesse mundo.
Parece que Aristóteles tinha razão quando concluiu que o ignorante faz afirmações, enquanto o sábio duvida e o sensato reflete. Devo concluir, portanto, se é que minha mediocridade permite, que o anônimo comentarista se enquadra perfeitamente na categoria dos sábios.