RÉQUIEM PARA O PONTO DE CEM RÉIS, por Francisco Barreto

O urbanismo público, em João Pessoa, tem refletido a urgência e a incompetência produtivista de um “aleatório fazer público” atrelado aos ímpetos das vontades personalistas que resplandecem nos convescotes oficiais e deságuam nas propagandas institucionais e pessoais.

Decisões e projetos são gestados de forma precária à revelia da qualidade de vida urbana. Henri Lefebvre nos diz que o conceito mais profundo sobre o urbano inspira-se, em sua gênese, na cultura perpetuada pela história (daí a urbanidade) e, ainda, na escala humana dos espaços produzidos. Na urbis, o espaço deixou há muito de ser reservado às elites passando a ser sujeito e objeto do consumo coletivo.

A forma dos espaços produzidos ou reinventados deve se subordinar ao conteúdo. Na Carta de Atenas, em 1933, Le Corbusier nos ensinou que “a vida de uma cidade é um acontecimento contínuo manifestado através de séculos por obras materiais, traçados ou construções, que a dotam de personalidade própria e da qual vai emanando sua alma pouco a pouco”.

O pensamento de Le Corbusier nos leva a refletir sobre os impactos causados pela intervenção “urbanística” no Ponto de Cem Réis: o que restou da sua dimensão histórica, sentimental, estética e da solidariedade humana? O que significa esta celeridade produtivista, demagógica na recuperação de um espaço que teve no passado virtualidades plásticas compatíveis com elos de convivência humana? Qual o consumo coletivo possível neste espaço hoje avesso e árido à convivência popular?

A grande lápide que estenderam sobre o Ponto de Cem Réis garroteou e esterilizou definitivamente um lugar coletivo que, embora agonizante, ainda insistia em abrigar uma buliçosa e alegre alma popular. Sentenciaram de morte o Ponto de Cem Réis!

A morte, ainda segundo Le Corbusier, “não perdoa nenhum vivente, ataca também as obras dos homens”. O Ponto de Cem Réis de hoje é um zumbi que vagueia longe do passado desatrelado do presente.

O lugar das grandes manifestações públicas, dos alaridos das conversas prosaicas e jocosas, dos engraxates espiões da alma popular foi desertificado em definitivo. Logo aquele espaço que tanto contribuiu para formação histórica e urbana de João Pessoa.

Hoje, ali está um urbanismo sem alma, sem afeto, sem história, usaram e abusaram dos ângulos retos (tão execrados por Niemeyer). Impuseram uma aridez excessiva aliada a uma massa de cimento inerte, de estética abominável, que faria um geômetra corar de vergonha.

De que forma uma reconstituição fictícia e enganosa como esta do Ponto de Cem Réis poderá acolher a alma popular? Como um espaço frio e inerte poderá abrigar a convivência humana?

Se copiar o passado é uma mentira, o que dizer de um projeto cingido apenas a traços mal elaborados numa prancheta ou computador, escravizado por ordens superiores inspiradas no determinismo do posso e mando? Dói-nos a insensibilidade dos “urbanistas” oficiais de João Pessoa. Merecem um bom terapeuta freudiano.

O Ponto de Cem Réis de hoje é um simulacro grotesco de um “urbanismo desprovido de vida” que abortou o traço suave, estético, sedutor capaz de produzir espaço destinado a ser fruído pela vida coletiva da cidade.

Lamentável e insensível prancheta! Incapaz e insensível, e talvez não valha a pena avaliar, não houve a sensibilidade de repensar a vida no centro da Cidade.

A obra de cimento teve apenas um predicado: o de massagear o ego de quem a determinou, sacrificando o prazer e os desejos coletivos de fruição espontânea dos espaços urbanos. Prevaleceu apenas uma alegoria mal feita, grosseira, agressiva, consistente apenas com o urbanismo prepotente, quase fascista, ditado pelo paradigma do “meu espaço”, e não o dos outros.

Espaços coletivos sem alma são espaços natimortos brindados apenas com placas egocêntricas de quem se imagina ser o galo de Chantecler: “o sol só nasce porque eu canto”.

Sobre o Ponto de Cem Réis, que agonizava há quase 50 anos, foi estendida uma lápide sepulcral, merecendo apenas um epitáfio final: Aqui Jaz o Ponto de Cem Réis e a Alma Popular – muito contra a sua vontade, sepultados pelo prepotente urbanismo oficial.

• (Imagem que ilustra este artigo foi copiada da Wikimedia Commons)

O SENHOR MORTO, por Frutuoso Chaves

Imagem do Senhor Morto no Santuário Nossa Senhora do Rosário de Pompeia (Foto: Tripadvisor)

Ninguém, por qualquer meio, seria capaz de me fazer ficar sozinho na Igreja comandada, naqueles dias, pelo Padre Gomes. Culpa de Batista, o amigo mais velho de quem todos os meninos admiravam a coragem. Ainda frangote, com os primeiros pelos na cara, o moço atravessava as noites, do sábado para o domingo, em busca de um bom forró, nos sítios e grotões. Na verdade, de qualquer forró, dos ruins, também. Não se dava, nesse campo, a luxo algum.

De volta, o Sol ainda escondido, passava no beco do Cemitério e, encontrasse o portão aberto, deitava-se numa lápide, fazia da camisa travesseiro e dormia o sono dos justos. Pois bem, a tal ponto destemido, esse camarada fugia da Igreja, quando vazia, como o diabo da cruz. “No Cemitério, ainda durmo. Na Igreja, não há quem me faça”. Quantas vezes não o ouvimos dizer isso.

Pronto. Nada me aguçava tanto e tão bem o medo daquele ambiente sagrado quanto esse depoimento do meu velho amigo. Haveria, porventura, alguém tão abalizado nesses assuntos quanto um sujeito capaz de se deitar com os mortos? Se ele afrouxava perto do púlpito de onde Padre Gomes passava suas descomposturas aos pobres pecadores, imagine eu.

Mesmo em dias claros, com movimentação no local, eu evitava certas áreas da Igreja consagrada à Nossa Senhora Del Pilar, assim mesmo, espanholada, da forma como fora até ali conduzida pelo jesuíta Frei Francisco de Modena, nos primórdios do vilarejo.

Não gostava, particularmente, do altar sob cuja mesa alguém dispôs, numa caixa envidraçada, um Senhor Morto com a expressão mais angustiada e sofrida que já vi em toda minha vida. Não sei se definitivamente morto, posto que tinha os olhos abertos. A boca, também. Sangue brotava de muitas feridas e, não menos, da testa perfurada por espinhos. Todavia, longe dali, eu readquiria, além da coragem, um sentimento individual de revolta que não supunha capaz de caber em coração ainda tão pequeno.

Uns frouxos aqueles discípulos. E Pedro, hein? Negar três vezes aquela amizade, mesmo depois de afirmar que assim não o faria? Acontecesse comigo, eu cobriria tudo o quanto fosse soldado romano no bodoque.

Posso ser sincero? Não gostava, mesmo, da Semana Santa, assim tida e havida. Aqueles santos cobertos, os lamentos de cada Estação ao longo da Via Sacra. Dias inteiros sem bola e com jejum até não mais poder. Quando posta a comida à mesa, era um sem-fim de pratos à base de coco, tempero do qual sequer o feijão nosso de cada dia escapava.

E os pedintes à porta? “Um jejum para minha mãe jejuar”, suplicavam. Não estariam a pedir o contrário? Um desjejum para a mãe, ou quem quer que fosse?

Eu sonhava, então, com o Sábado de Aleluia, ocasião para todos os desagravos e para um novo encontro com Judas. O da minha cidade vinha com chapéu, paletó, camisa, gravata e sapatos, coisas, certamente, sobradas de algum defunto ou, quem sabe, de alguém que se fez mais próspero e gordo a ponto de não mais caber nas velhas vestimentas.

Não tinha quem ganhasse do moleque Escurinho na escalada ao pau de sebo para a derrubada do boneco feito no tamanho de gente de verdade. Era o bicho bater no chão e começava o rasga-rasga. Enfim, havia chegado para Judas o merecido castigo e, para os meninos que então éramos, a volta do riso e da alegria.

Mas, para um grupinho de presepeiros na mira da polícia, aquela festa, em particular, perdera a graça. Iriam todos em cana se fizessem a Leitura do Testamento, o momento apoteótico. O juiz cuidava, assim, de evitar brigas ocorridas em passadas malhações, quando os linguarudos destinaram, a título de consolo, gravata, sapato, camisa, paletó e chapéu do Judas a pais de meninas desmioladas e, ao que também diziam, maridos traídos. Se tiros houvesse, que fossem apenas os das bombas nas tripas de pano daquele boneco.