O IANOMÂMI, por Frutuoso Chaves

Fotografia copiada da capa do livro ‘A queda do céu’

O drama dos ianomâmis me remete a David Kopenawa, o adolescente que se esforçou para “virar branco”, nada conseguindo além da tuberculose. Naquele momento, duas epidemias devastavam seu grupo de origem. Nasceu ele por volta de 1956 numa casa comunal com 200 pessoas, no extremo Norte da Amazônia quase no limite com a Venezuela. O nome bíblico lhe chegou por obra e graça de missionários europeus e norte-americanos, dos quais se afastou, em fins de 1960, quando a varíola transmitida pela filha de um dos pastores matou muitos dos seus.

Aprendeu português e trabalhou como intérprete em posto da Funai. Nos idos de 1980, casou-se com a filha de um xamã e foi por este induzido ao aprendizado e prática da arte de invocação dos espíritos da mata e a do tratamento de enfermidades com folhas, cascas e raízes. Viu a invasão do seu território por mais de 40 mil garimpeiros e, em razão disso, a devastação de grandes áreas da floresta e trechos de rios. Também, a aniquilação gradual de sua gente, ora pelas pestes ora pela violência.

A ONU concedeu-lhe o Prêmio Global, em 1988. Um ano depois, ele obteria a láurea maior da Fundação Livelihood, espécie de Nobel alternativo com o qual essa instituição sueca reconhece e aclama, em escala mundial, os promotores de esforços nas áreas dos direitos humanos, direitos civis, meio ambiente e liberdade de imprensa. Fernando Henrique Cardoso a ele conferiu a Ordem do Rio Branco.

A situação do seu e de outros povos da floresta, então, já era dramática. A homologação da Terra Indígena Ianomâmi deu-se no transcurso da Eco-92, a conferência da ONU sobre o meio ambiente e o desenvolvimento ocorrida no Rio de Janeiro. Com o Brasil sob as lentes do mundo, Fernando Collor dispôs a Força Aérea Brasileira ao episódico bombardeio e destruição de pistas de pouso clandestinas. Os governos seguintes não teriam vitórias expressivas contra as invasões e a barbárie. O que se encerrou no último dezembro deu à tragédia dos ianomâmis as cores e as dores que horrorizam, agora, o mundo inteiro.

É preciso dizer isto. Apesar de frequente nos maiores e mais importantes palcos do planeta, David Kopenawa, a principal liderança indígena brasileira, é pouco conhecido no País onde nasceu. As organizações internacionais bem o conhecem e, assim também, em idiomas diversos, os leitores de “A queda do céu”, o livro nascido de sua parceria com o antropólogo francês Bruce Albert.

Eis um trecho: “A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras da montanha racharão com o calor. Os espíritos que moram nas serras e ficam brincando na floresta acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tronará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão”.

Não custa crer em que a voz e os passos desse moço têm feito mais pela mata, rios, montes e vales, e pelos povos que ali vivem há milênios, do que nossos governantes. Não fosse por isso, não fosse por gente como ele, o silêncio global agravaria a infâmia, o sofrimento e a morte dos primeiros habitantes dessa parte tão espoliada das Américas.

O Brasil, desgraçadamente, acaba de expor ao mundo a maior, a mais absurda, a mais grave das suas chagas. E, o que é pior, a negação brutal, estarrecedora e criminosa do remédio.

E eis que um índio me cura uma repulsa e um medo, o pavor perpetuado desde quando, pela primeira vez, pus os olhos no Senhor Morto carregado em andor nas procissões da minha infância.

Voltei a ver, agora, aquela imagem na fotografia do ianomâmi inacreditavelmente magro, de olhos cerrados e boca semiaberta. Foi este ser humano, uma pilha de ossos com o semblante a refletir todas as agonias, todas as marcas do tormento, que me trouxe a dimensão exata do padecimento de Jesus. Ele, o ianomâmi, me fez substituir o medo pela compaixão.

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