O FRADE E O RÁDIO, por Frutuoso Chaves

Frei Damião na Paraíba, meados dos anos 1960 (Crédito: IstoÉ/Divulgação)

Ando a sonhar na brevidade de qualquer cochilo. Sonho com todos e com tudo. Nesta madrugada, foi com Frei Damião. Melhor dizendo, foi com a história que dele contava minha avó materna, dona Amélia. Que Deus a tenha.

O ano era 1945, por volta de fevereiro, quando eu sequer havia nascido. Mas sonho é coisa que inverte o tempo e a razão. O fato é que eu me via no pátio daquela Igreja com todos os sentidos para o sermão do frade, a maior estrela das Santas Missões, gente com prestígio de santo, quando veio a notícia: “Socorro, Frei Damião. O Paraíba está de canto a canto e acaba de virar, bem no meio, a canoa dos músicos”.

No meu devaneio, a cena se passava exatamente como descrita a mim e meus irmãos, à boca das noites chuvosas, época em que o rio tomava água e se aproximava dos quintais. A mãe da minha mãe dava tons graves a cada frase, enfatizava cada gesto.

Hoje, quero supor que ela assim compensava um desejo frustrado: o de brilhar no cast das radionovelas como a sobrinha Tereza, contratada da Tamandaré do Recife e, portanto, orgulho desse ramo da família. Eu vira minha avó chorar, muitas vezes, ao pé do antigo Philips, mexendo botões para a melhor sintonia de “O Direito de Nascer”, um dramalhão de origem cubana com texto original de Felix Caignet e adaptação de um camarada chamado Eurico Silva.

Eu não alcançava a razão pela qual senhoras de certa idade se matavam nos afazeres das manhãs e tardes para, lenço à mão, sofrerem com aquilo à noitinha. Talvez fosse por conta de Albertinho Limonta, um purgante de voz impostada que uma vez deixou meu pai enciumado.

Eu juro. As mulheres da minha casa tomavam para si as agressões a Maria Helena, ou Isabel Cristina, não lembro bem, mãe solteira na sociedade preconceituosa dos idos de 1950. Jacira, a ajudante da nossa cozinha, até pegou trejeitos de Mamãe Dolores, uma alma pura e posta a comer o pão que o diabo amassou, a cada capítulo. Não sei se andava tal e qual, pois rádio não tem imagem, mas passou a falar do mesmo modo.

Perdão, Frei Damião, acabei esquecendo de você. Pois bem, os músicos da tal canoa vinham de Juripiranga, o distrito de Pilar que já superava a sede, a ponto de ter banda e dobrados a serviço de festas, cultos e procissões. No meio da cheia alguém, apavorado, se levantou, o que fez o pequeno barco virar.

Mas ao pedido agoniado de socorro, com a inflexão que minha avó repetia e assim eu sonhei, o frade ergueu os olhos para o Céu e, após breve silêncio, assegurou: “Não se preocupem. Ninguém morrerá”. E, de fato, ninguém morreu. Nem Aristenes, com sua tuba gigante e seus 120 quilos de peso. Nem ele, que não sabia nadar.

Preciso informar que uma parte dessa história não entrou no meu sonho. Águas já baixas e areia aparecendo, o moleque Pereira disse que chegou ao trombone de vara encontrado no local do afundamento, muito depois do incidente, menos pelo brilho do metal à luz solar e mais, muito mais, em razão do som que o bicho emitia à passagem do vento pelo bocal: um apito grave e triste de navio em suas despedidas. Mas nisso eu não recomendo a fé de ninguém. Eu, não.

É BOM ESCLARECER
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Uma resposta para O FRADE E O RÁDIO, por Frutuoso Chaves

  1. Walter escreveu:

    Este foi o quarto artigo que acabei de ler. E foi o que mais deixou claro para mim. Gostei.
    Tapajós de prêmios resultado