A GUERRA QUE NOS FALTAVA, por José Mário Espínola

Cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, tem covas abertas à espera dos mortos pela covid-19 na pandemia de coronavírus - Nelson Almeida/AFP

Imagem: Nelson Almeida/AFP

A primeira vítima social da pandemia é a vaidade. Em seguida, vêm o egoísmo, o orgulho e o preconceito. Outras virão ao longo desse período de necessidade coletiva.

Muitos anos atrás, na nossa primeira visita à Europa, nós percebemos o esmero das pessoas dos países que visitamos para com o uso dos recursos, alimentos, objetos.

Observamos isso não apenas na quantidade de alimentos nos pratos como também nas dimensões das unidades residenciais, apartamentos, móveis usados, tampas de tomadas elétricas; enfim, racionalização de recursos.

Atribuo a uma cultura milenar forjada nas batalhas ao longo da formação de cada nação. A uma forma de pensar coletiva, graças à participação dos países em muitas guerras ao longo dos séculos.

Os europeus desenvolveram economia de guerra, quando se faz um esforço coletivo com o objetivo de economizar recursos que serão destinados a um período belicoso.

Aí, então, todo mundo foi obrigado a economizar, a viver com o mínimo durante certo período. E todos aprenderam, coletivamente.

Quanto de água realmente precisamos para conservarmos a nossa boa saúde. A quantidade mínima de alimentos. Quantas camisas, quantos calçados precisamos para viver decentemente.

Diferentemente, e infelizmente, a sociedade brasileira nunca participou de um conflito internacional que fosse o suficiente para desenvolvermos uma cultura de economia de guerra.

Então, eis que chega a pandemia! E veio com todas as características de uma guerra, exigindo uma mobilização nacional inédita para a nossa sociedade. Está criando novos conceitos, nos ensinando que se pode viver com o mínimo necessário. Que pouco pode ser muito. Que menos também é mais.

A primeira vítima social da pandemia é a vaidade. Em seguida, vêm o egoísmo, o orgulho e o preconceito. Outras virão ao longo desse período de necessidade coletiva.

Paralelo a todo esse desmantelamento dos preconceitos sociais, estamos assistindo o desabrochar de uma nova sociedade, onde sobram gestos de solidariedade, tolerância e generosidade.

Mas, contrariando o padrão dos outros países que enfrentaram períodos de escassez causados por guerras, onde verdadeiros líderes davam exemplos edificantes a seu povo, prometendo e cobrando sangue, suor e lágrimas, apoiados por parlamentos compostos de figuras realmente comprometidas com o país, o que é que estamos vendo no Brasil pandêmico?

Um povo acéfalo, sem uma liderança capaz de unificá-lo e mobilizá-lo com o objetivo de sobreviver com dignidade e honra, que não dá um exemplo a ser seguido pela nação como um todo.

Com muita preocupação assistimos a nação sem um líder realmente comprometido com a saúde pública e o bem-estar dos cidadãos que governa. E que ora age omisso, com a atitude de que não tem nada a ver com o que está acontecendo, sempre culpando alguém por seus próprios erros, ora age irresponsavelmente, estimulando a desobediência às medidas de saúde.

Paralelo a isso, alguns políticos até parecem aproveitar-se do momento de fragilidade pública, de emergência decretada, para tirar proveitos da forma mais vergonhosa possível.

Têm sido veiculadas notícias preocupantes de empresários envolvidos com agentes de saúde para promover compras superfaturadas, licitações fraudadas e até materiais não-entregues às unidades de tratamento de vítimas da covid 19.

O Código de Ética Médica, que orienta a conduta do profissional médico no Brasil, foi aprovado em 1958. Ao longo dessas seis décadas sofreu algumas reformas. A que considero mais importante foi a que determinar como primeiro artigo o que antes era artigo 29, dando total merecida importância à responsabilidade médica:

É vedado ao médico:
Art. 1º: Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.
Parágrafo único: A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.

Esse artigo estabeleceu a base do comportamento do médico no exercício de sua profissão. Ao longo da prática médica aprendemos que jamais podemos deixar de fazer algo pelo paciente. O médico não pode ser omisso com a saúde ou a vida de alguém, quando isso possa ser caracterizado como danoso.

Fazendo um paralelo, esse entendimento pode ser estendido a todos os cidadãos do Brasil. Observamos alguns dos nossos dirigentes diuturnamente “infringindo” o artigo primeiro do nosso Código. Enquanto a grande maioria tudo faz para ser útil à sociedade, neste grave momento de crise, uns tomam atitudes que posteriormente se revelam danosas para a sociedade, agindo com imperícia ou imprudência, outros são escancaradamente omissos, caracterizando a sua negligência para com a nação brasileira.

Mas um dia esse clima de guerra, esse estado de beligerância patológica que é a pandemia haverá de acabar. E tenho a certeza que os homens e as mulheres de boa vontade se unirão para julgar aqueles que tiveram participação importante durante a pandemia, para o bem ou para o mal.

Num futuro próximo, após a pandemia, políticos, empresários, agentes públicos, dirigentes de todos os níveis, e cidadãos que se aproveitaram para de alguma forma tirar vantagens e prejudicar a população, cada um terá a sua responsabilidade definida para com o país e a nação.

Inclusive aquelas pessoas que aproveitaram o clima de insegurança, de fragilidade social, para espalhar notícias falsas as mais diversas possíveis: falsas informações sobre tratamento, sobre medicamentos sem base científica. E até mesmo notícias alarmantes, disseminando assim o pânico entre a população. São inimigos da nação.

Quem tomou atitudes lesivas tem que responder por isso. E aqueles que se omitiram, foram negligentes, terá definida qual foi a sua parcela de responsabilidade diante do mal que afligiu a nação brasileira.

Quem viver verá.

José Mário Espínola

Cardiologista

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