Na casa de conjunto, no escurinho da mangueira

Casa no Boa Vista, hoje Bairro dos Ipês, em João Pessoa

Hoje sem a mangueira, a segunda e última casa dos Barbosa da Nóbrega no Conjunto Boa Vista

Quando meus pais resolveram trocar Bananeiras por João Pessoa, em 1972, a minha ansiedade concentrou-se inteira na casa onde os Barbosa da Nóbrega morariam inicialmente na Capital, no Conjunto Boa Vista, atual Bairro dos Ipês. Seria uma ‘casa de conjunto’ tipo B (um pequeno terraço, sala, cozinha, três quartos, um banheiro), mas seria nossa. Aluguel, nunca mais. Meu pai fora promovido de inquilino em Bananeiras a mutuário, em João Pessoa. Não era pouco.

Sem contar que na minha cabeça de menino seria o máximo residir num lugar onde todas as casas seriam praticamente iguais ou exatamente iguais em sua área construída, conforme os padrões dos conjuntos habitacionais financiados pelo velho BNH de guerra. E no Boa Vista as quadras eram formadas por casas que variavam do tipo A ao D. A diferença de uma casa tipo A para o B ou do C para o D ficava por conta do  tamanho do terreno, do tanto de área construída e, obviamente, do número e dimensões dos cômodos.

Não demorou e a família evoluiu ligeiro de quadra. Mudamo-nos da casa tipo B para uma tipo A na melhor localização possível, na parte mais alta do conjunto, pertinho do mercado público do Bairro dos Estados. A casa, então, era um sonho. De frente para uma praça, meu ideal de moradia para toda a vida. Melhor ainda, a nova residência ocupava uma esquina, com terreno maior do que outras do mesmo tope. No mais Três quartos, uma sala para dois ambientes (jantar e estar), um terraço e um quintal onde cabia uma ampliação capaz de triplicar os espaços internos.

Antes que esqueça: também vieram morar em João Pessoa a minha irmã Rosane e o marido Fernando, ela ainda a adolescente que dois ou três meses antes da mudança para a Capital fugira de casa para se casar com o primeiro e único namorado. O jovem casal ocupou uma casa tipo C, cinco ou seis quadras a leste de onde o restante da família se fixou.

Devo dizer e reconhecer, hoje, que a visão juvenil da época não percebia diferenças outras ou estratificações na fórmula como fora concebido e construído o conjunto residencial. Valia então a certeza de que o Boa Vista seria melhor que Bananeiras. Afinal, “no conjunto”, pensava a minha ingenuidade, “as pessoas não seriam medidas pelo tamanho das casas em que moravam”.

Outra coisa: mesmo antes de morar no Boa Vista, maravilhava-me a descrição que meu pai fazia do conjunto antes de nos mudarmos para João Pessoa. O Boa Vista teria, e efetivamente teve, quadra de esportes, igreja, praças, ruas bem traçadas (a maioria calçada em paralelepípedos ou terraplanadas, sendo as mais compridas bem servidas de ônibus), padaria logo ali nas Cinco Bocas e a feira livre do Bairro dos Estados a 300 metros da nossa calçada.

Cinco Bocas é o ponto de referência do bairro de Mandacaru, um dos mais antigos da Capital. Em uma daquelas bocas, bem na esquina, havia uma barraca que servia o melhor caldo de cana com pão doce que já existiu na face da Terra.

A casa nova era realmente um sonho: terraço maior, cozinha maior, quartos maiores e a sala em L que, como antecipei, comportava duas funções em dois ambientes: um, para refeições; o outro, para receber visita e ver novela na tevê.

Pois bem, um ano morando nessa maravilha e a gente já estava construindo um novo quarto na casa, obra tocada por um pedreiro e dois ajudantes – eu e o mano Robson. O caçula, Roosevelt, à época ‘O Gordo’ e hoje Buscapé, ainda era muito novo para ‘pegar no pesado’. O serviço exigia carregar pedra, terra e metralha para o alicerce; depois, tijolo e cimento traçado para erguer as paredes.

Casas como aquela nossa, no Boa Vista, só mais duas, justamente a de nossos vizinhos mais próximos: a de Seu Zequinha, no meio da quadra, e a de Seu Peixoto, na outra esquina. Ambas também de frente para a pracinha onde jovens do bairro se reuniam já meio tarde da noite para jogar dominó ou conversa fora. Fumar e beber também.

Beber vez por outra, não todo dia, mas preferencialmente a batida de cajá ou goiaba que Marcos Pequeno melhorava a cada preparo. Vizinho da casa de trás da nossa, o hoje Professor Doutor de Filosofia da UFPB também era craque no futebol de botão e no xadrez. Tentei ser-lhe adversário à altura, mas não cheguei perto. De cada dez partidas, na mesa ou no tabuleiro, ganhava uma ou duas, no máximo.

Uma mangueira providencial

Detalhe digno de nota e registro: bem na frente da casa do Boa Vista, uma mangueira das grandes, quase colada à calçada do jardim, dava sombra boa durante e dia e refúgio à noite aos namoros mais ousados, aconchegando jovens casais no escurinho convidativo formado pela densa copa da árvore.

A mangueira protegia bem os romances juvenis. Tanto de olhares mais curiosos, mais vigilantes ou mais severos, quanto das línguas mais ferinas. De qualquer modo, depois que o sol se punha, enamorados se sentiam mais seguros para avançar nas carícias possíveis, porque não lhes alcançava os movimentos a luz fraquinha da lâmpada do poste de iluminação pública fincado na calçada de Zequinha, cinco metros adiante.

Para maior conforto dos usuários daquela árvore maravilhosa, a base do seu tronco era circundada por um banquinho de madeira que eu e meu irmão montamos, se não me trai a memória falha. Só sei que dava para acolher dois casais ao mesmo tempo, mas distantes o suficiente para um não partilhar a privacidade do outro. Mano Robson, o mais velho lá de casa, foi dos mais assíduos nas estimulantes serventias daquela inesquecível mangueira.

Por essas e tantas outras, a casa do Boa Vista atendeu e superou todas as minhas expectativas. Posso dizer que nela e no seu entorno vivi uma das melhores épocas de toda a minha existência, inclusive por ter sido aquela a fase que marcou a passagem do menino para o mundo de rapaz.

***

Prometi semana passada contar um episódio de vergonha alheia por que passei em razão do preconceito de classe social. Vou ter que adiar. O Boa Vista ainda me rende uma ou duas histórias que pretendo compartilhar com os leitores mais pacientes na espera e condescendentes com a narrativa. Até o próximo sábado ou domingo, então.

 

É BOM ESCLARECER
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2 Respostas para Na casa de conjunto, no escurinho da mangueira

  1. Luiz Lima escreveu:

    Bons tempos do Bairro dos Ipês. Também morei lá nos anos 80. Bairro maravilhoso.

  2. Egyto escreveu:

    Estou acompanhando semanalmente, e trazendo várias recordações das minhas moradias….