JOGO EM MARTINS, por Sebastião Costa

Imagem: Lei em Campo

O jipe de duas portas era de Mário Teodorico. O percurso: Serra de João Dias, Demétrio Lemos, Martins.

O empresário, Francisquinho. Nasceu empresário. Ele deveria ter entre 16 a 17 anos e em todos os jogos que fizemos fora de Catolé (muitos) ele foi o responsável.

Fico imaginando a fé em Deus de nossos pais, soltar seus filhos por aí afora sob a responsabilidade de Francisquinho.
 
 O último a ser embarcado foi Cabral, na Marechal. Enquanto a gente esperava o zagueiro, de repente Canelão, que não estava na relação do técnico, subiu no jipe.

– Desça, Canelão!

Canelão, calado.

– Canelão  o jipe não cabe, desça!

E Canelão sem dar uma palavra. Canelão foi!

Como o jipe não cabia mesmo, sobrou pra mim, o menorzinho (acho que menos de 14  anos de idade). Fui até Martins sentado nas pernas do Gordo de Arnaud.
 
Chegamos ainda de  manhã e precisávamos almoçar para ter condições de jogar. E cadê almoço? Depois de muita confusão, o rapaz que havia acertado o jogo com Francisquinho levou a gente pra uma bodega e almoçamos pão doce com refresco.
 
O time foi formado mais na base da panelinha. Futebol mesmo, só quem jogava era eu (muito pequeno ainda), Nena, Josa, Genaldo. Mais ou menos: Cabral, Canelão (ponta direito muito veloz) e Zuquinha. Tuninha era o lateral direito e adivinhem quem era o quarto-zagueiro?  Carlinhos Rodrigues. Sem falar que o time deles estava numa  faixa etária acima da nossa.
 
O jogo teve um lance interessante. 4×1 pra eles e a bola dentro da área, nos pés de Nego Carlinho, que deveria chutar pra longe, tirar dali o perigo. Um gaiato lá fora deu um apito e Carlinhos não contou conversa: abaixou-se e  pegou a bola com a mão. Pênalti. 5×1. Pra encurtar a conversar, o jogo terminou 9×1. Gol nosso de quem? Canelão!
 
Na volta, muita chuva. Mário Teodorico queria ficar pra voltar no outro dia.

– Eu não vou botar meu jipe nesses buracos.

12×1 pra gente e saímos já escurecendo.
 
Mário: “Em Demétrio Lemos tem um armazém de um amigo que dá pra todo mundo dormir lá”. Era um paiol de algodão, cheio daqueles piolhos que dá muito no algodão estocado. Uma coceira desgraçada e saiu todo mundo correndo pro jipe.

Vamos simbora!

E tome chuva!

Lá na frente, um riacho. Quem desce pra ver a fundura? Naquele toró? Ninguem desceu e Mário, fumaçando de raiva, botou o jipe no riacho com água cobrindo os pneus.

De repente uma cancela no meio do caminho. E quem tinha coragem de descer para abrir aquela cancela? Na verdade, o problema maior não era nem o chuvaral. O medo era da vizinhança da cancela, um cemitério de parede branca alumiado pelos coriscos do céu e repleto de almas.

Depois de 5 minutos de muita confusão, Zuquinha, que teve o privilégio de ir e voltar na porta da frente, foi o sacrificado. Desceu chorando, mas desceu.

Já perto de João Dias, Mário radicalizou: “Não vou descer a serra  que só tem lama, numa chuva dessa!” Dessa vez foi 1×12 pra ele.

– Vocês vão dormir no alpendre de um conhecido meu ali na frente  (ele conhecia toda a região, foi prefeito de João Dias).
 
Alpendre estreito pra tanta gente, quando a chuva arrochou, começou a molhar. Foi quando Tuninha apareceu, não sei de onde e falou baixinho: “Sebastião venha pra cá!” (o pessoal tinha um certo carinho por mim, pois era o caçula e jogava bem).
 
Numa casinha ao lado, Francisquinho convenceu o dono pra ele e Tuninha dormirem lá. Quando olhei, tava Francisquinho deitado no chão, num couro de algum animal. Quando ví aquele conforto, voltei e fui chamar Josa, meu irmão. A galera ouviu e invadiu a casinha.
 
O homem, muito bom, estirou outro couro, esse de vaca e acomodou todo mundo (Mário e Zuquinha dormiram no jipe).

Ocorre que, quando já tava todo mundo deitado e em silêncio, começou a cachorrrada. Apagaram a lamparina. O dono da casa reclamou e acendeu a lamparina. Apagaram de novo (o pior que tinha era Genaldo).

Depois de quatro apaga/acende, o senhor falou sério e disse que ia botar todo mundo pra fora. Foi a única maneira de manter a lamparina  acesa.

Em determinado momento, Francisquinho, com seu olhar ‘empresarial’, enxergou uma rede lá no fundo da sala e aboletou-se. O senhor reclamou que aquela mordomia era pro filho dele que ia chegar mais tarde. Francisquinho, muito vivo, levantou-se, mas ficou em pé, escorado na parede e todo mundo reclamando. 

– Deita, Francisquinho.

E ele nem aí! Foi quando o dono da casa, compadecido, mandou que ele fosse pra rede, mas teria que sair quando o filho chegasse. Naquele toró?

Francisquinho amanheceu na rede e fazendo inveja a todo mundo:

– Dormi com dois lençóis. 

Acordamos com um dia lindo. Cheiro forte de mato novo, uma brisa refrescante, um sol brilhante… Talvez a natureza, no seu esplendor, quisesse compensar  a noite mal-dormida daqueles meninos.

Saímos dali felizes da vida!
 
•  Sebastião Costa é Médico