COM AFETO E PASSAS DE CAJU, por Francisco Barreto

Da janela da Casa de Cora Coralina, visitantes veem o Rio Vermelho que corta a cidade de Goiás (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Da janela da Casa de Cora Coralina, visitantes veem o Rio Vermelho que corta a cidade de Goiás (Foto e legenda: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

A memória é como o vento, apaga pequenas chamas e flameja as grandes. Surpreende-me que a idade, longe de me cultivar mágoas, mantém a léguas de distância a ranzinzice tão epidérmica aos provectos. Melhor ainda, faz-me viver solitariamente intensos momentos onde o passado inunda o meu presente de alegres pensamentos. Como diriam os franceses, tais sensações e sentimentos conduzem a minha “destinée”. Afortunadamente, todos os dias me afloram remotas e radiantes lembranças.

Assim fui ao encontro de Cora Coralina nos idos de 1983, em Villa Boa de Goiás Velho. Tinha que conhecê-la. Ainda mais depois de aconselhado em Brasília por Flávio de Almeida Sales, seu neto. Ele assegurou que ela adorava visitas. Levei comigo passas de caju regadas com mel de engenho à linda morada na margem direita do Rio Vermelho. A porta de duas bandeiras estava entreaberta. “Ô de casa!” De pronto ouvi : “Já vou. Quem é?”. Subitamente, ela se aproxima de mim: “Que deseja?” Respondi: “Vim da Paraíba do Norte conhecê-la! Sou amigo de Flávio, seu neto”. “Seja bem-vindo”, disse ela. Entrei e me acomodei numa das poltronas na sala austera.

Iniciei a minha intromissão: ‘Dona Cora, se há uma coisa que não me permito nunca é me manter na ignorância. Tinha um enorme desejo de lhe conhecer e lhe presentear estas passas de caju com mel de engenho”. Agradeceu-me com um sorriso no olhar. “Maravilha! Vai me lembrar da minha mãe, que tinha origem nordestina”, disse, acrescentando: “Não sou poetisa, sou apenas uma doceira”.

Tivemos uma longa conversa. Falou-me de suas andanças em São Paulo, de suas caminhadas na Revolução Constitucionalista de 32, de Getúlio e de sua volta para o Goiás Velho nos anos cinquenta. Contei-lhe que Francisco de Paula Barreto Sobrinho, meu pai, junto com vários amigos, fora guerrear em São Paulo também em 32. Achou interessante e me revelou que seu pai também era Francisco de Paula. Sorriu quando disse que eu também me chamava de Francisco de Paula.

Confessou-me que abdicara seu nome de batismo, Ana Lins dos Guimarães Peixoto. Cora Coralina se atribuíra como homenagem ao Rio Vermelho. Nesse ponto, pediu licença e foi ao interior da casa, de lá trazendo nas mãos um pouco trêmulas dois pequenos cálices com licor de leite. Calmamente bebemos aquele néctar. Criei coragem para pedir o autógrafo do seu então recente livro ‘Vintém de Cobre’. “Ao estimado amigo Francisco de Paula, por sua visita”, escreveu e assinou.

Segundo após recolher tão ansiado presente, senti ter chegado a hora de ir. Anunciei a minha saída. “Já vai?”, indagou. “Já, Dona Cora, já fui longe demais”. Nos despedimos e saí. Ao me encaminhar para uma ponte vizinha à casa, olhei mais uma vez e a vi parada na porta. Fixei a imagem com a certeza de que não a veria nunca mais. Ela tinha mais noventa anos.

Aquele foi um dos encontros mais memoráveis da minha vida. Eu, o visitante das passas de caju; ela, um espirito florido que exalava a sua bela alma poética. Pessoas como Cora Coralina não morrem nunca, simplesmente continua presente na memória de quem cultiva flores e afetos.

Feliz estou. Cora Coralina aninhou-se para sempre nas minhas arrebatadas lembranças de um passado que se mescla alegremente com o presente. Feliz porque o meu passado tem iluminado o meu hoje. A memória dos melhores instantes vividos levou-me até ela. Talvez só para endeusar todos os seus versos, a magia e ensinamentos de seus poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove as pedras e planta roseiras e faz doces.

Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir.