DE BICHOS E JOGOS, por Jesus Fonseca

O pessoal, em Itaporanga, era chegado ao jogo do bicho, talvez em função da falta de outros lazeres, na cidade. Quando eu trabalhava lá, no Banco do Nordeste, lembro-me de uma senhora que me azucrinava todas as manhãs, na hora em que me dirigia ao trabalho, inquirindo qual o bicho que eu tinha sonhado.

Para não bancar o mal educado, inventava um sonho com determinado bicho, ela anotava para fazer, mais tarde, sua ‘fezinha’. Isto era uma constância!

Certo dia, um daqueles em que nossa serotonina amanhece muito baixa, quando abri a porta de casa para ir ao trabalho, lá estava ela. Foi logo me perguntando: “Abençoado, o que você sonhou, hoje?”. Um tanto quanto aborrecido, respondi-lhe: “Sonhei, dona Maria, com João, seu marido, correndo pela Getúlio Vargas”.

Fiquei, então, na expectativa de uma resposta dura. Mero engano! Ela olhou pra mim e disse: “Mesmo? Sonhastes com João? Vou quebrar a banca, hoje, vai dar cachorro! Obrigada, meu anjo!”

***

Era comum os bicheiros interpretarem os sonhos dos clientes, para orientá-los sobre que bicho deveriam jogar. Muitas vezes eles ficavam por ali, esperando. Quando alguém chegava com um palpite, eles pediam para contar o sonho. E a partir daí davam a sua opinião. Mas o cliente ficava livre para jogar o que quisesse.

Certa vez, uma senhora chegou a uma banca para jogar e com o bicheiro travou o seguinte diálogo:

– Quero jogar no gato. 

–  Por que a senhora quer jogar no gato?

– Porque sonhei que o meu gato caiu do telhado.

– Jogue burro.

– Por que?

– Porque gato que cai do telhado é burro.

Deu burro!

***

Mas a melhor, o maior exemplo da engenhosidade do exercício de raciocínio dos bicheiros, foi a da vaca. O cliente chegou e jogou 10 reais na vaca. O bicheiro perguntou por que. O moço disse que sonhou com duas vacas de caudas cortadas, esfregando os traseiros uma na outra. O bicheiro foi enfático: “Jogue cobra!”. O cliente não aceitou. Não deu outra: cobra!

O cliente voltou à banca para saber como o bicheiro sabia que ia dar cobra. Este fez uma exposição da sabedoria dos bicheiros: “Vaca de cauda cortada? Vaca surú. Uma esfregando o rabo na outra? Surú-cum-cú: COBRA!”.

O AMIGO EINSTEIN, por Frutuoso Chaves

Imagem de CatClub

— Ai, Enfermeira, com os mil e seiscentos diabos…

— Calma, meu senhor. Foram arranhões profundos. Temos que remover esses cascões. Há inflamação debaixo deles. Está tudo purulento. Você devia ter cuidado disso logo depois do ataque.

— Ai, minha Nossa Senhora… Cuidei, moça. Lavei com vinagre.

— Vinagre é tempero, meu querido. Tomou vacina antirrábica?

— Tomei não. Mas quanto a isso estou tranquilo. Não está hidrófobo. Com cinco dentro de casa aquele desgraçado só parte para cima de mim.

E, entre gemidos e imprecações, a conversa prosseguiu. O bicho apareceu-lhe na garagem, ainda muito novinho, numa manhã de chuva, mais morto do que vivo. Pensou em atirá-lo de volta à rua, mas o impediram de fazer isso a mulher e os filhos. Uma caixa de sapatos com panos quentes e leite a conta-gotas salvaram a vida do infeliz que logo cresceu e se transformou no xodó da família.

Logo notou que ele não aceitava de bom grado suas poucas tentativas de carinho. Refugava, fugia quando lhe passava a mão e, caso insistisse, lá vinha o chiado de cobra, aviso claro de que deveria se afastar. Se fizesse pouco caso, tomava patada dolorosa e rápida como o raio. Ao contrário disso, o desalmado se aquietava, ronronava e aceitava a aproximação da dona da casa e dos meninos, três anjos pequeninos, inocentes e puros.

Será que bicho também percebe rejeições, cultiva ressentimentos? Teria guardado na mente a pequena discussão familiar estabelecida no momento da sua aparição, molhado e trêmulo, debaixo do carro? Ou os ataques a cada uma de suas aproximações resultariam do pisão no rabo que lhe aplicara, sem querer, numa madrugada escura?

Ar de inteligente até que tinha. Tanto que isso lhe rendeu o nome de Einstein. Parecia o gato siamês da história de Millôr. A que envolvia uma dama gentil (e senil) apaixonadíssima pelo animalzinho por ela criado com a atenção e o desvelo que jamais dedicaria a qualquer espécime da raça humana. Bicho de boa cepa, pertencente a uma casta desenvolvida por deuses egípcios. Gato de olhar profundo e mente brilhante. Só faltava falar, mas isso até o momento em que se viu obrigado, para não morrer de fome, a comer o ensopado de papagaio que a dona para ele preparara com o propósito de lhe desobstruir a garganta e a língua. Falou e avisou: “Corre madame que o prédio vai cair”. E ela: “Ai, meu Deus, milagre… Meu gatinho está a falar”. E ele: “Corre, corre”. Como sua dona, perplexa e maravilhada, não o escutava, tratou de escapar sozinho pela janela enquanto tudo ali desabava. “Que cretina… Passou a vida toda tentando me fazer falar e quando falei não acreditou em mim”, observava, com um misto de raiva e pesar, em meio à nuvem de poeira, o gato em questão.

Millôr, porém, fantasiava, compunha um daqueles textos preparados para o Pif-Paf, coluna cativa da finada revista O CRUZEIRO, sob o pseudônimo de Emmanuel Vão Gogo. Inventava história e a moral da história: “O mal do artista é não acreditar na própria criação”, seria sua lição sobre a madame e o gato siamês.

O seu, não, era gato real, bruto, rancoroso, vil, canalha. “Calma, moço. Tadinho do bichano. Tem foto dele?”. O que tinha era o braço em petição de miséria a comprovar o acerto do mau juízo que quase sempre fazia do bicho que lhe adveio do quinto dos infernos.

Que ninguém da casa soubesse, mas andava a pensar muito em se livrar daquele traste. Faria a coisa de modo a que ninguém dele suspeitasse. O mais confidente dos amigos, colega de repartição, jogaria no seu jardim a gata no cio, já no rumo da terceira barriga. Com o namoro engrenado, daria sumiço a ambos. Anoiteceriam e não amanheceriam. Seria como se um deles houvesse puxado o outro por esse mundão de Deus. De resto, prestaria um grande obséquio ao colega insatisfeito, igualmente, com o que tinha no santo recesso do lar.

Assim pensava, mas não levava o plano adiante. É que descobrira certas vantagens na convivência ruim com Einstein. A cada arranhão, as crianças, compadecidas, atendiam a seus pedidos por água e chinela. E, sem reclamação, já levavam de volta para os lugares devidos os sapatos e copos largados na sala.

A patroa não lhe negava o prato preferido, o futebol com os amigos nem cafunés, cabeça no colo, nos horários da novela.

— Gato filho da égua, cachorro imundo, cretino. Ai, como isso arde…

— Calma, meu amigo, está terminando.

Teve, naquela noite, a mulher muito mais solícita e paciente. Tomou uma bela canja no sofá por recusar a mesa, procedimento que ela detestava. Sequer ouviu o costumeiro “deixe de ser manhoso”. Foi paparicado pelas crianças que lhe retiraram as meias. A menorzinha penteou-lhe os cabelos e reproduziu um trecho da cantiga de ninar que dele habitualmente escutava. Estava no Paraíso.

Esqueceu de levar a pomada e o antibiótico, mas teve isso na mesinha de cabeceira. Também se deitou, sem problema, no lado direito da cama, o espaço dela. “Ainda dói muito?”, ouviu de uma voz sumidinha, melosa, fora do tom e da rotina. “Dói, siiim”, respondeu, também, com voz dengosa e comprida. Entre o sopro e o beijinho oferecidos quis os dois, um no nariz e outro no esparadrapo.

Pouquíssimo tempo depois, pouquíssimo mesmo, uma pancadinha acidental, coisinha de nada, no braço ferido o fez virar de lado com a rapidez de uma daquelas patadas. Resultado: bateu na mesinha que então balançou a ponto da queda do copo com água, bem ao estilo e ao costume do gato doméstico.

— Mãe, põe Einstein no quintal. Acaba com esse barulho e esses miados. Quero dormir – gritou do quarto ao lado Juninho, o primogênito.

Moral dessa história: À noite, todas as culpas são do gato.