SUBLIME MORADA, por Babyne Gouvêa

Um tempo de “casas simples, com cadeiras na calçada” de uma gente humilde (Foto: Armazém do Texto)

A rua era sossegada e bem posicionada com relação a diversos bairros da cidade. Próxima a três grandes escolas, facilitava o acesso dos estudantes que nela habitavam. A maioria dos seus moradores se deslocava de um determinado lugar a outro, geralmente, sem utilizar veículos.

As casas em estilo próprio dos anos 40/50 – quando a estética rebuscada e ornamentada do século anterior foi deixada para trás – tinham as suas estruturas voltadas à funcionalidade e praticidade. 

Durante o dia, as donas de casa administravam a cozinha, a limpeza em geral, incluindo as roupas, além de assegurar largo sorriso aos maridos quando retornavam dos seus trabalhos desenvolvidos fora de casa. As crianças logo cedo se dirigiam às escolas e à tarde faziam as suas tarefas escolares, muitas vezes sob a supervisão da mãe.

Diariamente, circulavam na rua e imediações fornecedores de verduras, frutas, mel de engenho e muitos outros produtos. Os vendedores de vassouras e os compradores de vasilhames de garrafa costumavam agitar os moradores com os seus anúncios tonitruantes. Com os sustos provocados nos clientes eram rebatidos com advertências desaforadas, muitas vezes hilárias.

O amolador de tesouras e o responsável em consertar as panelas de cozinha noticiavam a sua presença com sons bem particulares, emitidos de forma suave para não incomodar os residentes. Mas logo cedo o jornaleiro se manifestava divulgando as manchetes em tons altos e apelativos, conclamando os madrugadores. A estridência na voz ganhava um tom alarmante quando noticiavam nomes de alguma autoridade política, em evidência à época.

Ainda pela manhã e em dias alternados, um enfermeiro circulava em sua bicicleta oferecendo serviços de aplicar injeção, aferição de temperatura e pressão arterial. Com o seu impecável terno azul celeste, com rosa vermelha na lapela e um elegante chapéu de feltro cinza, era dono de uma simpatia ímpar, não se intimidando em exibir um sorriso sem dentes.

A tarde chegava e, após uma rápida sesta, os homens retornavam ao trabalho, as crianças estudavam e brincavam e as donas de casa passavam roupa ouvindo alguma novela de rádio. À tardinha, o padeiro chegava oferecendo os seus deliciosos pães, enquanto o sorveteiro fazia a alegria da criançada. Esses dois profissionais eram pontuais e rotineiros.

Chegando a noite, as mocinhas se embelezavam para aguardar os namorados, cada qual seguindo os dias agendados, de acordo com a permissão dos pais.

As domésticas se encontravam com os seus amores nas esquinas. Eles chegavam acionando as campainhas de suas bicicletas com sela almofadada contornada de franjas, estampando emblemas de times de futebol. As colônias de banho ou perfumes que os casais usavam aromatizavam praticamente toda a rua.

E eis que chegava o momento das espreitadas de uma vizinha. Às escondidas, achando que não seria percebida, espiava os casais por uma janela indiscreta. Ficava naquela posição por muito tempo, mas aparentemente era ignorada pelos observados, pois a observadora era senhora de certa idade.

Alguns atreviam-se em demonstrações amorosas mais ousadas e sorriam discretamente, talvez imaginando a reação da olheira. No dia seguinte, numa audácia investigativa, a senhora vigilante apreciava conversar com amigas próximas procurando conhecer a origem dos rapazes, para saber se eram de sobrenome ‘bem conceituado’.

Nesse hábito de mexericar não havia maledicência, não resultando em consequências danosas para alguém. Era uma prática de entretenimento numa época de costumes típicos de uma cidade pequena. O mais importante é que a generosidade era marca do convívio de praticamente todos os moradores da pacata e inesquecível rua.