Os acontecimentos tornam a mostrar que os bloqueios rodoviários – decorram das greves por aumento do frete, ou de movimentos perversos da política partidária – são mesmo uma questão de segurança nacional. A destruição gradativa das ferrovias brasileiras representa, desse modo, um crime de lesa-pátria.
Vale a pena uma boa olhada no Anuário Estatístico dos Transportes. A malha ferroviária do Brasil batia na casa dos 30 mil quilômetros, em 1920. Hoje, com todas as ampliações decorrentes, por exemplo, da Transnordestina, Norte-Sul, Pantanal, Estrada de Ferro de Carajás e Estrada de Ferro Vitória a Minas, nossos trilhos mal se estendem por 29 mil quilômetros e, em sua maioria, com a bitola métrica do Século 19. Num País sem navegação de cabotagem digna de seu papel em boa parte do mundo isso beira a catástrofe.
O desmantelamento iniciou-se com o nascimento da indústria automobilística e completou-se nos governos dos generais. A Transamazônica, a rodovia que nunca foi concluída, tem custo da ordem de US$ 1 bilhão, ao que lamenta a matéria “Crime e abandono”, da Folha (edição de 22/10/2016), com as assinaturas de Fabiano Maisonnave e Lalo de Almeida.
Até que houve alguma tentativa para a reposição do Brasil nos trilhos que, durante muito tempo, a contar da fase áurea do café e das fibras vegetais, foram a principal via de escoamento de cargas e passageiros neste lado de baixo do Equador. Que o diga o Plano Nacional de Desestatização dos anos de 1990, esforço que deu com os burros n’água, à luz dos entendidos, em razão do modelo que dá às concessionárias tanto o controle sobre as vias quanto sobre os trens. Modelo que ainda vige nos atuais corredores de exportação de grãos e minérios.
O velho PND de Collor foi o sepulcro, no Nordeste, da Rede Ferroviária Federal S/A, a “Refesa” da encantadora pronúncia interiorana, tal como muitos de nós a conhecemos. É que os trens e trilhos nordestinos passaram a servir como almoxarifado para a reposição de peças e equipamentos então criminosamente remanejados para os ramais mais lucrativos do Centro-Sul.
Matou-se o deficitário e assim se fez sem a percepção de que os déficits devem levar em conta o bem coletivo. Bela matéria da BBC Brasil, assinada por Camilla Veras Mota, tratava dessa questão, um ano atrás.
As ofertas do carro próprio, a expansão das estradas e os progressos da aviação, de fato, agravam os problemas do sistema ferroviário em partes diversas do mundo. Mas os governos, lá fora, não deixam de agir em favor da sociedade. Isso explica por que, nos Estados Unidos, berço do capitalismo, a condução de passageiros por trilhos está nos vagões de uma estatal: a Amtrak, fundada em 1971. Assim também ocorre na Alemanha (com a Deutsche Bahn), na Espanha (com a Renf) e na França (com a SNCF).
Condoo-me, particularmente, com a morte dos trens de passageiros. Até porque fiz muito uso deles. Foi o meio de transporte que utilizei, quando menino, para o estudo no Recife. Saía da pequena Estação de Pilar e pegava o rumo de Itabaiana. Viagem longa e saborosa até o destino final.
Acho que me tornei jornalista levado pela oportunidade de ter visto meu mundo pela janela do trem. As paisagens rurais, as conversas, a subida e descida das pessoas, a contemplação do abraço feliz ou do choro entre os que se reencontravam ou se despediam, a venda ambulante de castanhas, milho e cocada aguçaram-me o senso de observação.
Impressionava-me como, de repente, os meninos de todo o meu percurso, cidade por cidade, pareciam combinar a mesma brincadeira. Eu saía da pequena Pilar com jogo de bola de gude e constatava que não era outra a brincadeira nas povoações sucessivas à beira da linha. Outras vezes, era um empinar sem fim de papagaios, quando a viagem se fazia, em sentido inverso, no rumo de casa paterna para as férias de dezembro. Logo percebi que tudo dependia do tempo e do clima: ninguém solta pipa no inverno. Tive, desse e de outros modos, exercícios de contemplação da vida, mesmo que restrita à beira da linha. Repito: vi muito do meu mundo pela janela do trem.
O sucateamento do sistema ferroviário nos é danoso sob todos os aspectos. Agrava a superlotação das estradas, produz um dos trânsitos mais letais do planeta e embute nos preços de lojas e supermercados o custo elevadíssimo do frete rodoviário de mercadorias e produtos. Tanto quanto tudo isso, deixa uma Nação inteira à mercê dos inconsequentes.