A TOQUE DE VARA, por José Mário Espínola

Imagem copiada de oxerecife.com.br

Ronaldo sempre foi um cara manso, tratável. Solteiro, não existia amigo melhor, mais compreensivo, mais solidário. Casado, revelou-se excelente pai, amigo dos filhos, mesmo quando atingiram a idade cretina, chegando à adolescência.

Nunca perdeu, porém, o amor por um esporte: o bom papo em torno de uma boa dose de cuba libre. Especialmente se fosse uma garrafa de rum Montilla, com direito a pirata, coca-cola, gelo e limão.

Casou-se com Isaura, pessoa maravilhosa, personalidade marcante, excelente esposa, mãe e avó. Esteio da vida de Ronaldo, base do seu sucesso profissional. E gênio de Susassuna!

Dono de uma imensa “carteira” de amigos, principalmente entre seus inúmeros primos, Ronaldo não perdia a oportunidade de botar o papo em dia. E às vezes se metia em enrascadas por causa deles. Como naquele sábado, anos ’60, quando tarde da noite roubaram o piano da casa da tia para fazer serenatas.

Foi um sucesso! As notas do piano preencheram a noite de João Pessoa, em cima de uma caminhonete, de casa em casa das meninas escolhidas. Que ficaram deslumbradas com tanta sofisticação romântica… Foi a primeira e única vez que piano foi instrumento de serenata em nossa cidade.

Mas, ao final da madrugada, veio um momento que tirou qualquer vestígio de fogo do rum que haviam tomado: chegou a hora de devolver o piano à sala da tia! Agindo num silêncio de suspense hitchcockiano, quase conseguiram o feito sem o conhecimento da tia. Pois, quando estavam entrando com o piano pela porta da sala, eis que ela acende a luz: “Para onde vocês pensam que vão LEVAR esse piano, seus cabritos!”

Foram salvos pela semântica errada da tia. Ela falou “…para onde vão LEVAR…” e não “de onde vêm TRAZENDO…” O primo respondeu: “Ah, mãe! A gente ia só dar uma voltinha com ele. Já não vamos mais, a senhora num deixa, né?!” E assim dessa escaparam!”

Pois bem, essa foi só uma das milhares de façanhas inacreditáveis de Ronaldo e seus primos. Voltemos à sua vida de casado.

***

Isaura até que não se importava muito com as bebidas de Ronaldo. Cansou de reclamar. Só não gostava do olho malandro dele. Pois era mestre na arte de flertar. Mas nunca passava disso, um flerte.  Certa manhã de sábado, Ronaldo acordou com vontade de comer caranguejo. Quando ia saindo apareceu Isaura:

– Pra onde você pensa que vai?!

– Ah, Isaura! Eu só vou até o Mercado Central comprar uma corda de caranguejos…

– Se lembra que me prometeu passar o fim de semana sem tocar em álcool? Homem, já esqueceu o que o Dr. Ricardo falou dos seus exames? Colesterol maior que 300, triglicerídeo de 1.200? Homem, você quer ter uma trombose? Ficar troncho em cima de uma cama, se obrando e se urinando? Quem você pensa que vai te limpar? Essas vagabundinhas que tu vive olhando?

– Ora, Isaura, eu só vou comprar uma corda de caranguejos pro almoço! Mais nada!

– Vê lá com quem vai se encontrar. Já me disseram que Tonhinho está de volta.

E lá se foi Ronaldo para o mercado. No caminho, recebe uma ligação. “Vixe Maria! É Tonhinho. Logo ele?” E foi só dar um abraço no primo querido. Que azar: lá no terraço de Tonhinho encontrou Otávio, Cesário, Tarcísio… Não deu outra: logo alguém abriu uma garrafa de Rum Montilla. Carta Ouro, ainda mais!

De lá saíram pra casa de outro primo, e mais outro, e até para outros lugares menos publicáveis. O dia inteiro foi assim, avançou durante a noite. De repente Ronaldo se tocou: o dia seguinte já estava amanhecendo. Pensou, aflito: “Tô lascado! Desta vez Isaura vai me matar, tirar meu couro e fazer um tamborim!”

Pensou, pensou… E teve uma ideia! Aí uma luz surgiu na sua mente. “Isaura gosta muito de caranguejos”. Lembrou-se que nos domingos tem a feira da Torre, onde também é possível achar caranguejos. Foi até a feira, comprou o que queria, tomou um táxi e foi pra casa carregando uma corda de caranguejos presos pelas patas.

Abriu e fechou o portão com cuidado para não fazer barulho. Soltou todos os caranguejos no terraço. Pegou uma vara e só então tocou a campainha. Isaura abriu a porta com sangue nos olhos: “Bicho safado! Cachorro da moléstia! Cabra severgonhe! Saiu ontem pra comprar caranguejos e só chega agora, seu cabra-de-peia!”.

“E fui, mulher! Isaura, minha filha, olha só quantos caranguejos! Você não tem ideia do trabalho que deu tangê-los com uma vara até chegar aqui em casa!”.

***

Cortinas, rápido!