O TALCO DOS VELHOS CARNAVAIS, por Francisco Barreto

Como é lindo e divinal
O colorido de confete e serpentina
E o desejo ardente de arlequim
Por amar a linda colombina
Oh! Mulher fascinação
Dos cabelos cor de Sol
És a luz, minha vida, o arrebol
Pierrot, eu te amo e te quero
Te adoro e venero, coração do meu peito
Pierrot abraçado à guitarra
Sufoca o sonho do amor desfeito

(Da Vala, L. Barbicha, Wilson Jangada, Dito e Mestrinho – compositores da União da Ilha, Rio)

O primeiro cúmplice do nosso vaidoso olhar ao amanhecermos é sempre diante de um espelho qualquer fazendo uma silente leitura da nossa imagem e de nosso estado de espirito. Assim foi que tive o arrebatado ímpeto de ver o avanço da minha inexorável grisalhice agasalhando muitos fios platinados.

Tive o desejo de me expressar: “Espelho meu, este irreversível embranquecimento reflete apenas o talco dos velhos carnavais?”. A mudez do espelho me consentiu acreditar que além do talco, das serpentinas, confetes, brilhos, talcos, adereços, as lantejoulas, e até então as inocentes lanças perfumes da Rhodia incensavam as alegrias dos frevos e lindas marchinhas.

De criança até a maturidade reconheço que os maiores momentos de indescritíveis alegrias sempre ocorreram sob os tríduos momescos. Nos carnavais sob os mantos dos deslumbres infanto-juvenis vivi intensas e delirantes paixões palmilhadas por cargas hormonais acumpliciadas por renitentes doses alcoólicas.

Os dias de carnaval aliciavam meus únicos e mais importantes lapsos anuais de extrema alegria durante a minha jovem vida. Lembranças de hoje me trazem à tona memoráveis carnavais de outrora em João Pessoa, no Rio de Janeiro, e os do Recife e Olinda.

No Rio, a Banda de Ipanema nos acolhia numa ruidosa batucada. Seguíamos embevecidos e embriagados ao lado de centenas de lindas e desnudas garotas de Ipanema até o Leblon. Eram os idos de 76/77. Saímos num bloco de Anjos e Capetas comandados pelo meu estimado amigo o arquiteto Joca Serrano. Tudo começava no Bar Jangadeiro, na Praça General Osório, e na Visconde Pirajá.

Fomos intimados e seduzidos, em 76, pela formidável e brilhante carnavalesca Maria Augusta, mestra da Escola de Belas Artes e diretora da Escola União da Ilha. Fomos compor e desfilar numa ala que foi para a Marquês de Sapucaí. O samba enredo da Escola fora inspirado na maravilhosa e fantástica poesia do grande Menotti del Pichia – Poemas de Máscaras e Sonhos com Pierrôs, Colombinas e Arlequins.

Maria Augusta, por pureza estética, fazia as cores dominarem o desfile, ao invés do luxo de Joãozinho Trinta. Recorria ao expressionismo com cores tão brasileiras. Ela foi longe demais ao conceber e exibir uma linda aquarela em homenagem ao carnaval singelo do passado. Na ala dos Anjos e Capetas de Ipanema entraram em cena duas dezenas de alegres penetras. Éramos anjos e capetas.

Desfilar na Sapucaí e receber os acenos de dezenas de milhares de pessoas foi a experiência mais extraordinária que tive em vida. Com os arrebatamentos entusiasmados, o público delirou fazendo coro ao som do samba enredo iluminados por pierrôs, colombinas e arlequins. Ao sermos aplaudidos de pé em cada passo ficou para sempre no peito a sensação de que éramos protagonistas de uma infinda e pura alegria.

Olinda e Recife sempre estiveram nas minhas veias. Nas sextas-feiras dos carnavais, tínhamos uma agenda imperdível no Batutas de São José. Durante muitos anos, de manhã aterrissávamos na Livro 7 engrossando fileiras intelectualizadas do irreverente Bloco Nós Sofre, mas nós Goza, comandado pelo inesquecível pelo Tarcísio Meira.

Após horas de militância etílica, íamos ao Buraco de Otília, às margens do Capibaribe, onde usufruíamos do seu cardápio um requisitado prato De Tudo um Pouco. Uma esbórnia gastronômica. Incomparável.

Recife e Olinda serão sempre almas gêmeas e felizes coloridas do frevo e dos maracatus. Tínhamos um pequeno bloco – o É Bom que Dói, que nas tardes fervilhava na Rua da Boa Hora. Não tinha a expressão numérica das Pitombeiras, Elefante, Vassourinhas e da intelectualizada tribo do Eu Acho é Pouco. Mas tinha as bênçãos de artistas plásticos naif como o grande Bajado, um gênio de Olinda que nos brindou com um estandarte.

As andanças seguiam pelas ruas e ladeiras sob estimulantes acordes do frevo, levando solavancos e topadas nos centenários paralelos. Do Largo do Amparo aos 4 Cantos às ruas enladeiradas da Sé, da Ribeira, do largo de São Bento, da Misericórdia, da Praça do Carmo, da Boa Hora, na Maxabomba, Rua do Sol e em todas vielas.

Obrigatórias eram as paradas nos bares, notadamente em Seu Biu, Seu Nivaldo e posteriormente no Bêbado e o Equilibrista, trincheira da resistência dos alcoólatras de esquerda. Evitávamos os percursos de Pitombeiras, Vassourinhas e Elefante, onde os delírios eram pouco delicados no populacho da Marim dos Caetés, sobremodo para as nossas delicadas colombinas.

Determinava a indefectível caminhada o quase sempre após o ápice das ladeiras o reabastecimento etílico dos combatentes da frevança. Cada ladeira, um porre de praxe.

A Olinda que vivi era a do arrebatamento dos blocos familiares das ruas, onde a presença dominante era a de crianças. A Olinda sem drogas, sem cafajestagem e falta de respeito sempre aguçada pela violência. Depois da Rede Globo, a frequência se degenerou.

Ainda hoje, os talcos dos meus felizes carnavais continuam ostentados na grisalhice dos meus cabelos e ainda ressoam os frevos nas minhas lembranças de um Recife e Olinda. “Não mais voltei”. Me silenciei. Já não canto mais, sobraram apenas as tristezas de todas e sempre quartas-feiras de Cinzas.

Voltei, Recife
Foi a saudade
Que me trouxe pelo braço

Quero ver novamente Vassoura
Na rua abafando
Tomar umas e outras
E cair no passo

(Lourenço Capiba)