O MUNDO ESTÁ PERDIDO, por Ana Lia Almeida

Foto: Isabella Mayer/SMCS

Do assento onde estava, Rita acompanhava a algazarra dos meninos. Um deles acabara de sentar-se ao lado da mocinha do mesmo tamanho, deviam ter todos uns doze ou treze, no máximo catorze anos. Começou com o menorzinho pedindo o whatsaap dela, que negou: só passaria o número para o outro, de boné. Eita porra, Gasguito ganhou a boyzinha! Assovios, batuques, gaitadas. Quando Rita voltou as vistas, os dois já estavam aos beijos, no meio do busú.

Esse mundo está perdido, espantava-se a senhora ao lado, antes de desatar a falar. A primeira vez que fui beijada, achei que tinha engravidado de gêmeos, e olha que foi nas bochechas. Culpa da minha avó. Era Carnaval e eu, com onze anos, adorava as La Ursas. Aliás, eu amava tudo do Carnaval: as fitas, as cores, as sombrinhas de frevo, o coco de roda, os bois, a animação que ficava nas ruas… mas minha avó não me deixava brincar.

“Menina que pula carnaval se perde logo na vida”, dizia. Na minha cabeça, ela tinha medo de eu me perder no meio da multidão e não achar mais o caminho de volta. Eu já tinha me perdido uma vez, na feira do Oitizeiro, e não queria passar por aquilo novamente. A tarde todinha andando de um lado para o outro, morrendo de medo de ficar de castigo quando me encontrassem… Então ela explicou que o se perder não era daquele jeito, e sim entrar para a vida errada, se desviar do caminho certo de viver, como engravidar antes da hora.

“E como é que acontece uma coisa dessas, vó?”, eu perguntei. “Começa os meninos beijando você no Carnaval, por exemplo”. Prometi não deixar ninguém me beijar nem sair da nossa calçada, e assim consegui aproveitar um pouco a folia, morta de feliz. Até que, junto com o urso mais animado do bairro, vieram Amaro e Antônio. Já chegaram me dando um beijo em cada bochecha.

O pai deles tinha uma vendinha na esquina, onde os meninos se revezavam ajudando no balcão. Eu gostava dos dois, que eram também meus colegas da escola. Quando minha avó me mandava ir na vendinha, o caminho todo eu ia suando, tentando adivinhar qual dos dois estaria naquele dia. Moeda para cima: cara, o sorriso tímido de Antônio; coroa, os olhos pretinhos de Amaro.

“A la ursa quer dinheiro, quem não dá é pirangueiro”… e aquele urso branco de estopa rodopiando na nossa frente. Eu, apavorada, engravidada por Antônio e Amaro ao mesmo tempo, começando a me perder nos caminhos errados do Carnaval. Chorei até a quarta-feira de cinzas, e, como a barriga não cresceu, deixei a história pra lá.

Rita, que ouvia com atenção, já se arrumava para descer do ônibus. Enquanto levantava, a senhora foi concluindo: Hoje em dia, isso não acontece mais. A internet está aí, ensinando de tudo para esses meninos. Como engravida, como não engravida, como troca a fralda… tudinho no celular deles, por isso o mundo está perdido. Vá com Deus, minha senhora. E vocês aí, tomem juízo.