RUM AND COCA-COLA, por Frutuoso Chaves

Imagem: Wikipedia

Notícias recentes dos combates na Ucrânia trazem o desmentido de autoridades ucranianas ao propósito do uso de bombas sujas contra a Rússia. As boas casas do ramo definem como “suja” a bomba que combina material radioativo com explosivos convencionais. É coisa destinada à contaminação de área apenas restrita à da explosão. Mesmo assim, é ataque condenado pela arbitragem dos conflitos modernos com assento na ONU.

Os americanos não acreditam. Entendem que a acusação é pretexto de Moscou para a escalada da guerra. Daqui, do meu insignificante poleiro, não sei em quem confiar. Mas entendo que todas as bombas são sujas e todas as guerras são abjetas, indecorosas. Servem à dominação, à espoliação dos povos e somente ocorrem por haver quem ganhe com elas.

Vivi o suficiente para presenciar a Crise dos Mísseis, aquela de 1962, ano em que John Kennedy deu à Marinha de Guerra dos Estados Unidos ordem para afundar qualquer navio de bandeira soviética disposto a aportar em Havana. É que, dias antes, seus aviões haviam fotografado escavação em solo cubano logo identificada pelo Pentágono como providência para a instalação, ali, de foguetes russos. Isso significaria ogivas letais inimigas a menos de 200 quilômetros da Flórida.

A ONU interveio e Nikita Krushev desistiu da empreitada, mas não sem o mundo prender a respiração por dias sucessivos. A encrenca de hoje inverte o endereço. É a Rússia que agora trata de impedir a anexação da Ucrânia pela Otan, posto que isso significaria ogivas atômicas ocidentais a 300 quilômetros de Moscou.

Abstraído o fato de que os Senhores da Guerra sem elas não vivem (a indústria bélica em escala mundial não pode parar), ainda contribuem para o agravamento da presente crise os negócios trilionários do petróleo e do gás numa Europa em 40% dependente daquilo que os russos fornecem. Califórnia, para que te quero? – perguntaria o velho Biden.

As guerras, além disso, são o palco de muitas outras perversões, são o campo onde melhor atuam os agentes da devassidão e da indecência. Quem não lembra daquele ex-deputado, daquele predador de moças fragilizadas pelo desamparo e pela orfandade? Daquele sujeito que sugeriu à sua turma o roteiro criminoso do turismo sexual no Leste Europeu porque, ali, as garotas são pobres e, portanto, seriam ‘fáceis’?

É preciso dizer que as meninas da Ucrânia não são os únicos seres humanos na mira desse tipo de gente. Somem-se a elas as mulheres pobres de todos os continentes em tempo de guerra, ou de paz. E, assim também, todos os filhos da miséria sem distinção de raça, gênero e credo. Estes últimos, desgraçados e indefesos, não são menos explorados, individual e coletivamente.

Mas é preciso acrescentar que a história tem registrado a iniquidade em tom e amplitude até mais graves, pois cometidas, institucionalmente, para o riso e a satisfação da soldadesca. De quando em quando, o insulto, o deboche e a humilhação têm, de fato, a magnitude dos exércitos.

No início de 1940, as Irmãs Andrew, o trio que percorria as bases americanas no palco da 2ª Guerra Mundial, aconselhava às tropas uma visita a Trinidade. “Rum and Coca-Cola”, a música mais aplaudida, recomendava que, além desse coquetel, a rapaziada ali desfrutasse dos favores das belas caribenhas, mães e filhas, em busca de dólares.

Eis o refrão em tradução livre: “Bebendo rum e Coca-Cola/vá ao Centro de Cumaná/Lá, ambas, mãe e filha/trabalham pelo ianque dólar”. Os soldados iam ao delírio.

Todo o Caribe há muito estava sob as asas de Tio Sam. Cuba, particularmente, desde 1898, quando os Estados Unidos derrotaram a Espanha na guerra pela Ilha. O estopim fora o afundamento do USS Maine, enviado ao porto de Havana, para “garantir a segurança dos cidadãos e dos interesses americanos”, onze dias depois de o governo autônomo de Cuba haver tomado o poder. Uma explosão no paiol do navio – interna, segundo investigações posteriores – foi atribuída à sabotagem espanhola, precipitando o conflito açulado pelos jornais da cadeia Hearst e Pullitzer.

Nos anos de 1940, época das Andrew Sisters, o esforço de guerra americano já havia levado Hollywood a descobrir as pernas de Carmem Miranda e a cobrir-lhe a cabeça com aqueles imensos chapéus de banana. Walt Disney, em pessoa, era despachado, enquanto isso, ao Rio de Janeiro, onde criou a figura do Zé Carioca, cicerone do Pato Donald.

Um Getúlio Vargas, premido pelo torpedeamento de navios da Marinha Mercante brasileira por submarinos alemães empenhados em cortar o transporte de víveres e matérias primas, embarcava o Brasil na guerra e cedia o espaço da Base Aérea de Parnamirim às tropas aliadas.

No Rio Grande do Norte, que exportou o biquíni, o chiclete e a Coca-Cola para o restante do País, os americanos também encontravam os favores de Maria Boa, uma paraibana de Campina Grande, dona de cabaré e, então, no comando de moças fugidas da fome e da miséria. Ela chegou a ser homenageada com a inscrição do próprio nome na fuselagem de um dos B-25, os aviões que faziam estragos nas tropas de Hitler, Hirohito e Mussolini. Trinidade e Tobago, o pequeno país de língua inglesa nos costados da Venezuela, também era, na ocasião, base americana no transcurso dessa guerra.

Mas voltemos às três irmãs e seu grande sucesso musical, um calypso com milhões de cópias vendidas. Letra maledicente e desmoralizante. Nenhum cuidado com os brios da população nativa.

As irmãs, de qualquer modo, estouraram nas paradas de 1945 enquanto a música era pivô de outra batalha, a travada na Justiça por direitos autorais. Um compositor acusava o outro de plágio. Além do mais, havia, ali, a propaganda indevida de duas bebidas. Há quem diga que este fato, naquele momento, chegou a contrariar de modo mais sério o senso de ética e decência das pessoas de bem. Lastimável, não?