A SÍNDROME DE ANNE FRANK, por Francisco Barreto

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“Recordações valem mais do que vestidos” (Anne Frank). Do blog O Mundo de Aline

Quando visitei o esconderijo da família Frank, na Prinsengracht, 263 em Amsterdam, há mais de 50 anos, como uma cicatriz restou-me a atemporal sensação de que entre a vida e a morte existia apenas uma tênue fronteira que poderia ser rompida a qualquer momento. Apenas um frágil fragmento de réstia que polarizava os sempre próximos e distantes momentos do viver e do morrer. Senti claramente os sentimentos de outra sensação quase esquizoide, a do ser e viver e, ao mesmo tempo, do medo e da coragem.

Ao cristalizar para sempre em seus escritos diários uma alma mutilada por lúcidas e dantescas visões de que cada dia a mais, na vida da jovenzinha Anne Frank seria sempre um dia a menos. Em sua dolorosa caminhada exibia sempre a certeza de que o seu infantil passado, tristezas e alegria, iriam ser sepultados. Presente e futuro teriam o mesmo destino. Pobre Anne.

O seu presente passava a ser renitentemente dominado pela aflição de não ter qualquer vislumbre dos seus amanheceres e que o seu futuro imediato estava represado pelo medo. Cambaleante, Anne espreitava de sua janela o maravilhoso Canal Prinsengracht. Que certamente excitou-lhe a compreensão de que a correnteza traduzia certo alívio ao ver a livre passagem das águas. Livres e revoltas. Passavam, e passavam sem se debruçarem sobre o medo e a coragem.

A família Frank

O pouco de tempo que restou a Anne Franz foi lapidado em seu inocente e crucificado diário. Hoje, como ontem, reeditando as imagens de Anne Frank, também nos é proibido ter o desafio de desvendar o que viveremos e o que nos reserva o amanhã. Como a valorosa jovem, estamos também encilhados em nossas células domésticas, porquanto estamos divididos entre o medo e a coragem. E juntos repartimos as nossas angustias com os nossos amados entes.

Estamos no que deveria ser um luminoso tempo de paz. A Páscoa, tempo de Redenção, de Vida e de Paz, não nos seduz por mais que sejam fervorosas as nossas orações. Certamente, Anne Frank teve ao seu tempo a tristeza e a infelicidade de não poder erguer as mãos aos céus e agradecer a Deus a senda da Pesah judaica. Deve ter sofrido com os seus por várias vezes, ao sentirem que não foram protegidos da condenação e da morte ao invocarem o sangue do cordeiro morto que teve que ser imolado seguindo a tradição como símbolo do estatuto perpétuo da libertação.

Assim como a jovem mártir, ontem e hoje não estamos vivendo o tríduo Pascal. Não estamos plenamente nos alegrando com a Ressurreição do Cristo como deveríamos. Não estamos fazendo ainda a passagem do sofrimento do Crucificado, Cordeiro de Deus, que morreu para nos redimir. Estamos ainda todos encarcerados, esmagados, caminhantes errantes nesta Via Crucis pandêmica que apenas nos acena com a morte.

Estamos diante de uma diáspora em que nossos caminhos nos conduzem inexoravelmente às veredas da morte. Estamos sumariamente condenados, sem poder viver os sentimentos eucarísticos que se lapidam pelas venturas emanadas da Alegria, da Paz e da Libertação em cuja gênese estará sempre o Sacrifício e Ressureição do Agnus Dei: Jesus Cristo.

Os meus pensamentos buscam a memória de Anne Frank, pressupondo o que sofreu o seu pequeno coração nas suas Páscoas e que os seus sofrimentos foram sepultados no Campo de Concentração de Berg-Belsen e que também foi vitimada por uma epidemia de tifo. Os nazifascistas, como os que crucificaram Anne Frank, autores de genocídios e atrocidades, continuam vivos e malignos entre nós.

Ela ontem e hoje nós, não temos certeza de nada com relação à perenidade da vida. Temos apenas a resignada convicção de que como ela ontem e nós hoje, temos que nos ocultar do pesadelo que nos persegue. Somos profundamente açoitados por sentimentos de medo e de coragem. Na distância, no necessário isolamento, vivemos um triste momento Pascal.

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anexo secreto

Esconderijo dos Frank em Amsterdã

Logo no início de novembro de 1944, Anne é transportada novamente, junto de sua irmã, para o campo de concentração de Bergen-Belsen. Otto Frank, seu pai, afirma que todos que lessem o diário precisavam tomar consciência dos perigos da discriminação, do racismo e do ódio aos judeus.

Ele e a família esconderam-se no bairro Jordaan, às margens do Prinsengracht. Escondidos por dois anos, período em que ela anotou no famoso diário as suas impressões, visões, medo e coragem.