TEMPOS BICUDOS, por Frutuoso Chaves

Imagem: petz.com.br

Em todo alvorecer é assim. Mal o Sol cuida de tanger uns restos de noite e já ocorrem os primeiros assovios. Uns sopros curtos e indecisos entre bocejos, quero crer. Quem desse modo anuncia a própria existência ainda não o faz totalmente desperto.

Não o vejo nesses momentos, mas imagino que se espreguiça, estica o pescoço e as pernas ao limite dos tendões. Céu mais claro, os gorjeios se elevam e se afirmam. Logo, dá para vê-lo no galho mais alto da algaroba.

A árvore escapou do corte total pelo grupo contratado para o acabamento do prédio que soma 28 andares, a poucos passos da minha varanda. A poda, apesar de severa, limitou-se às galhadas mais próximas dessa construção.

Todos os dias, com sono de passarinho, eu tenho ganho do Sol. Ergo-me mais cedo, o que me permite acompanhar os primeiros movimentos da avezinha.

Penso que ela se acostumou a isso e que disso gosta. E a impressão também me faz supor que seu primeiro canto, não mais um solfejo e já com todas as sílabas, é a mim dedicado. Afinal, trocamos olhares e estamos de pé, sozinhos, nuns ticos de sereno, quando o mundo ainda parece dormir.

Dei para me preocupar com a sorte desse vizinho. Já notei que é o único morador da algaroba. Os outros pássaros que nela trinam assim o fazem, dia já quente, em passagens rápidas. Descansam as asas e em poucos segundos retomam o voo do qual não se sabe o propósito nem o destino. Não há sentido na pressa que então demonstram, pois apenas vagueiam com invenções de roteiro, como penso ter ouvido de alguém. Nenhum deles veste o preto e o amarelo do residente.

Mais tarde, a caminho da padaria, conforta-me a esperança de que alguns bem-te-vis da Praça Sílvio Porto, a dois quarteirões da nossa rua, o tratem com o respeito e os cuidados dispensados, naturalmente, entre as criaturas que se aceitam e se gostam.

Ao retornar com um biscoito a ser esfarelado num cantinho da calçada, atino, porém, que estes não são tempos naturais. E a preocupação me volta.

São sentimentos confusos os que então me assaltam. Penso bem e, por fim, decido que não é um pária este ser com quem tenho acordado para os afazeres e obrigações de cada novo dia. Para meu conforto espiritual, eu me convenço de que nada o afasta do convívio com os seus. Belo, garboso, com asas que o levam a mergulhos e rasantes assombrosos, ele deve ter, de fato, quem o queira por perto e com quem se aninhar.

A solidão, em certas horas, talvez seja uma opção pessoal, uma fuga deliberada para o sossego noturno, uma providência necessária ao repouso da alma.

São tempos difíceis para bichos e gente estes que atravessamos. O que temos visto e ouvido, cotidianamente, beira os limites da barbárie. Facções se armam, inimizades se ampliam e elos se rompem, não raramente, entre nascidos no mesmo ninho.

O ódio floresce, absurdamente, com o discurso único da honradez, da ética e da decência. Aos pássaros, como a muitos de nós, deve estranhar o fato de que isso não sirva ao congraçamento, mas à desarmonia. Deus não há de caber por igual em todos esses nichos, assim considero e assim deve também acreditar meu bem-te-vi. Talvez seja por isso que dormimos pouco.

O grupo da Praça não corre para os meus farelos. Nem o passarinho da minha estimação, se entre eles estiver. É possível que não gostem de biscoito, ou, no seu caso, não queira revelar a amizade que edificamos, respeitosamente, com as devidas reservas. Ele, do seu galho. Eu, da minha varanda.

As rolinhas, sim, me chegam quase ao alcance da mão e adoram aquilo que lhes jogo. Fugidias e assustadas nos sítios e roças, estas últimas, imprudentemente, perderam o medo dos humanos, quando nas ruas. Urbanizaram-se, contrariando a natureza.

Uma coisa eu asseguro. Apesar do aparente descaso com que sou tratado em praça pública, não há desentendimentos entre mim e meu amigo. Não, isso não. Somos imunes à intriga. Eu o favoreço com minha atenção e meu carinho e ele não me sonega os gorjeios matinais.

Bem te vi, te vejo e verei, amiguinho. Que teus dias sejam sempre calmos e fartos. Que as larvas e besouros te encham o papo. É o desejo sincero deste que, mais do que nunca, anda a engolir sapos.

VACINAS DE VENTO? por Eurípedes Mendonça

Eurípedes e o famoso verso de Pinto de Monteiro, em Monteiro, no Cariri Paraibano

Confesso desconhecer o porquê de a mídia denominar de “Vacina de Vento” aquela em que o vacinador, inescrupulosamente, não injeta o conteúdo vacinal no músculo do braço do paciente.

A falha é que o criminoso vacinador não aspira a vacina para o interior da seringa, que logo fica apenas com o ar na parte compreendida entre o bico e o êmbolo da seringa. A seguir, injeta-o, em vez de vacina, na enganada e vulnerável vítima.

Não existe vento e sim ar atmosférico no interior de uma seringa. Recorrendo aos conhecimentos de Física ministrados no ensino médio, fica patente que a manchete “Vacina de Vento” não tem sustentação cientifica. Explico: no interior de uma seringa, cujo conteúdo é inexistente, ou seja, não foi colocado nela a vacina, inexiste vento e sim ar atmosférico.

Simples assim, como me ensinou o experiente professor Pelágio Nerício. Perguntado, ele se empolgou e começou a discorrer sobre os oito tipos de vento. Pra ser sincero, só me interessei pela paraibana brisa, notadamente por encontrá-la em João Pessoa.

Pelágio e os melhores dicionaristas concordam: “Vento é o ar atmosférico em movimento natural”. Logo, ensina o docente, a diferença entre vento e ar atmosférico é a movimentação da matéria. A diferença é mais de natureza física do que química. A citação da palavra ‘matéria’ ativou minhas conexões neuronais e lembrei-me de recorrer a um verdadeiro Professor de química, no caso José Carlos Godoi, pois, apesar de habilitado pelo Mec nesse campo do conhecimento, não me considero um professor de química.

Segundo o professor Godoi, a Química atesta que o ar e o vento são compostos da mesma matéria. Fisicamente, a diferença é a presença de movimento, presente no vento e ausente no ar atmosférico. E arrematou Godoi: “Logo, se um vento fosse introduzido numa seringa, imediatamente perderia o movimento, perderia sua identidade. Mudaria de vento para ar”. Assim, se essa matéria (que pesa 1,43g/L) fosse introduzida no músculo deltóide do paciente, seria sempre ar e nunca vento.

Conclui-se, portanto, que do ponto de vista científico – na química e na física – a expressão ‘vacina de vento’ é imprópria. O recomendável seria, indubitavelmente, ‘vacina de ar’. Mais precisamente, ar atmosférico.

VACINA DE VENTO OU VACINA AO VENTO?

Espero ter convencido o leitor de que cientificamente é impossível a existência de vento numa seringa. Quem insistir precisará de uma urgente assistência psiquiátrica (onde estaria o dr. Joao Leonardo Ribeiro Moraes?), pois configurar-se-ia um delírio patológico.

Só há uma maneira de manter o vocábulo “vento” no interior de uma seringa, usando a linguagem poética e os recursos do nosso vernáculo. Já dizia o fantástico Pinto do Monteiro, da cidade onde nasce o Rio Paraíba. Ele proclamava, orgulhoso: “Poeta é aquele que tira de onde não tem e bota onde não cabe”. Traduzindo: na prosa, tudo pode!

Mas nem precisa forçar a barra, usando a liberdade poética, para “salvar a existência de vento dentro da seringa”. Basta a mídia substituir ‘vacina de vento’ por ‘vacina ao vento’. Ou seja, uma simples saída preposicional. Mas diria o leitor: “Não seria trocar seis por meia dúzia?”.

Peço licença ao compositor pernambucano Accioly Neto e ao sanfoneiro monteirense Flávio José para argumentar a favor, tomando como fundamento a linda música “Espumas ao vento”. Basta o primeiro verso:

Sei que aí dentro ainda mora um pedacinho de mim
Um grande amor não se acaba assim
Feito espumas ao vento.

Vamos interpretá-lo à luz da temática da vacinação. ‘Um pedacinho de mim” seria a vacina anti-covid; “ainda mora”, habitar o corpo humano; e, “feito espuma de vento”, é mesmo que desaparecer, morrer, ou seja, ao vento, o que reforça a ideia de efemeridade. Logo, vacina ao vento sinalizaria para uma vacina que não ficou, que não foi injetada no organismo, que acabou, enfim, tal e qual diz o verso de Accioly Neto.

Concluindo, literariamente falando, “Vacina, ao vento!”, com virgula e ponto de exclamação, seria um nome cultural e possível candidata à substituta.

Mas a ciência é soberana. Os professores José Carlos Godói e Pelágio Nerício deram o respaldo à tese do autor de que a mídia troque o “Vacina de Vento” por “Vacina de Ar” e, como opção cultural, “Vacina, ao vento!”.

Aos professores do Colégio das Lourdinas de João Pessoa, Godói e Pelágio, e ao meu professor de psiquiatria João Leonardo, rendo as minhas homenagens.

Que os ventos soprem a nosso favor e todos sejam vacinados! Deus nos proteja.

  • Eurípedes Mendonca é médico.